Debate com André
Barros. Jornal Carta Forense. Edição de Janeiro de 2017. Matéria de capa. Penhora
de bem de família de alto valor.
Penhora
do Bem de Família de alto valor: impossibilidade
Flávio Tartuce. Advogado.
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD.
Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do
IBDFAM/SP. Autor do Grupo GEN Editorial.
O bem de família é um dos temas mais controvertidos
do Direito brasileiro, trazendo debates interessantes sobre a interpretação da
Lei n. 8.009/1990. Uma dessas questões de discussão jurídica diz respeito à
existência ou não de um teto para o valor do imóvel que deve
ser considerado como impenhorável, por força do art. 1º da citada norma
jurídica.
Com o devido respeito ao posicionamento em
contrário, parece-nos correta a conclusão que não estabelece limite de valor
para o bem de família. Pensamos que essa afirmação deve ser mantida na vigência
do Código de Processo Civil de 2015, a despeito de eventual posicionamento em
contrário, que pretende levar em conta algum parâmetro. Nessa linha de
pensamento, colaciona-se acórdão anterior do Superior Tribunal de Justiça,
assim publicado no seu Informativo 441: “Penhora. Bem de
Família. Valor Vultoso. Na espécie, o mérito da controvérsia é saber se o
imóvel levado à constrição situado em bairro nobre de capital e com valor
elevado pode ser considerado bem de família para efeito da proteção legal de
impenhorabilidade, caso em que não há precedente específico sobre o tema no
STJ. Ressalta o Min. Relator que, nos autos, é incontroverso o fato de o
executado não dispor de outros bens capazes de garantir a execução e que a Lei
n. 8.009/1990 não distingue entre imóvel valioso ou não, para efeito da
proteção legal da moradia. Logo o fato de ser valioso o imóvel não retira sua
condição de bem de família impenhorável. Com esse entendimento, a Turma
conheceu em parte do recurso e lhe deu provimento para restabelecer a sentença.
Precedentes citados do STF: RE 407.688-8-SP, DJ 06.10.2006; do
STJ: REsp 1.024.394-RS, DJe 14.03.2008; REsp 831.811-SP, DJe 05.08.2008;
AgRg no Ag 426.422-PR, DJe 12.11.2009; REsp
1.087.727-GO, DJe 16.11.2009, e REsp 1.114.719-SP, DJe 29.06.2009”
(STJ, REsp. 715.259/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.08.2010).
Interessante perceber que o próprio Relator do
último acórdão, o Ministro Luis Felipe Salomão, propôs, em setembro de 2016,
uma revisão daquela posição anterior, quando do julgamento do Recurso Especial
1.351.571/SP. Segundo o magistrado, “o princípio da isonomia se vê afrontado
por situação que privilegia determinado sujeito sem a correspondente razão que
justifica esse privilégio. A questão exige muito mais que a simples
interpretação literal da norma legal”. E mais, de acordo com as suas palavras:
“a proposta é de afastamento da absoluta impenhorabilidade, e da possibilidade
de ser afastada diante do caso concreto e da ponderação dos direitos em jogo.
Não a imposição de nova sistemática. Se o objetivo da lei é garantir a
dignidade humana e direito à moradia, acaso deferida, os bens jurídicos
manterão incólumes. Ela continua morando em local com dignidade, superior à
média”.
Apesar dos louváveis argumentos do Ministro
Relator, a Quarta Turma do Tribunal da Cidadania acabou por confirmar a posição
anterior, tendo se posicionado pela manutenção da impenhorabilidade do bem de
família de alto valor os Ministros Marcos Buzzi – com voto prevalecente –,
Maria Isabel Gallotti, Raul Araújo e Antonio Carlos Ferreira.
Como o devido respeito ao Ministro Salomão – com
quem compartilhamos diversas posições sobre o Direito Privado Brasileiro –,
aqui ficamos com a maioria dos julgadores. As indagações e ponderações do
voto-vista do Ministro Buzzi demonstram todas as dificuldades que surgem da
tentativa de limitação de um montante fixo para o imóvel protegido pelo manto
da impenhorabilidade: “o que é considerado bem de alto valor? Qual o patamar
monetário a ser utilizado? O valor venal do imóvel, a quantia estipulada pelo
mercado imobiliário, o critério pessoal do credor ou do julgador? Certamente,
não fosse o tema tão intrigante e com inúmeros vetores econômicos, sociais,
desenvolvimentistas, já se teria estipulado, inclusive, o imposto sobre grandes
fortunas, porém nesse campo as indagações são as mesmas: o que é considerado
grande fortuna? Qual o patamar monetário a ser considerado? etc. Como é sabido,
o Brasil é um país continental, para cada região e localidade os critérios e
padrões afetos tanto a valores necessários para a sobrevivência digna do ser
humano como aqueles referentes ao mercado imobiliário são absolutamente
diversos. Tanto o é que, na hipótese, o próprio credor afirma gravitar o valor
de avaliação do imóvel entre R$ 470.000,00 e R$ 1.200.000,00, ou seja, uma
diferença monetária subjetiva de mais de 250 por cento (2 vezes e meia), a
denotar a total ausência de critério minimante objetivo para a aferição da
grandeza imobiliária, bem ainda do que se compreende por alto valor”
(julgamento do Recurso Especial 1.351.571/SP).
De fato, na linha desse voto e dos outros que
seguiram, pensamos que o parâmetro para a fixação do que seja bem de alto valor
deve ser fixado pelo legislador, e não pelo julgador. Em complemento, tal
limitação deve ser inserida de forma expressa no art. 3º da Lei n. 8.009/1990,
norma que estabelece taxativamente as exceções à impenhorabilidade do imóvel
destinado à residência da entidade familiar. Não se olvide, na linha do
que reconheceu o Ministro Buzzi, que o STJ tem dado uma interpretação extensiva
para a tutela do bem de família, como o fez ao editar a sua Súmula 364, que
reconhece a impenhorabilidade do imóvel onde reside pessoa solteira, separada
ou viúva. Eventual limitação de valor pelo Tribunal está na contramão dessa
posição superior, representando um contrassenso em relação a outras teses da
própria Corte.
Como palavras finais, não se pode negar que o Novo
Código de Processo Civil traz quebras quanto às proteções pela
impenhorabilidade. Tanto isso é verdade que o seu art. 833 passou a elencar os bens
impenhoráveis e não mais absolutamente impenhoráveis, como
constava do art. 649 do CPC/1973, seu correspondente. Houve, nessa mudança, um
claro sentido de abrandamento. Além disso, a própria norma
processual emergente reconhece a possibilidade de penhora de pensões, salários
e rendimentos em montantes superiores a cinquenta salários mínimos (art. 833, §
2º). Todavia, no que diz respeito ao bem de família nada inovou quanto a um teto
de proteção. Como o legislador processual não o fez – e talvez tenha
perdido a chance de fazê-lo –, não cabe ao julgador tal tarefa, sob pena de
sacrifício de proteção da moradia, direito social e fundamental amparado pelo
art. 6º da Constituição da República.
Penhora
do Bem de Família de alto valor: possibilidade
André Borges de Carvalho Barros. Registrador civil. Doutorando
pela FADISP e Mestre pela PUCSP. Professor de Direito Civil e do Consumidor do
Curso Damásio e da Escola Paulista de Direito.
A despatrimonialização do
direito civil e a consagração do ser como fim e não como meio do direito
resultaram no reconhecimento de diversos direitos da personalidade voltados à
proteção dos mais variados aspectos da integridade física, psíquica e
intelectual da pessoa humana. Contudo, o efetivo abrigo da dignidade da pessoa
humana demanda, além dos direitos da personalidade, a proteção de um mínimo patrimonial que atenda às
necessidades mais básicas do ser, como reconheceu o professor e ministro do STF
Luiz Edson Fachin em sua famosa obra “Estatuto jurídico do patrimônio mínimo”.
Neste sentido, o bem de família é, sem dúvida, o exemplo mais forte da
importância do patrimônio para a consagração da dignidade do indivíduo,
garantindo o direito social à moradia do devedor face ao crédito de outrem.
De acordo com a Lei 8.009/90 o bem de família legal é impenhorável, não respondendo por
qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra
natureza, contraída pelos seus titulares, salvo nas hipóteses excepcionadas no
artigo 3º, como a obrigação decorrente de alimentos, hipoteca, fiança, tributos
relativos ao próprio imóvel etc.
Embora não exista qualquer limitação expressa na
Lei 8.009/90 quanto ao valor do
imóvel para que seja protegido como bem de família, algumas disposições restritivas chamam a
atenção e merecem ser destacadas. Como a regra presente no artigo 5º, parágrafo
único, pela qual se a pessoa for titular de vários imóveis utilizados como
residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado como bem de
família voluntário, nos termos e nos limites estabelecidos pelo Código Civil. Sim, o Código Civil
limita o valor do bem de família voluntário a uma terça parte do patrimônio líquido da pessoa, apurada no
momento da instituição.
Voltando à Lei 8.009/90, o artigo 4º determina que não será protegido aquele que,
sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar,
desfazendo-se ou não da moradia antiga. Reconhecendo este propósito o juiz
poderá, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a
moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para
execução ou concurso.
Tratando-se de imóvel rural, o parágrafo 2º do
mesmo artigo 4º da Lei 8.009/90, dispõe que a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com
os respectivos bens móveis, e, com relação às dívidas decorrentes de sua
atividade produtiva à área limitada como pequena propriedade rural (art. 5º, inciso XXVI, CF).
Quantos aos móveis, pertences e utilidades
domésticas que guarnecem a residência, o artigo 833, inciso II, do novo Código
de Processo Civil, manteve a regra introduzida no diploma anterior pela Lei
11.382/06, pela qual a impenhorabilidade não alcança aqueles de elevado valor e os que
ultrapassem as necessidades comuns
correspondentes a um médio padrão
de vida;
A existência de exceções à impenhorabilidade e de
tantas regras restritivas não pode ser ignorada. O legislador brasileiro não
instituiu um direito absoluto, mas limitado e vinculado a um fim específico: o
direito à moradia digna. A ausência de limite quanto ao valor ou tamanho do imóvel urbano destoa da própria ratio do instituto desvirtuando-o. Afinal qual a lógica em
restringir a proteção de acordo com o tamanho do imóvel rural e não fazê-lo
quanto ao urbano?
A quebra
da isonomia fica ainda mais evidente quanto nos atentamos ao fato
de que a restrição da área rural pode diminuir ou até extinguir a fonte de
sustento do homem do campo, enquanto que a restrição do tamanho do imóvel
urbano não afeta a sobrevivência do homem da cidade que normalmente garante seu
sustento com o trabalho externo. Não bastasse a antinomia valorativa do próprio ordenamento jurídico, no
plano dos fatos a situação não se revela diferente.
A inexistência de restrição ao valor do imóvel dá
azo a situações teratológicas,
não sendo incomum a proteção de um devedor milionário diante de credores não
tão favorecidos economicamente. Não é demais lembrar que quando da ampliação
dos direitos do trabalhador doméstico, a Lei Complementar 150/2015 revogou o
inciso I do artigo 3º, que afastava a impenhorabilidade para execução dos
respectivos créditos. Desta forma, o empregado doméstico não pode mais requerer
a penhora do imóvel em que trabalhava para garantir o seu salário, ainda que o imóvel
seja de altíssimo valor.
É evidente que nesta época de excessivo subjetivismo judicial, a solução ideal
para a questão da penhorabilidade do imóvel de elevado valor deveria ser
apresentada pelo legislador,
com a discriminação objetiva de limites pela extensão ou valor do bem, e
restringindo a possibilidade a determinados créditos (ex: trabalhistas).
Enquanto isso não ocorre, é possível a limitação da impenhorabilidade em
situações absurdas com base na própria constituição federal, identificando qual
é o direito patrimonial que efetivamente consagra o princípio da dignidade da
pessoa humana.
O que garante a proteção do direito patrimonial do
devedor (propriedade) face ao direito patrimonial do credor (crédito) é a pressuposição de que o primeiro
consagra a dignidade do ser humano, ao garantir a moradia, e o segundo não.
Pois bem, na prática essa pressuposição pode não se confirmar e se apresentar
de forma oposta, como exemplificamos acima. A impossibilidade de penhorar um
bem de família de elevado valor para executar o crédito de um trabalhador pode
afetar a sua própria sobrevivência: sem receber o seu salário não conseguirá
arcar com os custos de sua alimentação, saúde e até mesmo moradia (aluguel,
condomínio, prestação de financiamento). Indaga-se: apenas o devedor tem
direito à moradia? Apenas o devedor tem direitos existenciais e sociais?
É imperioso reconhecer que em situações muito
peculiares o direito ao crédito pode estar mais próximo do cumprimento do
comando constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana do que a
impenhorabilidade do bem de família de elevado valor. O direito à moradia que
pode estar sob risco é o do credor e não o do devedor, pois com a arrematação
do bem de elevado o juiz deverá reservar para o devedor uma parcela
considerável do valor obtido para aquisição de outro imóvel residencial.
Não é demais dizer que é somente na hipótese de deslocamento do fundamento axiológico (proteção
da dignidade da pessoa humana) da propriedade para o crédito, do devedor para o
credor, que entendemos possível afastar a proteção do bem de família de elevado
valor. Em hipóteses em que o crédito não tem lastro na dignidade da pessoa
humana e em direitos existenciais (credor abastado, crédito de dívidas fiscais,
bancárias etc.) ou em que o bem de família tem valor moderado tal medida é
inconstitucional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário