AINDA SOBRE A PENHORABILIDADE DO IMÓVEL DE MORADIA DO FIADOR NA LOCAÇÃO
IMOBILIÁRIA URBANA
Marco Aurélio Bezerra de Melo.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela
Estácio. Professor da EMERJ.
Cumprindo o comando constitucional da
proteção à dignidade humana (art. 1º, III, CF) e, mais tarde, o direito à
moradia como direito social básico (art. 6º, CF com a redação da EC 26/2000), a
lei 8009/90, norma de ordem pública e, portanto, inderrogável pela vontade das
partes, tornou impenhorável o bem imóvel que serve de moradia ao cidadão, assim
como as acessões, benfeitorias e pertenças que guarnecem a residência,
excepcionados os adornos suntuosos ou de luxo, pertencentes ao executado.
Em 1991, por acréscimo trazido pela lei
8245, incluiu-se o inciso VII no rol de exceções da impenhorabilidade a que
alude o artigo 3º da citada lei 8009/90. Trata-se da polêmica previsão da
fiança locatícia imobiliária urbana, a indicar que nessa modalidade de garantia
fidejussória, o fiador que tenha um único imóvel que lhe serve de única moradia
poderá vir a perdê-lo se o locatário não cumprir com a sua obrigação perante o
locador.
O Supremo Tribunal Federal, na pena do
emérito Ministro Carlos Velloso[1],
em decisão monocrática proferida no ano de 2005, reconheceu a
inconstitucionalidade da lei por duplo fundamento: ofensa ao direito de moradia e à isonomia. Significativo se mostra
o seguinte trecho da referida decisão:
“Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de
1991, excepcionando o bem de família do fiador,sujeitou o seu imóvel
residencial, imóvel residencial próprio do
casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva
trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o
princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do
velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em
vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de
Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado
dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi
recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se acentua diante do fato
de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito
à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de
família Lei 8.009/90, art. 1º encontra justificativa, foi dito linha atrás, no
constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e
por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do
art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi
recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000.”.
Na doutrina, importantes vozes defendem
a tese da inconstitucionalidade da norma[2],
mas o fato é que o entendimento majoritário na jurisprudência tem sido pela
constitucionalidade.
No Supremo Tribunal Federal,
a tese da inconstitucionalidade não fez eco. Após a citada decisão monocrática,
o Pleno, ainda que por maioria, vencidos os Ministros Carlos Britto, Eros Grau
e Celso de Mello, entendeu pela constitucionalidade da norma especial[3]. No
Superior Tribunal de Justiça, a questão acabou sendo afetada pelo regime de recursos repetitivos e a
egrégia Segunda Seção, na esteira de antigo verbete aprovado por maioria no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[4],
entendeu que “é válida a penhora de bem de família pertencente a
fiador de contrato de locação.”. (Súmula 549, Segunda Seção, julgado em
14/10/2015, DJe 19/10/2015).
É óbvio que o fundamento jurídico da
tese majoritária na jurisprudência está blindado pelos melhores propósitos de
incrementar a oferta de imóveis para a locação, notadamente para fins
residenciais, mas trata-se, em nosso modo de sentir, de um grande equívoco dos
poderes legislativo e judiciário, animado por argumentos ad terrorem do fundamental mercado imobiliário, no sentido de que
os locadores preferirão deixar os imóveis vazios ou que sem essa regra não haverá
garantia na locação, aumentando ainda mais o déficit habitacional como se este
tivesse como causa a penhorabilidade do imóvel de moradia do fiador.
Com todo respeito às opiniões em
contrário, na legalidade constitucional que prima pela isonomia, direito à
moradia em posição de supremacia em relação ao direito de crédito, tendo em
vista a primazia da proteção da dignidade humana, não há espaço para tal
construção jurídica.
Com relação ao direito à moradia a
hipótese é de não recepção dessa parte da lei 8009/90 com a redação dada pela
lei do inquilinato, pois há uma demonstração explícita do afastamento do
direito social à moradia, particularizada a um contratante e em atenção ao
interesse privatista do locador, desprestigiando os paradigmas da justiça social.
Entretanto, mais eloquente é a
inconstitucionalidade por falta de isonomia. Como se justifica que o locatário
seja titular do direito à moradia e tenha o seu único imóvel para fins de
moradia impenhorável e o responsável que não tem o dever primário de pagamento
do aluguel não possa se socorrer de tal direito? Sobre esse ponto, perverso tem
se mostrado o entendimento da jurisprudência sobre a penhorabilidade do único
imóvel de moradia do locatário na ação fundada no direito de sub-rogação. Sob o
justificável argumento de que não se pode conferir interpretação extensiva a
normas que restringem direitos[5],
os Tribunais[6],
em maioria, têm rechaçado essa legítima pretensão do fiador contra o locatário.
Oxalá que a óbvia submissão do atual
Código de Processo Civil à Constituição Federal (art. 1º) não seja obstaculizada
pela preocupação com a estabilidade da jurisprudência e essa triste tese seja
superada (overruling) com as cautelas
propugnadas pelos parágrafos segundo, terceiro e quarto do artigo 927 da mesma
lei.
A ignomínia da penhora do imóvel de
moradia do fiador que tanto desespero tem levado a diversas famílias desde a
entrada em vigor da atual lei do inquilinato há de cessar ou então que
confessemos a nossa incompetência em dotar a locação imobiliária urbana de uma
efetiva garantia aos locadores.
Há muitas possibilidades no ordenamento
jurídico, mas pode existir um descaso mental diante de uma jurisprudência tão confortável
para os interesses do locador e até mesmo do locatário que não será alvejado
pela penhora de eventual imóvel de moradia de sua titularidade.
[2]
Eliane Maria Barreiros Aina. O Fiador e o Direito à Moradia. Direito Fundamental à
Moradia frente à Situação do Fiador Proprietário do Bem de Família. 2002, p.
123/124; Gildo dos Santos. Locação e Despejo. Comentários à lei
8.245/91. 4ª ed. 2001, p. 123/146; Flávio
Tartuce. Teoria Geral dos Contratos e
Contratos em Espécie. 10ª ed. 2015, p. 486/493; Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho. Contratos em Espécie. 6ª ed. 2013, p. 629/632; Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald. Contratos. 5ª ed.
2015, p. 1043/1044.
[3] Fiador.
Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade
solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de
família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto
no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90,
com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos
vencidos. A penhorabilidade do bem de
família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei
nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de
outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República
(RE 407688, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-05 PP-00880 RTJ VOL-00200-01 PP-00166 RJSP v. 55, n. 360, 2007, p. 129-147).
(RE 407688, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 06-10-2006 PP-00033 EMENT VOL-02250-05 PP-00880 RTJ VOL-00200-01 PP-00166 RJSP v. 55, n. 360, 2007, p. 129-147).
[4] Súmula nº 63: “Cabe a incidência
de penhora sobre imóvel único do fiador de contrato de locação, Lei nº. 8009/90
(art. 3º, VII) e Lei nº. 8245/91.” Referência: Súmula da Jurisprudência
Predominante nº. 2001.146.00005. Julgamento em 24/06/2002. Relator:
Desembargador Paulo Ventura. Votação por maioria. Registro do Acórdão em
14/08/2003.
[5]
Defendendo a possibilidade de interpretação extensiva para alcançar o imóvel de
moradia do locatário: Gabriel Seijo Leal
de Figueiredo. Contrato de Fiança. 2010,
p. 179/181.
[6] Ação de regresso, decorrente de fiança concedida em contrato de
locação, em fase de cumprimento de sentença. Não estando caracterizada nenhuma
das hipóteses previstas no art. 3º, da Lei 8.009/90, que trata das exceções à
regra da impenhorabilidade, e estando evidenciado que o imóvel constrito é bem
de família do executado, o levantamento da penhora é medida que se impõe.
Recurso provido. (Relator(a): Gomes Varjão; Comarca: Diadema; Órgão julgador:
34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/10/2016; Data de
registro: 10/10/2016).
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