VIAS DE FATO E VIOLÊNCIA SEXISTA.
Jones Figueirêdo Alves
1. Vias de fato por atos de agressão
comprometem a incolumidade física da vítima, e embora sem provocar lesões que
afetem a integridade corporal, materialmente apresentam-se, em geral,
configuradas por empurrões, “sacudidas”, socos e pontapés, vestes rasgadas, abusos
verbais, etc.; sem quaisquer vestígios senão os sinais clínicos dos rubores da
pele.
Não há negar, porém, que como práticas
agressivas, podem se revestir também de violência emocional ou de violência
moral, onde domínio e abuso interagem em vulneração da vítima.
A violência que não produz lesões
físicas - daí entendida simplesmente por “vias de fato”, como mera contravenção
penal (art. 21, DL nº 3.668/1941) - sendo capaz, todavia, de configurar danos
psicológicos, constituirá crime, nos exatos termos do art. 5º, III, da Lei nº
11.340/2006 (Lei Maria da Penha), quando subjacente qualquer relação intima de
afeto. Ou seja, mesmo fora da unidade doméstica ou do âmbito de família,
suficiente será o liame relacional afetivo apontado.
E o mais importante: recente decisão
do Superior Tribunal de Justiça apontou notável distinção a perseverar pela
efetividade punitiva da violência contra a mulher. É quanto à inviabilidade de
substituição da pena privativa de liberdade, quando se trate de crime sob a
égide da lei especial protetiva da mulher.
Em julgamento do Recurso Especial nº
1.619.857, a 5ª Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Joel Ilan Paciornick,
negou, à unanimidade, recurso de quem condenado a uma pena inferior a um ano
pretendia substituir a privação da liberdade por pena substitutiva
(28.03.2017). O acórdão, mitigando a incidência da Súmula 07 do próprio STJ,
envolveu a discussão acerca da classificação jurídica dos fatos, para finalmente
assinalar: “A jurisprudência desta Corte Superior encontra-se consolidada no
sentido de que, sendo cometida a contravenção penal de vias de fato em âmbito
doméstico, inviável se torna a substituição da pena privativa de liberdade”.
Mais precisamente: conduta reprovável,
mesmo que desprovida de maior gravidade, deve ser reprimida, com pena de prisão
insubstituível, em se tratando de violência machista.
Para os efeitos da lei, de modo a configurar
violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada
no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico
e dano moral ou patrimonial, o inciso III do art. 5º da Lei nº 11.350/06 dispõe
sobre a hipótese, “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
Cumpre anotar, mais ainda:
(i) a abrangência da norma, trata de
crime comissivo ou omissivo em face do gênero, observado, adiante, em parágrafo
único ao aludido art. 5º, que as relações pessoais enunciadas no dispositivo independem
de orientação sexual; (ii) a Lei 11.340/06, em suas latitudes, trata da
violência contra a mulher, no seu elevado espectro de violência doméstica e
familiar, em suas diversas formas típicas (física, psicológica, sexual,
patrimonial e moral), a teor do artigo 7º; sem oferecer, contudo, um catalogo
específico de tipos penais, dispondo apenas que aos crimes praticados contra a
mulher não se aplica a Lei 9.099/1995, que cogita dos crimes de menor potencial
ofensivo em sede de juizados especiais criminais.
Segue-se, então, dizer que todos os
crimes que incidam na Lei Maria da Penha são de ação pública incondicionada,
onde as vias de fato, mesmo que menos ofensivas, terão tratamento penal
diferenciado.
2. Pois bem. Em tempos mais exigentes
e urgentes de maior dignificação da mulher, sobretudo de políticas públicas contra
a criminalidade crescente de gênero, urge uma revisitação da Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/06) para efeito de tipificações penais próprias.
Nos anos 70 do século passado, nos
Estados Unidos, Lenore Walker teorizou acerca da violência doméstica, depois de
uma década que registrou o incremento dos chamados domestics abuse acts.
Leis estaduais passaram a exercer o controle dessa nova espécie de criminalidade,
vindo, afinal, a lei federal Violence Against Women Actc (VAWA)
estabelecer provisões legais, despontando medidas cautelares como ordens de
restrição e sanções penais severas.
Em nosso país, quase cinquenta anos
depois, agora reclama-se que a Lei Maria da Penha, de 2006, obtenha um eixo
penal adequado, com o devido rol delitivo extraído das cinco formas de
violência por ela referidas nos cinco incisos do seu artigo 7º.
Bem é dizer: tipificar os crimes
próprios, com suas penas respectivas, que precisam ser configurados no contexto
das condutas ali descritas, a exemplo daquelas extraídas da violência
psicológica, como as ações que impliquem ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, insultos e outras agressões, e cujas vias de fato são, afinal, as evidências
comportamentais no pórtico dos atos criminais que lhes sucedem.
De efeito, os fatos circunstanciais
que agridem a mulher, a cada situação ofensiva, devem ser identificados
especificamente para os fins penais, ensejando que todas as hipóteses cabíveis
obtenham, afinal, a devida repressão penal.
Não sem razão, a violência contra a
mulher se constitui atualmente o maior desafio do direito penal. Ela começa
pelas vias de fato, que não podem ser encaradas como algo insignificante.
3. Após a Lei Maria da Penha, leis
mais recentes cuidaram de oferecer novas políticas públicas de controle
criminal. A mais importante delas, a de nº 13.104, de 09 de março de 2015, veio
estabelecer o crime de feminicídio, como forma qualificadora do crime de homicídio
(“hominis excidium”, extinção do
homem), praticado contra a mulher em razão da condição de gênero (art. 121, VI,
Código Penal), e no caso representada pelas hipóteses motivacionais do gênero
quando o crime envolver violência doméstica e familiar (art. 121, VI, § 2º-A,
inciso I, Código Penal) ou com menosprezo ou discriminação à condição de mulher
(art. 121, VI, § 2º-A, inciso II, Código Penal).
O feminicídio (“femicide”), cuja
expressão resultou formulada pela vez primeira, por Diana E. H. Russell (1976),
valendo referir, a propósito, sua obra “Femicide: the politics
of woman killing”, com Jill Radford (Ed. Twayne, 1992, 379 p.), tornou-se
também, em nosso país, crime hediondo (Lei nº 13.104/15) e sua pena pode ser
aumentada em até a metade, em determinadas hipóteses como quando praticado em
presença de descendente ou ascendente da vítima.
4. A esse propósito, a violência
intrafamiliar acontece quando na maioria dos casos os casais em conflito
possuem filhos menores que assistem, perplexos, as agressões conjugais e, por tal
circunstância, são eles, crianças e adolescentes, as maiores vítimas. Como
testemunhas presenciais das agressões físicas ou psicológicas que dilaceram a
família, os efeitos da violência doméstica são os mais graves para essas vítimas
específicas. Um estudo português situa que em 42% dos casos de agressões entre
casais, os filhos “assistem na primeira fila”, sofrendo maus-tratos psíquicos
(Revista Visão nº 1.044; PT, 07.03.2013).
Nesse ser assim, impende reconhecer
que tais danos psicológicos são refletidos no futuro em cadeia sucessória, fomentando,
mais das vezes, a violência, como algo natural e banalizado. Uma campanha
lusitana levada a efeito contra a violência doméstica em presença dos filhos,
indica uma mãe questionando o médico sobre as reações estranhas do seu filho,
devolvendo-lhe, então, o experiente clínico o questionamento feito, com a seguinte
pergunta: “Há quanto tempo o seu marido lhe bate?”.
Na campanha contra a violência
doméstica, conduzida pelo governo português, através da Comissão de Igualdade
de Gênero (CIG), o tema dos “filhos da violência” tem sido tratado por seus
multifacetados aspectos, com devida seriedade de políticas públicas, rigor
científico e amplitude de situações. “Impõe-se acabar com a crença de que ´ele
é mau marido, mas é bom pai´; porque os efeitos sobre as crianças são muito
nefastos”, expressou Marta Silva, do Núcleo de Violência Doméstica da CIG. De
fato, a violência contra a mulher mãe é sempre, em regra, também contra os
filhos, à exata medida do impacto psicológico indiretamente por eles
vivenciado.
No Brasil, a questão foi abordada pela
primeira vez na Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE (2012), com dados sobre
violência contra a mulher. Revela a pesquisa que as agressões familiares são em
66,1% dos casos presenciadas pelos filhos. Os registros indicam que “crianças
que acompanham atos de violência podem vir a ser futuros agressores”.
A questão tem preocupado, de há muito,
juristas e psicólogos, terapeutas e pedagogos, enfim toda a comunidade
cientifica dedicada aos estudos criminais e aos problemas da infância. No
ponto, vale assinalar:
(i) Projeto europeu produzido para a
análise dos modelos agressivos de relações em família, vitimizando os filhos,
originou o livro “Witnesssing Violence”
(“Testemunhando a Violência”). Nele, as estatísticas são alarmantes. Os filhos
são referidos como as "vítimas esquecidas" já que as intervenções objetivam,
em geral, a vítima ou o agressor adulto. Essa vitimização se constitui, aliás,
em fator de sério risco para problemas ao longo da vida, como já revelado em
uma amostra nacionalmente representativa de homens e mulheres norte-americanos
(Straus, MA; Columbus, 1992).
(ii) Pesquisa do psicólogo Kaethe
Weingarten, da Harvard Medical School, também examinou os efeitos biológicos e
psicológicos de ser o filho um testemunho de violência dos pais, nominando o
fenômeno como “choque comum”, de tal
ordem vindo intitular a sua obra “Common Shock” (Com. NAL, 400 pp., Amazon), quando
oferece ferramentas para uma análise proativa do problema. Cuida-se do melhor
estudo a respeito. Weingarten fundou e dirige o “Projeto Testemunhar”,
lecionando no Instituto da Família de Cambridge.
Mas não é só: também ocorre, repetidas
vezes, um outro fenômeno emocional, o da espécie da “parentificação”, estudado por Gregory J. Jurkovic (New York, 1998),
quando os filhos da violência conjugal/convivencial, sofrendo por longo prazo
os impactos psicológicos dos conflitos e vias de fato dos genitores, assumem,
dramaticamente, neste cenário, o papel de confidente ou mediador entre os pais.
5. Como observado, os problemas da
violência sexista são multifacetados e novas infrações penais devem ser
contempladas, como garantia punitiva do direito penal, sempre que exercitados
contra a mulher atos materiais de agressão, sob todas as formas que atentem
contra a sua condição de gênero e possam vulnera-la como vítima.
Certo, então, que o ilícito da espécie
das vias de fato não exija para a sua consumação efetiva a ocorrência de
qualquer lesão física à ofendida, retenha-se, afinal, que a incolumidade física
e emocional da mulher precisa ser melhor protegida penalmente.
Mesmo que por vias de fato, a
violência sexista contra a mulher tem sido expressada com nítida veemência e
exige ser reprimida, por isso mesmo, com a devida tenacidade das leis penais.
__________________________________________________________________
O autor é desembargador decano do
Tribunal de Justiça de Pernambuco e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade
de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Diretor nacional do Instituto
Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, preside a Comissão de Magistratura
de Família.
Fonte: Consultor Jurídico. Violência contra a mulher precisa ser
reprimida com tenacidade pela lei. Web: www.conjur.com.br - 16.04.2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário