"Sugar daddy" e "sugar baby": transparência nas relações afetivas.
PARTE 2.
Giselle Groeninga.
Doutora em Direito Civil pela USP. Professora do curso de pós-graduação em
Direito de Família e Sucessões da Escola Paulista de Direito. Diretora Nacional
do IBDFAM. Psicanalista.
Fonte: CONJUR.
José Fernando Simão, em provocativa coluna, abordou
a “transparência nas relações afetivas” tomando como exemplo um site de
relacionamento no qual um homem mais velho se dispõe a “bancar” uma mulher mais
jovem.
A transparência das relações estaria na clareza
quanto à especificação dos interesses: por parte dos homens a companhia das
mulheres mais jovens, e por parte delas os mimos, o apoio financeiro e/ou
emocional. Esclarece que não se trata de site de prostituição por não envolver
pagamento por serviços sexuais.
Como apontado pelo jurista na primeira parte, o
site reflete aspectos da pós-modernidade ou, ainda segundo o filósofo francês
Gilles Lipovetsky, hipermodernidade, que coloca a leveza, o efêmero, a
estética, mas também o vazio como característicos destes novos tempos.
José Fernando Simão, distinguiu três marcas destes
novos tempos.
A primeira marca seria a de que as pessoas buscam
diversas formas de prazer, além das formas tradicionais. Sim, vivemos tempos de
maior liberdade, diversidade e criatividade. Mas estes são também tempos um
tanto confusos e de angústia, em que o prazer e o imediatismo sedutoramente
tomam o lugar dos relacionamentos menos líquidos, utilizando o termo do
filósofo recentemente falecido Zigmunt Bauman, pautados nos investimentos
afetivos duradouros que estes requerem.
E o site neste sentido é claro. A transparência no
relacionamento significa que nenhum dos dois quer uma relação amorosa. Há
inclusive um vídeo com os dizeres “namoro não” em que o relacionamento sugar,
açúcar, mostra ambos felizes em situações leves de jantares, viagens e
presentes, com a mulher vestida como princesa. Relacionamento sugar contraposto
ao do namoro, em que as fisionomias demonstram insatisfação. E é de se imaginar
como seria a contraposição do relacionamento sugar com as
relações familiares...
O que se vende, no caso, está no sonhado virtual,
de “contratos” claros, sem manifestamente haver outras expectativas. Dito de
outro modo, relacionamentos mais leves e, necessariamente, afetivamente
parciais.
A segunda marca da hipermodernidade estaria em
novos modelos. Segundo José Fernando Simão, aquele construído nos
relacionamentos heterossexuais, e copiado pelas famílias homoafetivas, seria um
modelo decadente e em franca mudança. Tenho a acrescentar que nestes novos
tempos, na realidade, convivem lado a lado os diversos modelos, e do meu ponto
de vista somente podem ser considerados decadentes aqueles que impõem
restrições à liberdade, em tempos que privilegiam as escolhas.
Os modelos mais tradicionais são pautados na
comunhão de vidas, em que está presente o desejo propriamente dito (de, privação,
mais sidus, estrela, o que alude à vontade do sujeito de obter
algo que lhe falta mas que é impossível de satisfação[1]). Estes modelos caracterizam-se também
por relações afetivas que contemplam a satisfação e a insatisfação, por valores
morais, e pela busca da continuidade. É o modelo que subjaz à construção das
famílias.
Já os novos modelos seriam aqueles centrados na
comunhão parcial de alguns interesses, não necessariamente duradouros, e mais
centrados no prazer e nas necessidades. Um modelo que contempla relações mais parciais,
menos profundas e mais efêmeras e, às vezes talvez, mas não necessariamente,
mais desumanizadas.
A terceira marca seria a da transparência,
exemplificada nos aplicativos de relacionamentos que exigem que o utilizador
seja direto: o que quer, quando quer e em que condições quer.
Segundo a ótica do jurista, o site exemplificaria a
vontade de estar junto e nada mais. E, poderíamos parar por aqui pensando que
assim como se dizia que “o que não está nos autos não está no mundo”, o que o
que não está claramente especificado no contrato não estaria no mundo das
relações que dizem respeito ao Direito.
Mas sabemos que há sempre mais do que entrelinhas
nos “contratos”, que as expectativas em muito transcendem seus termos
manifestos e, ainda, que a dita transparência não nos exime de questionar se há
equilíbrio entre os poderes que se manifestam nos interesses presentes nas
relações.
Como apontado na primeira parte, o interesse (inter, entre,
mais est, ser, aludindo à ao ser, existir, na convivência com
o outro[2]) sempre está presente nas relações. E é
importante desmistificá-lo. Sendo palavra avalorativa, podemos retirar daqueles
que são interesses econômicos um caráter nem mais nem menos louvável do que
outros como, por exemplo, a companhia e leveza, receber mimos, ter apoio
emocional — interesses que tocam mais à esfera afetiva, ou mesmo interesses da
ordem da sexualidade propriamente dita.
A desmistificação do conceito de interesse nos
coloca, assim, no caminho de enfrentar a dificuldade que temos em considerar de
forma imparcial interesses de ordem distinta. Em geral, julgamos o
relacionamento entre um homem mais velho com boa situação financeira com uma
mulher mais jovem de forma desvalorativa apenas quanto ao interesse da mulher,
inclusive “esquecendo” do outro polo do interessado na relação: o homem. É como
se este fosse vítima, não responsável, por cair na sedução feminina.
Mas não só os interesses que estão presentes em
todas as relações. Elas implicam necessariamente questões relativas ao poder.
No caso da proposta do site o interesse dos homens
se alia ao poder do dinheiro e da idade, o interesse das mulheres se alia ao
poder da sedução da juventude e da estética.
Duas formas de exercício de poder que transcendem o
sexo biológico e que tocam às questões de gênero, socialmente determinadas e
fruto, também, das formas de estruturação e exercício de poder na sociedade. E
é inegável que estas formas ainda estão muito distantes do ideal de igualdade.
Acrescento, ainda, uma quarta marca destes novos
tempos – a do paradoxo. Inevitavelmente as relações, que como vimos envolvem
interesse e poder, também sempre encerram expectativas, conscientes ou não.
Queiramos ou não, somos seres temporais e desejantes, para além da satisfação
de meras necessidades. Assim, acaba por ser um tanto contraditória a ideia de
“estar junto e nada mais”.
Finalmente, não poderia deixar de apontar que a
expressão “transparência nas relações” também é paradoxal. Por leves, efêmeras,
tanto quanto possível despidas de expectativas não claras, as relações têm
sempre substância e significado. E, de alguma forma, as experiências mesmo que
efêmeras deixam marcas na psiquê, ainda que sejam da ordem do vazio, da
insatisfação. E esta, por sua vez, impulsiona com força crescente a paradoxal
busca por .... sites de relacionamento.
[1] ZIMERMAN, David, E. Vocabulário
Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: ARTMED Editora. 2001. p. 102
[2] ZIMERMAN, David, E. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: ARTMED Editora. 2001. p. 220.
[2] ZIMERMAN, David, E. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: ARTMED Editora. 2001. p. 220.
Nenhum comentário:
Postar um comentário