De
Alexandre a Luciane - da cumplicidade pelo Abandono ao Abandono
punido!
José
Fernando Simão. Livre-docente, Doutor e Mestre pela Faculdade de Direito da USP.
Professor associado do Departamento de Direito Civil da USP. Advogado e
consultor jurídico.
Fonte: Jornal Carta Forense.
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Alexandre,
menino das Minas Gerais, fruto do casamento de seus pais, criado no amor e afeto
até seus sete anos.
Luciane,
nascida fora do casamento em terras paulistanas, com o estigma da bastardia que
ainda paira na sociedade brasileira, apesar de afrontar claramente os preceitos
constitucionais.
Alexandre foi
vítima de um fenômeno comum. Seus pais se divorciaram, e com o fim da
conjugalidade e constituição de nova família, seu pai entendeu que havia se
encerrado a parentalidade, negando-se a conviver com o menor, a ter com ele
qualquer relação que não a jurídica.
Luciane, por
sua vez, nunca teve um pai em sentido fático ou jurídico. Só conseguiu ser
reconhecida como filha após um longo procedimento judicial, e, mesmo assim, após
o reconhecimento, só recebeu de seu pai hostilidades.
Alexandre
recebia a pensão religiosamente, e materialmente estava provido. Seu pai
entendia que seus deveres aí se encerravam, já que o convívio com o filho era um
direito seu e, como qualquer direito, poderia não ser exercido.
Luciane não
recebeu o apoio material que decorre da paternidade, tendo sofrido privações
desde sua infância. Após o reconhecimento da paternidade por meio de decisão
judicial, Luciane precisou ainda exigir judicialmente os alimentos, porque
continuava a ser ignorada por seu pai.
As diferenças
entre Alexandre e Luciane são diversas, mas algo os une: foram vítimas de uma
das mais perversas condutas por parte de seus pais: o ABANDONO FILIAL.
O
pai de Alexandre teve novos filhos em seu segundo casamento. O pai de Luciane
teve filhos em seu casamento. Quanto a estes, os filhos da nova união (pai de
Alexandre) ou da união desejada e socialmente aceita (pai de Luciane) o
tratamento se revelava impecável. Carinho, presença, preocupação, um bom dia ao
acordarem, um feliz Natal no dia 25 de dezembro, as férias na praia e muito
carinho, até nos pequenos gestos, como um sorvete oferecido, uma brincadeira na
piscina, um bilhete de feliz aniversário.
Já com relação
a Alexandre e Luciane, havia apenas uma conduta: a absoluta indiferença. Seus
pais nunca se preocuparam se os filhos estavam bem, se sentiam dores ou frio, se
comida havia na sua mesa, se teriam férias, se tinham bom desempenho escolar, se
aquela febre advinha de uma gripe ou de doença mais séria.
Não passaram
juntos sequer um dia dos pais, um Natal em família, uma viagem de férias, um
aniversário dos menores. Não receberam presentes, nem carinho, nem bilhetes, nem
um bom dia, nem uma pergunta sobre sua saúde, se estavam felizes ou
não.
Além destas
semelhanças e das diferenças apontadas, Alexandre e Luciane se distinguem pela
forma de tratamento que receberam do Poder Judiciário: no caso do Alexandre
houve por parte do Judiciário uma cumplicidade, o abandono contou com as bênçãos
do STJ. Já no caso de Luciane, o STJ fez Justiça com "J" maiúsculo.
Em 29 de
novembro de 2005, disse o STJ o seguinte: "RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO
MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral
pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da
norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de
reparação pecuniária." (REsp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO
GONÇALVES).
As razões
invocadas pelo Ministro Relator para ser cúmplice do abandono e chancelar o
desamparo, dando a benção estatal é de causar estranheza: "O pai, após condenado
a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto,
encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá
definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo
litigioso? Quem
sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em
definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice,
buscar o amparo do amor dos filhos".
A razão do
decisum é curiosa e
pode ser traduzida pela seguinte ideia: se o pai se negou a ser pai durante o
período em que Alexandre mais precisava, quem sabe Alexandre será um bom filho
quando seu pai, na velhice, dele precisar?
Afirmou o
Ministro Fernando Gonçalves: "por certo um litígio entre as partes reduziria
drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente,
pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de
reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a
pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório,
porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme
acima esclarecido."
E quais seriam
as sanções possíveis, segundo o Ministro? A perda do poder familiar. O argumento
beira o ridículo. Se o pai fosse destituído do poder familiar seria premiado,
porque se veria totalmente livre de seus deveres. A destituição do poder
familiar ocorreria no interesse do pai e não do menor!
A conclusão do
julgado que puniu Alexandre foi a seguinte: "Como escapa ao arbítrio do
Judiciário obrigar
alguém a amar, ou a manter
um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a
indenização pleiteada."
Esta frase
demonstra um velho ranço de alguns juristas, minoritários é verdade. Falar de
conceitos sem os conhecê-los o que acaba por gerar absurdos jurídicos. O direito
não define afeto. A disciplina que o faz é a psicanálise.
Em
momento nenhum Alexandre pretendia receber indenização por falta de amor. Seria
uma tese pueril a ser defendida por alguém de bom senso. Amor é algo camoniano,
fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente. Amor e afeto não se
confundem conforme veremos.
Em 02 de maio
de 2012, o mesmo STJ, com nova composição, atento a um direito de família mais
humano e solidário, julgou o caso da Luciane. A Ministra Nancy Andrighi deixou
claro que "na hipótese, não se discute o amar - que é uma faculdade - mas sim a
imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário
da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos" (Informativo STJ 496, REsp
1.1.59.242/SP)[1].
Confundir
cuidado com amor foi erro lamentável que abonou o abandono e serviu de estímulos
aos péssimos genitores. Esclarecer que amor e afeto não se confundem revelou, de
maneira pedagógica, a sensibilidade da Ministra Nancy Andrighi.
Afeto, segundo
definição da psicanálise, nas palavras Giselle Câmara Groeninga, é, "no direito,
em ramos da filosofia e no senso comum, identificado com o amor. Em nossa visão
positivista era inclusive visto como dissociado do pensamento. Mas, ele é muito
mais do que isto. Sem dúvida, uma qualidade que nos caracteriza é a ampla gama
de sentimentos com que somos dotados e que nos vinculam - uns aos outros, de
forma original face a outras espécies. Com base nos afetos, que se transformam
em sentimentos, é que criamos as relações intersubjetivas - compostas de razão e
emoção - do que nos move. À diferença dos outros animais, somos constituídos,
além dos instintos, de sua tradução mental em impulsos de vida e de morte. Estes
ganham a qualidade mental de afetos - energia mental com a qualidade de ligação,
de vinculação = libido, Eros, ou de desligamento, de não existência = morte,
Thanatos. São estes impulsos que nos afetam, desde dentro, e que se transformam
em sentimentos - que ganham um sentido, uma direção na relação com as outras
pessoas, com nuances que variam do amor ao ódio, em combinações variadas. É por
meio dos afetos que valorizamos e julgamos a experiência em prazerosa,
desprazerosa, boa, má. Mas vamos além disto, e valoramos nossas experiências
também de acordo com o pensamento, com a experiência e com valores construídos
nas relações e apreendidos do meio social. São os afetos que nos vinculam das
mais diversas formas às pessoas. E é certo que também somos afetados pelos
estímulos externos que são traduzidos, interpretados mentalmente segundo as
experiências passadas e a valoração que lhes foram atribuídas. Somos seres
axiológicos por excelência, e parte desta qualidade que nos é inerente vem
justamente dos afetos" (Descumprimento do dever de convivência: danos morais por
abandono afetivo. A interdisciplina sintoniza o direito de família com o direito
à família. In A outra face do Poder Judiciário - Decisões inovadoras e
mudanças de paradigmas. Coord. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka.
Belo Horizonte: Del Rey/São Paulo: Escola Paulista de Direito - EPD. 2005).
A valorização
do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, jurista de
primeira grandeza, escrito no início da década de 80, tratando da
desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura dizer
que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo
biológico. Assim surgiria uma nova forma de parentesco civil, a
parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de
filho.
O julgado em
que o STJ pune o abandono e põe fim à irresponsabilidade parental ressalta que
"os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o
tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad
perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai
(recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de
suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela,
caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa
eficiente à compensação".
Frisou o
Ministro Sidnei Beneti, que "os atos pelos quais se exteriorizou o abandono, que
devem ser considerados neste processo, não são genéricos, mas, sim, concretos,
apontados na petição inicial como fatos integrantes da causa de pedir, ou seja:
1º) Aquisição de
propriedades, por simulação, em nome dos outros filhos; 2º)
Desatendimento a reclamações da autora quanto a essa forma de aquisição
disfarçada; 3º) Falta de
carinho, afeto, amor e atenção, apoio moral, nunca havendo sentado no colo do
pai, nunca recebendo conselhos, experiência e ajuda na escola, cultural e
financeira; 4º) Falta de
auxílio em despesas médicas, escolares, abrigo, vestuário e outras;
5º) Pagamento de
pensão somente por via judicial; 6º) Somente haver
sido reconhecida judicialmente como filha".
A clareza da
argumentação do Ministro Beneti fala por si. Nada mais a acrescentar. O Poder
Judiciário se revelou coerente com a função que dele se esperar: atribuiu
responsabilidade a quem tem e dela se furta.
Fala-ser em
"monetarização do afeto", como pensam alguns, é algo pueril que significa
ausência completa de conhecimento jurídico. É lição basilar que a indenização
tem por escopo retornar a vítima ao estado anterior ao dano (statu
quo ante). Contudo, há
casos em que este retorno, esta volta se revelam impossíveis. Há mais de dois
séculos o Direito já decidiu que, sendo o retorno impossível, a vítima recebe um
valor pecuniário, não para reparar o que não pode reparar, mas para compensar
aquilo que se perdeu. Nesse sentido, toda a indenização por dano moral (exemplo
clássico é a morte de um parente querido) significaria "monetarização do afeto"?
Quem defende esta tese pueril, poderia responder qual seria a forma adequada de
se punir o causador de dano moral.
A indenização
muito representa para Luciane e para muitas outras pessoas abandonadas
afetivamente. Para Luciane, compensa-se um vazio, já que os danos que sofreu são
irreparáveis. O dinheiro não preenche o vazio, mas dá uma sensação de que a
conduta lesiva não ficou impune. Para outros filhos abandonados, nasce a
esperança de que poderão receber do Poder Judiciário uma decisão que puna os
maus pais, já que o afeto não receberam e nunca receberão.
Para os pais,
que se comportam como doadores de esperma, ou como provedores materiais
descompromissados, fica o aviso: a irresponsabilidade será punida! A conduta
lesiva não será tolerada pelo Poder Judiciário.
E, para o Ministro Fernando Gonçalves fica uma lição.
A Justiça tarda mas não falha.
[1]. O TJ/SP já havia admitido esta reparação no
ano de 2008. "Responsabilidade civil.
Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e
reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação
em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico.
Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim. Apelação
com revisão 5119034700", TJSP, Rel. Des. CAETANO LAGRASTA, j. 12.8.2008).
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