A PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. O DEBATE CONTINUA.[1]
FLÁVIO TARTUCE[2]
Como temos ressaltado em alguns trabalhos, o Bem de Família está situado no centro de importantes discussões do Direito Privado Contemporâneo. Como é notório, o instituto recebe atualmente um duplo tratamento legislativo, tanto no Código Civil de 2002 quanto na Lei n. 8.009/1990.
De início, o Código Civil de 2002 disciplina o que convém denominar como Bem de Família Voluntário ou Convencional, aquele que é instituído por escritura pública ou testamento, que deve ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis. O instituto estava previsto na Parte Geral do Código Civil de 1916, entre os arts. 70 a 73. O Código Civil de 2002 deslocou-o para a Parte Especial, no livro que regulamenta o Direito de Família, entre os arts. 1.711 a 1.722, o que é plenamente justificável do ponto de vista metodológico. Esse Bem de Família, além de ser impenhorável, é inalienável, em regra, por força do art. 1.717 da atual codificação.
Além dessa modalidade, continua em vigor o tratamento que já constava da Lei n. 8.009/1990, cuja origem está no trabalho acadêmico de Álvaro Villaça Azevedo, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Trata-se do Bem de Família Legal, havendo uma proteção automática, pelo manto da impenhorabilidade, do imóvel destinado à residência da entidade familiar. Ressalte-se que o próprio professor Villaça, em sua tese de doutorado que originou ideologicamente o projeto legislativo, já defendia a existência dessas duas modalidades de Bem de Família (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 195).
Pois bem, um dos temas que tem gerado intensos debates jurídicos nos últimos anos é aquele referente ao que consta do art. 3º, inc. VII, da Lei n. 8.009/1990, que ao tratar das exceções da impenhorabilidade, prevê que o imóvel de residência do fiador da locação urbana pode ser penhorado. È importante anotar que, historicamente, a previsão não constava da norma original, tendo sido acrescentada pelo art. 82 da Lei n. 8.245/1991, a Lei de Locações Urbanas.
Em relação ao tema, sempre divergiram doutrina e jurisprudência quanto à sua suposta inconstitucionalidade. Porém, vinha prevalecendo no Superior Tribunal de Justiça, salvo alguns poucos julgados, o entendimento pela penhorabilidade, tese também acolhida em São Paulo pelo extinto Segundo Tribunal de Alçada Civil em sua maioria.
Entretanto, parte da doutrina, principalmente formada por civilistas da nova geração, vem sustentando ser essa previsão inconstitucional, por violar a isonomia. O principal argumento, além da proteção da moradia que consta do art. 6º da Constituição – norma que tem aplicação imediata e que não pode ser tida como programática -, é uma clara lesão à isonomia, à proporcionalidade, à razoabilidade. Isso porque o locatário, devedor principal que é, não perde o Bem de Família ao contrário do fiador da locação que pode perdê-lo. É notório que a fiança é contrato acessório e, sendo assim, não pode trazer mais deveres ou obrigações do que o contrato principal. Em suma, a desproporção legislativa, em uma análise sistemática, é flagrante. Na civilística contemporânea, são adeptos desse entendimento, entre outros, José Fernando Simão, Anderson Schreiber, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Marcelo Junqueira Calixto, Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves de Farias, Rosalice Fidalgo Pinheiro e Katya Isaguirre. Estamos filiados a essa corrente, desde o ano de 2005 (TARTUCE, Flávio. A penhora do Bem de Família do fiador de locação. Abordagem atualizada. Texto publicado na Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, n. 40, mar. abr/2006. p. 11-15).
A tese da inconstitucionalidade chegou a ser adotada pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, em conhecida decisão monocrática (STF, RE 352940/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 25/04/2005). Contudo, infelizmente, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou a questão no dia 8 de fevereiro de 2006 e, por maioria de votos, concluiu ser constitucional a previsão do art. 3.º, inc. VII, da Lei 8.009/1990.
Segundo o relator da decisão, Ministro Cezar Peluso, a lei do Bem de Família é clara ao prever a possibilidade de penhora do imóvel de residência de fiador de locação de imóvel urbano, sendo esta regra inafastável. Entendeu, ainda, que a pessoa tem plena liberdade de querer ou não assumir a condição de fiadora, devendo subsumir a norma infraconstitucional se assim o faz, não havendo qualquer lesão à isonomia constitucional. Por fim, alegou que a norma protege o mercado imobiliário, devendo ainda ter aplicação, nos termos do art. 170 da CF/1988. Votaram com ele os Ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim (STF, RE 407688/SP, SÃO PAULO, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Julgamento: 08/02/2006).
A votação não foi unânime, pois entenderam pela inconstitucionalidade do comando legal os Ministros Eros Grau, Ayres Brito e Celso de Mello. Em seu voto, o Ministro Eros Grau ressaltou a grande preocupação dos civilistas em defender os preceitos constitucionais, apontando que a previsão do art. 3.º, inc. VII, da Lei 8.009/1990 viola a isonomia constitucional.
Resumindo, o debate jurídico parece ter sido encerrado com a referida decisão do STF. Ledo engano. Não entendemos dessa forma, o que pode ser percebido pela divergência gerada no próprio Tribunal Superior. A chama da nossa esperança permanece viva, até porque existem projetos legislativos de revogação do inc. VII do art. 3.º da Lei 8.009/1990, norma essa que é totalmente incompatível com a Constituição Federal.
Ademais, não obstante a decisão do STF, alguns Tribunais Estaduais, como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tem entendido pela inconstitucionalidade da previsão, pela flagrante lesão à isonomia e à proteção da moradia. Cumpre destacar uma dessas corajosas decisões:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO - EMBARGOS À EXECUÇÃO JULGADOS IMPROCEDENTES - APELAÇÃO - EFEITO SUSPENSIVO - PENHORA - IMÓVEL DO FIADOR - BEM DE FAMÍLIA - DIREITO À MORADIA - VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE HUMANA E IGUALDADE - IRRENUNCIABILIDADE. A partir da Emenda Constitucional nº. 26/2000, a moradia foi elevada à condição de direito fundamental, razão pela qual a regra da impenhorabilidade do bem de família foi estendida ao imóvel do fiador, caso este seja destinado à sua moradia e à de sua família. No processo de execução, o princípio da dignidade humana deve ser considerado, razão pela qual o devedor, principalmente o subsidiário, não pode ser levado à condição de penúria e desabrigo para que o crédito seja satisfeito. Em respeito ao princípio da igualdade, deve ser assegurado tanto ao devedor fiador quanto ao devedor principal do contrato de locação o direito à impenhorabilidade do bem de família. Por tratar-se de norma de ordem pública, com status de direito social, a impenhorabilidade não poderá ser afastada por renúncia do devedor, em detrimento da família” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, Número do processo: 1.0480.05.076516-7/002(1), Relator: D. VIÇOSO RODRIGUES, Relator do Acordão: FABIO MAIA VIANI, Data do Julgamento: 19/02/2008, Data da Publicação: 13/03/2008).
Desse julgado, pode ser mencionado o voto do Desembargador Elpídio Donizetti, no sentido de que “Conquanto o próprio STF tenha decidido, conforme já ressaltado, pela aplicação do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, penso que a solução deva se dar em sentido oposto. Em primeiro lugar, verifica-se que a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, incluiu a moradia entre os direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88, o qual constitui norma ordem pública. Ora, ao proceder de tal maneira, o constituinte nada mais fez do que reconhecer o óbvio: a moradia como direito fundamental da pessoa humana para uma vida digna em sociedade. Com espeque na alteração realizada pela Emenda Constitucional nº 26 e no próprio escopo da Lei 8.009/90, resta claro que as exceções previstas no art. 3º dessa lei não podem ser tidas como irrefutáveis, sob pena de dar cabo, em alguns casos, à função social que exerce o bem de família, o que não pode ser admitido. (...). Não se olvida que a penhorabilidade do bem de família do fiador, além de afrontar o direito à moradia, fere os princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade. Isso devido ao fato de que não há razão para estabelecer tratamento desigual entre o locatário e o seu fiador, sobretudo porque a obrigação do fiador é acessória à do locatário, e, assim, não há justificativa para prever a impenhorabilidade do bem de família em relação a este e vedá-la em relação àquele. Por derradeiro, insubsistente é o argumento de que a possibilidade de penhora do bem de família do fiador estimula e facilita o acesso à habitação arrendada. É que, diante tal possibilidade, poucos se aventurarão a prestar fiança, o que dificultará sobremaneira o cumprimento de tal requisito por parte do locatário, que terá a penosa tarefa de conseguir um fiador”.
As palavras transcritas nos entusiasmam, pois assim também vemos a proteção da moradia que consta do art. 6º da CF/1988 e a questão da desproporção legislativa. A chama da nossa esperança fica ainda mais intensa, uma vez que o dogma da justiça segura cede espaço à justiça justa. Com essa idéia de justiça está se construindo o Direito Contemporâneo, sempre a partir de constantes diálogos interdisciplinares (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre peixes e afeto – um devaneio sobre a ética no Direito de Família. In Família e dignidade humana. Coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006, p. 426). Muito mais do que uma questão de jogos, a proteção da moradia representa a proteção da própria pessoa humana, pois é em sua casa que o ser humano se concretiza. Concluindo, o debate continua.
[1] Artigo publicado no Jornal Carta Forense, edição de setembro de 2008. Trabalho escrito em agosto de 2008.
[2] Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Graduado pela Faculdade de Direito da USP. Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo). Professor convidado da ESA/OAB-SP, de outros cursos de pós-graduação e em escolas de magistratura. Professor do Curso Flávio Monteiro de Barros, presencial e telepresencial. Autor de obras pela Editora Método. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
FLÁVIO TARTUCE[2]
Como temos ressaltado em alguns trabalhos, o Bem de Família está situado no centro de importantes discussões do Direito Privado Contemporâneo. Como é notório, o instituto recebe atualmente um duplo tratamento legislativo, tanto no Código Civil de 2002 quanto na Lei n. 8.009/1990.
De início, o Código Civil de 2002 disciplina o que convém denominar como Bem de Família Voluntário ou Convencional, aquele que é instituído por escritura pública ou testamento, que deve ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis. O instituto estava previsto na Parte Geral do Código Civil de 1916, entre os arts. 70 a 73. O Código Civil de 2002 deslocou-o para a Parte Especial, no livro que regulamenta o Direito de Família, entre os arts. 1.711 a 1.722, o que é plenamente justificável do ponto de vista metodológico. Esse Bem de Família, além de ser impenhorável, é inalienável, em regra, por força do art. 1.717 da atual codificação.
Além dessa modalidade, continua em vigor o tratamento que já constava da Lei n. 8.009/1990, cuja origem está no trabalho acadêmico de Álvaro Villaça Azevedo, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Trata-se do Bem de Família Legal, havendo uma proteção automática, pelo manto da impenhorabilidade, do imóvel destinado à residência da entidade familiar. Ressalte-se que o próprio professor Villaça, em sua tese de doutorado que originou ideologicamente o projeto legislativo, já defendia a existência dessas duas modalidades de Bem de Família (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 195).
Pois bem, um dos temas que tem gerado intensos debates jurídicos nos últimos anos é aquele referente ao que consta do art. 3º, inc. VII, da Lei n. 8.009/1990, que ao tratar das exceções da impenhorabilidade, prevê que o imóvel de residência do fiador da locação urbana pode ser penhorado. È importante anotar que, historicamente, a previsão não constava da norma original, tendo sido acrescentada pelo art. 82 da Lei n. 8.245/1991, a Lei de Locações Urbanas.
Em relação ao tema, sempre divergiram doutrina e jurisprudência quanto à sua suposta inconstitucionalidade. Porém, vinha prevalecendo no Superior Tribunal de Justiça, salvo alguns poucos julgados, o entendimento pela penhorabilidade, tese também acolhida em São Paulo pelo extinto Segundo Tribunal de Alçada Civil em sua maioria.
Entretanto, parte da doutrina, principalmente formada por civilistas da nova geração, vem sustentando ser essa previsão inconstitucional, por violar a isonomia. O principal argumento, além da proteção da moradia que consta do art. 6º da Constituição – norma que tem aplicação imediata e que não pode ser tida como programática -, é uma clara lesão à isonomia, à proporcionalidade, à razoabilidade. Isso porque o locatário, devedor principal que é, não perde o Bem de Família ao contrário do fiador da locação que pode perdê-lo. É notório que a fiança é contrato acessório e, sendo assim, não pode trazer mais deveres ou obrigações do que o contrato principal. Em suma, a desproporção legislativa, em uma análise sistemática, é flagrante. Na civilística contemporânea, são adeptos desse entendimento, entre outros, José Fernando Simão, Anderson Schreiber, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Marcelo Junqueira Calixto, Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves de Farias, Rosalice Fidalgo Pinheiro e Katya Isaguirre. Estamos filiados a essa corrente, desde o ano de 2005 (TARTUCE, Flávio. A penhora do Bem de Família do fiador de locação. Abordagem atualizada. Texto publicado na Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, n. 40, mar. abr/2006. p. 11-15).
A tese da inconstitucionalidade chegou a ser adotada pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, em conhecida decisão monocrática (STF, RE 352940/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 25/04/2005). Contudo, infelizmente, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou a questão no dia 8 de fevereiro de 2006 e, por maioria de votos, concluiu ser constitucional a previsão do art. 3.º, inc. VII, da Lei 8.009/1990.
Segundo o relator da decisão, Ministro Cezar Peluso, a lei do Bem de Família é clara ao prever a possibilidade de penhora do imóvel de residência de fiador de locação de imóvel urbano, sendo esta regra inafastável. Entendeu, ainda, que a pessoa tem plena liberdade de querer ou não assumir a condição de fiadora, devendo subsumir a norma infraconstitucional se assim o faz, não havendo qualquer lesão à isonomia constitucional. Por fim, alegou que a norma protege o mercado imobiliário, devendo ainda ter aplicação, nos termos do art. 170 da CF/1988. Votaram com ele os Ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim (STF, RE 407688/SP, SÃO PAULO, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Julgamento: 08/02/2006).
A votação não foi unânime, pois entenderam pela inconstitucionalidade do comando legal os Ministros Eros Grau, Ayres Brito e Celso de Mello. Em seu voto, o Ministro Eros Grau ressaltou a grande preocupação dos civilistas em defender os preceitos constitucionais, apontando que a previsão do art. 3.º, inc. VII, da Lei 8.009/1990 viola a isonomia constitucional.
Resumindo, o debate jurídico parece ter sido encerrado com a referida decisão do STF. Ledo engano. Não entendemos dessa forma, o que pode ser percebido pela divergência gerada no próprio Tribunal Superior. A chama da nossa esperança permanece viva, até porque existem projetos legislativos de revogação do inc. VII do art. 3.º da Lei 8.009/1990, norma essa que é totalmente incompatível com a Constituição Federal.
Ademais, não obstante a decisão do STF, alguns Tribunais Estaduais, como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tem entendido pela inconstitucionalidade da previsão, pela flagrante lesão à isonomia e à proteção da moradia. Cumpre destacar uma dessas corajosas decisões:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO - EMBARGOS À EXECUÇÃO JULGADOS IMPROCEDENTES - APELAÇÃO - EFEITO SUSPENSIVO - PENHORA - IMÓVEL DO FIADOR - BEM DE FAMÍLIA - DIREITO À MORADIA - VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE HUMANA E IGUALDADE - IRRENUNCIABILIDADE. A partir da Emenda Constitucional nº. 26/2000, a moradia foi elevada à condição de direito fundamental, razão pela qual a regra da impenhorabilidade do bem de família foi estendida ao imóvel do fiador, caso este seja destinado à sua moradia e à de sua família. No processo de execução, o princípio da dignidade humana deve ser considerado, razão pela qual o devedor, principalmente o subsidiário, não pode ser levado à condição de penúria e desabrigo para que o crédito seja satisfeito. Em respeito ao princípio da igualdade, deve ser assegurado tanto ao devedor fiador quanto ao devedor principal do contrato de locação o direito à impenhorabilidade do bem de família. Por tratar-se de norma de ordem pública, com status de direito social, a impenhorabilidade não poderá ser afastada por renúncia do devedor, em detrimento da família” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, Número do processo: 1.0480.05.076516-7/002(1), Relator: D. VIÇOSO RODRIGUES, Relator do Acordão: FABIO MAIA VIANI, Data do Julgamento: 19/02/2008, Data da Publicação: 13/03/2008).
Desse julgado, pode ser mencionado o voto do Desembargador Elpídio Donizetti, no sentido de que “Conquanto o próprio STF tenha decidido, conforme já ressaltado, pela aplicação do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, penso que a solução deva se dar em sentido oposto. Em primeiro lugar, verifica-se que a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, incluiu a moradia entre os direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88, o qual constitui norma ordem pública. Ora, ao proceder de tal maneira, o constituinte nada mais fez do que reconhecer o óbvio: a moradia como direito fundamental da pessoa humana para uma vida digna em sociedade. Com espeque na alteração realizada pela Emenda Constitucional nº 26 e no próprio escopo da Lei 8.009/90, resta claro que as exceções previstas no art. 3º dessa lei não podem ser tidas como irrefutáveis, sob pena de dar cabo, em alguns casos, à função social que exerce o bem de família, o que não pode ser admitido. (...). Não se olvida que a penhorabilidade do bem de família do fiador, além de afrontar o direito à moradia, fere os princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade. Isso devido ao fato de que não há razão para estabelecer tratamento desigual entre o locatário e o seu fiador, sobretudo porque a obrigação do fiador é acessória à do locatário, e, assim, não há justificativa para prever a impenhorabilidade do bem de família em relação a este e vedá-la em relação àquele. Por derradeiro, insubsistente é o argumento de que a possibilidade de penhora do bem de família do fiador estimula e facilita o acesso à habitação arrendada. É que, diante tal possibilidade, poucos se aventurarão a prestar fiança, o que dificultará sobremaneira o cumprimento de tal requisito por parte do locatário, que terá a penosa tarefa de conseguir um fiador”.
As palavras transcritas nos entusiasmam, pois assim também vemos a proteção da moradia que consta do art. 6º da CF/1988 e a questão da desproporção legislativa. A chama da nossa esperança fica ainda mais intensa, uma vez que o dogma da justiça segura cede espaço à justiça justa. Com essa idéia de justiça está se construindo o Direito Contemporâneo, sempre a partir de constantes diálogos interdisciplinares (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre peixes e afeto – um devaneio sobre a ética no Direito de Família. In Família e dignidade humana. Coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM, 2006, p. 426). Muito mais do que uma questão de jogos, a proteção da moradia representa a proteção da própria pessoa humana, pois é em sua casa que o ser humano se concretiza. Concluindo, o debate continua.
[1] Artigo publicado no Jornal Carta Forense, edição de setembro de 2008. Trabalho escrito em agosto de 2008.
[2] Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Graduado pela Faculdade de Direito da USP. Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo). Professor convidado da ESA/OAB-SP, de outros cursos de pós-graduação e em escolas de magistratura. Professor do Curso Flávio Monteiro de Barros, presencial e telepresencial. Autor de obras pela Editora Método. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
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