DA ESCRITURA PÚBLICA DE UNIÃO POLIAFETIVA.
BREVES CONSIDERAÇÕES.[1]
Flávio Tartuce[2]
Tema que vem sendo intensamente debatido pelo Direito de Família Brasileiro há alguns anos diz respeito à possibilidade jurídica, ou não, de elaboração de uma escritura pública de união poliafetiva. Mais do que isso, tem-se analisado a sua concreção negocial, nos planos da validade e da eficácia.
O debate teve início em 2012, quando a então Tabeliã da cidade de Tupã, interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, elaborou o primeiro ato documental nesse sentido. Conforme se extrai do site do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é fundamental o seguinte trecho do documento, assinado por um homem e duas mulheres: “Os declarantes, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade”.
No ano de 2015, também foi noticiada a elaboração de escritura pública similar, pelo 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, sendo responsável pela sua lavratura a Tabeliã Fernanda Leitão. O caso é diferente por envolver três mulheres, em união homopoliafetiva, com elaboração de testamentos entre elas e de diretivas antecipadas de vontade, que dizem respeito a tratamentos médicos em caso de se encontrarem com doença terminal e na impossibilidade de manifestarem vontade.
Pois bem, ao contrário do que defendem alguns juristas, não parece haver nulidade absoluta no ato, por suposta ilicitude do objeto (art. 166, inc. II, do CC/2002). Pensamos que a questão não se resolve nesse plano do negócio jurídico, mas na sua eficácia. Em outras palavras, o ato é válido, por apenas representar uma declaração de vontade hígida e sem vícios dos envolvidos, não havendo também qualquer problema no seu objeto. Todavia, pode ele gerar ou não efeitos, o que depende das circunstâncias fáticas e da análise ou não de seu teor pelo Poder Judiciário ou outro órgão competente.
No que diz respeito ao objeto do negócio em estudo, como tenho exposto em aulas e escritos, a monogamia não está expressa na legislação como princípio da união estável, mas apenas do casamento, eis que o Código Civil enuncia que não podem casar as pessoas casadas, sob pena de nulidade do casamento (arts. 1.521, VI, e 1.548). Em relação à união estável, muito ao contrário, admite-se até que a pessoa casada tenha um vínculo de convivência, desde que esteja separada judicialmente, extrajudicialmente ou de fato (art. 1.723, § 1º, do CC/2002, em leitura atualizada), o que denota um tratamento diferenciado a respeito da liberdade de constituição das duas entidades familiares.
Quanto aos deveres do casamento, é cediço ser a fidelidade o primeiro deles (art. 1.566, I, do CC/2002). Por seu turno, em relação à união estável, o art. 1.724 do Código Civil não deixa dúvidas, ao estabelecer que “as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Pelo senso comum, a lealdade engloba a fidelidade. Mas não necessariamente, pois é possível que alguém seja leal sem ser fiel. Imagine-se, nesse contexto, um relacionamento de maior liberdade entre os companheiros, em que ambos informam previamente que há a possibilidade de quebra de fidelidade, e que aceitam tais condutas.
Voltando ao cerne do objeto da escritura pública de união poliafetiva, por todos esses argumentos, não haveria na sua elaboração afronta à ordem pública ou prejuízo a qualquer um que seja, a justificar a presença de um ilícito nulificante. Não há que se falar, ainda, em dano social, pois esse pressupõe uma conduta socialmente reprovável, o que não é o caso. O reconhecimento de um afeto espontâneo entre duas ou mais pessoas não é situação de dano à coletividade, mas muito ao contrário, de reafirmação de transparência e solidariedade entre as partes.
Assim, com o devido respeito, não parecer ter justificativa jurídica plausível a recomendação feita pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, em abril de 2016, no sentido de que as serventias extrajudiciais não realizem atos semelhantes. Nota-se que os textos das escrituras elaboradas são sutis e não impositivos, de mera valorização de um relacionamento que já existe no mundo dos fatos, podendo gerar ou não efeitos jurídicos, o que depende da análise do pedido e das circunstâncias fáticas, reafirme-se.
Penso que o futuro reserva uma forma ainda mais nova de pensar as famílias, e que, em breve, serão admitidos juridicamente os relacionamentos plúrimos, seja a concomitância de mais de uma união estável, seja a presença desta em comum com o casamento. Acredito que o futuro, além dos modelos tradicionais, também é das famílias paralelas – com mais de um vínculo familiar, entre pessoas distintas, uma ou mais delas comum aos relacionamentos –, e das famílias poliafetivas – com um vínculo único, entre mais de duas pessoas. Se a família é plural, os vínculos plúrimos podem ser opções oferecidas pelo sistema jurídico ao exercício da autonomia privada, para quem desejar tal forma de constituição.
Como palavras finais, cabe observar que, caso não seja possível o reconhecimento da validade dessas escrituras pelo Direito de Família, o caminho do Direito Contratual – por contratos de sociedade de participação, por promessas de doação e de alimentos, por plano de saúde e de previdência privada e outros negócios jurídicos patrimoniais –, pode indicar a solução. Se entraves morais - e até jurídicos -, vedam o reconhecimento da escritura de união poliafetiva pelo Direito de Família, o mundo dos contratos pode perfeitamente aceitar o teor que ali se pretende expressar. Em vez de um ato só, a solução jurídica para casos como os relatados no início do texto estará em várias minutas.
[1] Coluna do Migalhas do mês de abril de 2017.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor da Rede LFG e do Curso CPJUR. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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