terça-feira, 10 de junho de 2014

MULTIPARENTALIDADE. SENTENÇA DO TJDF. JUNHO DE 2014.

Autora: XXX
Réus: YYY e ZZZ
Ação: Declaratória de Paternidade
Processo nº: 2013.06.1.001874-5    
 
 
 
 
Vistos, etc.
 
 
Trata-se de ação negatória e de investigação de paternidade, proposta por XXX, representada por sua genitora KKK, em desfavor de YYY e ZZZ.
Afirma a autora que sua representante legal convive em união estável com YYY há 17 anos, sendo este quem procedeu ao seu registro de nascimento.
É relatado na inicial que YYY sempre foi alvo de chacotas quanto a real paternidade da autora em razão das diferenças físicas entre ambos. No ano de 2012, a genitora da menor relatou que o verdadeiro genitor da criança é ZZZ, seu ex-patrão.
Consta na exordial que a família da autora trabalhou e residiu na fazenda do suposto pai biológico por 12 anos e que ZZZ sempre teve conhecimento da paternidade, mas ameaçava demitir todos da família da autora se o fato fosse revelado.
Designada audiência de conciliação (fl. 47), a ela compareceram os réus e a representante legal da autora, ocasião em que decidiram pela realização do exame de DNA. Nesta assentada, a genitora da autora requereu que após o reconhecimento da paternidade, a menor passasse a se chamar XX Z.
Laudo de exame de DNA em fls. 52/55.
Contestação em fls. 60/79, na qual ZZZ refuta a existência de vínculo afetivo e afirma o interesse meramente econômico na presente demanda.
Réplica em fls. 85/126.
Designada audiência de instrução e julgamento, foram colhidos os depoimentos das partes (fls. 150/153).
Alegações finais da autora em fls. 154/162 e dos réus em fls. 163/177.
Parecer do Ministério Público em fls. 178/185, pela declaração de paternidade de ZZZ.
 
É o relatório.
 
DECIDO.
 
No presente feito, a autora busca que se declare que YYY não é seu pai biológico e, em contrapartida, que ZZZ seja declarado como tal.
Na espécie, verifico que a menor possui 10 anos de idade, sendo sempre cuidada e educada por seus pais registrais, KKK e YYY. Ambos são analfabetos e trabalharam, por diversos anos, na fazenda do investigado ZZZ.
Do laudo de exame pericial não há qualquer dúvida de que XXX é filha biológica de ZZZ (fl. 55).
 
DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA:
YYY afirma nutrir sentimentos de pai em relação à autora, e que a ama como aos demais filhos que possui com KKK. Por seu turno, também alega que a registrou por pensar ser sua filha biológica, apesar de já ser vasectomizado quando a esposa ficou grávida. Além disso é importante assinalar que tanto YYY como KKK são afrodescendentes, enquanto que XXX é branca. Ademais, a menor nasceu em 19 de junho de 2003, tendo sido registrada somente em 11 de outubro de 2005, ou seja, já passados mais de dois anos de seu nascimento, a demonstrar que YYY a registrou pelo afeto que nutria pela infante, uma vez que já devia prever que não era sua filha biológica.
A paternidade socioafetiva está claramente demonstrada nos autos, conforme se denota do depoimento pessoal de YYY (fl. 151):
“...que XXX tem 10 anos; que a menor reside consigo; que a menor o chama de pai, que XXX considera o depoente como pai, KKK como mãe e OOO e AAA como irmãos; que quando XXX nasceu o depoente trabalhava na fazenda do Sr. ZZZ; que é analfabeto; que foi vasectomizado há 16 anos;...que mesmo diante do resultado do exame de DNA onde ficou constatado que o depoente não é o pai biológico da autora, seu sentimento por ela não mudou, pois gosta dela como filha;...”
 
A socioafetividade também restou evidenciada no depoimento da autora de fl. 153:
 
“... que mora com a mãe, com o pai, dois irmãos e o padrinho; que seus irmãos se chamam OOO e AAA; que sua mãe se chama KKK; que seu pai se chama YYY...”
 
Ou seja, a afetividade mantida entre a autora e YYY, apesar de não possuírem o mesmo DNA, faz com que deva ser mantida a paternidade até então estabelecida.
 
 
DA PATERNIDADE BIOLÓGICA:
Conforme destacado alhures, o exame pericial constatou a paternidade biológica de ZZZ em relação à XXX.
Por seu turno, durante o processo, ZZZ sempre se mostrou avesso a esta paternidade, afirmando, inclusive, que não nutre qualquer sentimento pela infante, que possui outra família e que pretende seguir sua vida como antigamente.
Não há dúvidas de que, embora ZZZ não mantenha relação de afeto com a autora, é seu pai biológico! Contudo, o simples fato de ele alegar que não a reconhece como filha, não lhe outorga o direito de ver afastada a declaração de paternidade por ela almejada.
 
 
DA MULTIPARENTALIDADE:
Filiação e parentalidade são temas que não podem ser descritos individualmente. Ambos estão interligados com o invisível cordão umbilical do afeto e do melhor interesse da criança. Destarte, já podemos pensar em casos específicos, onde o filho, apesar de poder ter somente carga genética de um homem e uma mulher, possuir vários pais e/ou várias mães, preservando-se a dignidade e individualidade de cada ser humano.
Segundo Ferry[1], a noção de deveres dos pais com relação à prole só parece se impor ao conjunto da sociedade a partir do século XVIII – e isso de forma muito variada conforme as camadas sociais, uma vez que se estimava ainda no século XVII que a criança devia tudo a seu pai, pois lhe devia a vida. E conclui: foi em consequência de uma passagem de sociedade holística e hierarquizada para uma sociedade individualista e igualitária que o peso afetivo aumentou nas relações pessoais[2].
No marco da teoria da integralidade dos direitos humanos, um princípio orientador é a norma mais favorável à pessoa, mais conhecido como o princípio “pro hominis”. Em outras palavras, se assumimos que cada ser humano é único e irrepetível, a identidade é a condição de nossa particularidade, de nosso ser concreto no mundo. Assim, por meio da identidade se protege a vida humana em sua realidade radical que é a própria pessoa em si, indivisível, individual e digna[3].
O ser humano além de único é complexo e contem uma multiplicidade de aspectos essencialmente vinculados entre si, de caráter espiritual, psicológico ou somático, que o definem e identificam, assim como existem aspectos de índole cultural, ideológica, religiosa ou política, que também contribuem a delimitar a personalidade de cada sujeito[4].
Assim, a parentalidade socioafetiva deve ser amparada pelo Direito, uma vez que o afeto é um dos elementos fundantes da família.
Nunca se pode esquecer a obra “O Pequeno Príncipe” de Saint Exupery, que é apologia ao começo da vida. A raposa quer ser “cativada” e define ser cativada como “criar laços”, assim como bebês nascem com sede de apego – é só lhes oferecer oportunidade (Bowlby). E, como boa entendedora do desenvolvimento psíquico, ela pede para ser olhada. Não quer que falem com ela, que a toquem; primeiro, quer que a olhem, porque o apego é mesmo pré-verbal e começa com o olhar (Lacan, 1949; Winnicott, 1971). Ela também pede ritmo, e o ritmo é que manda entre o bebê e sua mãe. Um pouco mais adiante, vem a fala decisiva, quando ela diz que “é o tempo que perdeste com a rosa que faz a rosa tão importante”. Isto soa mais forte que o famigerado e ainda não gasto, de logo adiante: “Tu te tornas eternamente responsável pela tua rosa”. Porque o verdadeiro alimento psíquico é a perda de tempo, o brincar pelo brincar. O inútil que constrói os espaços potencial, lúdico e útil para a sobrevivência mental de quem realmente consegue cativar (vincular-se) sem a utilitária intenção de (Winnincott, 1951; Pavlovsky, 1980)[5].
O direito ao reconhecimento da MULTIPARENTALIDADE está embasado nos direitos da personalidade, que se visualizam através da imagem que se tem, honra e também privacidade da vida, direitos estes que se revestem essenciais à própria condição humana. Por derradeiro, em atenção ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente, sempre sublinhado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a MULTIPARENTALIDADE se desenha com cores que anunciam um novo caminho social.
No dizer de Marisa Herrera[6], o regime filial está em constante mudança. O contexto sociocultural, os avanços biomédicos em matéria de provas genéticas e as recentes mudanças legislativas, em particular o desenvolvimento do direito à identidade como direito humano e o reconhecimento do direito de contrair matrimônio aos pares homoafetivos – tem posto em cheque o sistema filial introduzindo novas interrogações e sérios questionamentos.
O Código Civil em seu art. 1.593 define que o parentesco pode advir da consanguinidade ou de outra origem.
No direito brasileiro há apenas a possibilidade de adoção plena, diferentemente do direito argentino que também prevê a adoção simples. Assim, quando o filho é adotado no Brasil, perde os vínculos com a família biológica (salvo os impedimentos matrimoniais), ou seja, não herda e tampouco pode pedir pensionamento alimentar. O acatamento da MULTIPARENTALIDADE vem a subsidiar o melhor interesse da criança uma vez que poderá ser mantido e cuidado por várias pessoas. Mantém-se todos os vínculos de parentesco até o 4º grau[8] e o dever de assistência se espraia para mais obrigados.
No caso sub judice, destaco que não se mostra plausível afastar a paternidade socioafetiva de YYY, com quem XXX manteve relacionamento filial por todos seus 10 anos de vida. Quem a criou e a manteve foi YYY, pessoa pobre, analfabeta e agricultora.
Por outro lado, não se pode deixar de enxergar a confortável situação financeira de ZZZ, que possui alto padrão de vida. Deixar de estender à infante as benesses que esta paternidade pode lhe oferecer, é não atentar para o melhor interesse da criança, Princípio Constitucional e basilar do Estatuto da Criança e do Adolescente!
Imprescindível que o Direito acolha a realidade de cada pessoa, a vida como verdadeiramente se apresenta para cada um. Mia Couto[9] esclarece que o indivíduo é um ser anônimo, sem rosto e sem contorno existencial. A história de cada um de nós é a de um indivíduo a caminho de ser pessoa. O que nos faz ser pessoa não é o bilhete de identidade. O que nos faz pessoas é aquilo que não cabe no bilhete de identidade. O que nos faz pessoas é o modo como pensamos, como sonhamos, como somos outros, como somos diferentes. Estamos, enfim, falando de cidadania, da possibilidade de sermos únicos e irrepetíveis, da habilidade de sermos felizes.
Ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada judicialmente. Isso porque a maternidade (ou paternidade, como no presente caso concreto) que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação. Com fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano[10].
Diferentemente de tempos sombrios, que de há pouco se avizinhavam, hoje é possível o reconhecimento da parentalidade não sujeita apenas a laços sanguíneos. Vale lembrar que até a Constituição Federal[11] de 1988, havia no Brasil diversidade de tratamento para os filhos havidos ou não do casamento. Até então prevalecia unicamente o aspecto da consanguinidade. Esta era determinante na configuração da parentalidade. Contudo, com o avanço da sociedade e da jurisprudência, o tratamento desigual dos filhos deixou sua marca mas cicatrizou a ferida. Hoje todos os filhos merecem a mesma proteção. Como exemplo temos o julgado do Superior Tribunal de Justiça REsp nº1.159.242/SP, onde se discutiu o abandono paterno e foi fixada indenização pela falta de cuidado.
Ademais, a importância do cuidado não se delineia somente em relação ao outro, mas a nós mesmos. E é através deste cuidado consigo, que as pessoas buscam alternativas para serem felizes. E isto não é diferente do que ocorre na questão que estamos analisando, quando uma pessoa busca o Judiciário para que gize a situação fática vivenciada. Foucault[12] relembra o princípio do cuidado de si, consagrado por Sócrates e que adquiriu progressivamente as dimensões e formas de uma verdadeira “cultura de si”. Por essa expressão é preciso compreender que o princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele constitui assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de conhecimento e de elaboração do saber.
Importa ressaltar que somos seres que necessitamos de dedicação e afeto a partir do momento que nascemos até nossa morte. Somos seres faltantes, sempre desejando algo a nos completar. A falta da figura paterna ou materna deixa marcas indeléveis na alma.
Assim, melhor que tenhamos mais de um pai ou mais de uma mãe, do que ficarmos à mercê de navegarmos solitariamente num mundo sem espelhos, onde não tenhamos a oportunidade de identificarnos e tampouco um porto seguro para ancorar nossos sonhos. Ademais, Zannoni[13] esclarece que o conceito de identidade filiatória como pura referência a seu pressuposto biológico não é suficiente para definir, por si mesmo, a proteção dinâmica desta identidade.
Assim, será que devemos enxergar a parentalidade apenas em seu aspecto dual, ou será possível que ela se mostre diversificada? É aceitável que a pessoa possa ter mais de um pai ou uma mãe? É acertado impor a unicidade paterna e materna, ainda que a realidade grite outra versão?
Todas as novas possibilidades de concepção geneticamente assistidas contam com a participação de mais pessoas no processo reprodutivo. Quer os doadores de material genético, quer quem gesta em substituição e acaba por dar a luz, todos geram vínculos com a criança que nasce com a sua interferência. Assim, não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai ou uma mãe. É possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade ou MULTIPARENTALIDADE, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos. Não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória[14].
No caso em tela, entendo que ocorreu adoção à brasileira, pois YYY a registrou como sendo sua filha depois que a menor tinha mais de 2 anos, sendo que, assim como a genitora da menor, ele é afrodescendente, e, além de tudo, vasectomizado, e XXX é branca! YYY é analfabeto mas não é cego!
A jurisprudência brasileira já se manifestou no sentido de que, se restar configurada a relação afetiva entre o filho e o pai registral, nada mais pode ser alterado.
Ocorre que muitas vezes esta não é a melhor forma de equacionamento na vida deste filho. Entendo que, nestes casos, se para o filho for importante manter vínculo com seu ascendente genético, poderá constar o nome de dois pais, com as demais consequências jurídicas daí advindas, notadamente em relação ao parentesco, nome, pensão alimentícia, convivência, guarda e direito sucessório.
Nunca é demais dizer que no direito argentino, há duas formas de adoção: a simples (revogável) e a plena (irrevogável). Vale ressaltar algumas características da adoção simples argentina: o adotado é considerado como filho biológico do adotante, mas não cria vínculo de parentesco entre aquele e a família biológica do adotante, senão os efeitos expressamente determinados em lei. Os filhos adotivos de um mesmo adotante são considerados irmãos entre si. A adoção simples se dará sempre que o juiz entender ser mais conveniente para o infante. Ademais, os direitos e deveres que resultem do vínculo biológico do adotado não restam extintos pela adoção, com exceção do poder familiar. Este tipo de adoção impõe ao adotado o sobrenome do adotante, mas aquele poderá agregar o seu próprio a partir dos dezoito anos. O adotado herda do adotante, e o adotante herda do adotado, mas o adotando não herda os bens que o adotado recebeu a título gratuito dos pais biológicos e tampouco a família biológica herda os bens que o adotado recebeu a título gratuito do adotante. O adotado e seus descendentes herdam por representação dos ascendentes dos adotantes, mas não são seus herdeiros necessários. Já os descendentes do adotado herdam por representação do adotante e são considerados herdeiros necessários. Depois da adoção simples é admissível o reconhecimento do adotado por seus pais biológicos e o exercício da ação de filiação.
É importante trazer este exemplo argentino, pois muitos dos entendimentos que afastam a MULTIPARENTALIDADE, se fundam na ideia de que não poderá o filho suceder de mais de um pai ou de uma mãe. Como visto, não há que se falar em impedimento de recebimento de herança, eis que tal fato poderá vir a trazer benefícios para o infante.
Recentemente houve um julgamento no Estado de Rondônia, no qual se buscava desconstituir a paternidade registral e o reconhecimento da paternidade biológica.
Neste caso específico, cuidava-se de adoção à brasileira, em que a criança havia sido registrada e criada pelo ex-companheiro de sua mãe. Com o resultado do exame de DNA, esta criança teria passado a conviver também com o genitor, mas considerava seu pai aquele que a havia registrado. Tanto o pai registral quanto o genitor mostravam-se aptos e tinham vontade de serem, efetivamente, pais da infante. Assim, foi acolhida a tese de MULTIPARENTALIDADE, tendo sido mantido no registro de nascimento da criança tanto o nome do pai registral, quanto de seu genitor[15].
Os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, da igualdade dos filhos, da afetividade e da realidade, devem subsidiar as questões relacionadas à MULTIPARENTALIDADE. O Direito deve observar e acompanhar as mudanças sociais. Tratar como impossibilidade jurídica do pedido sob o argumento singelo de que uma pessoa só pode ter um pai e uma mãe, não traduz e não acolhe a realidade de determinado caso concreto. O Direito nasce da vida, e deve se render a seus fatos, sob pena de estarmos visualizando apenas um lado de um mundo multifacetado.
Há necessidade de refletirmos sobre a importância de que a realidade fática de cada pessoa seja acolhida e respeitada. É preciso que a dignidade da pessoa humana seja considerada e não ultrajada.
Outro julgado no TJSP, também decidiu pela MULTIPARENTALIDADE:
 
Maternidade Socioafetiva: - Preservação da maternidade biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse de estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consangüínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. (AP. Civ. TJSP, 0006422-26.2011.8.26.0286, rel. Dês. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, 1ª Câmara de Direito Privado, 12.08.2012)
 
Nos estados de Pernambuco e Paraná também restou estabelecida a MULTIPARENTALIDADE, onde se buscava o reconhecimento da filiação socioafetiva, através de adoção unilateral. Como no Brasil a adoção subtrai qualquer parentesco do adotado com a família biológica, houve entendimento de que atenderia ao melhor interesse da criança, a mantença da família biológica, com a consequente MULTIPARENTALIDADE. No primeiro caso, a madrasta tinha a intenção de adotar a criança, mas a mãe não queria que ela perdesse o seu nome no registro de nascimento. A sentença determinou a mantença do nome dos pais biológicos, sendo acrescido o nome da companheira do genitor também como mãe da menor de 4 anos de idade[16].
No segundo caso, o magistrado reconheceu a paternidade socioafetiva de um adolescente de 16 anos de idade, e determinou o acréscimo do nome do padrasto em sua certidão de nascimento. O juiz entendeu que o menor considerava tanto o genitor como seu padrasto seus pais, devendo a realidade fática ser agasalhada pelo mundo jurídico. Na espécie, apesar de conviver com a genitora e o padrasto, continuava tendo contato regularmente com seu genitor, possuindo laços de afeto com os dois. Assim, o menor passou a ter dois pais tanto fática como juridicamente, obtendo daí todas as consequências jurídicas desta filiação, como por exemplo, ser dependente em plano de saúde, ter direitos previdenciários, alimentícios e sucessórios[17].
De se ver que a MULTIPARENTALIDADE, se afigura modelada a este caso concreto. Temos flagrante paternidade socioafetiva estabelecida entre o pai registral e a infante, bem como a evidenciada paternidade biológica de ZZZ, que poderá agasalhar o melhor interesse da autora, na medida em que poderá proporcionar a ela bons colégios, faculdade, saúde, lazer, e, quem sabe, uma outra família que poderá amá-la.
A MULTIPARENTALIDADE traz consigo diversas consequências jurídicas. Conforme ressalta Belmiro Pedro Welter[18], não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de TODOS os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana.
 
Direito ao parentesco: Ao se admitir a MULTIPARENTALIDADE, também deve-se assegurar o parentesco daí advindo. Assim, exemplificativamente, se possuir dois pais e duas mães, terá oito avós e tantos tios quanto irmãos estes pais/mães possuírem, e assim por diante. Também os impedimentos matrimoniais no que diz com o parentesco deverá ser observado em todos esses casos. Como o Código Civil brasileiro considera parentes as pessoas unidas por laços de sangue até o 4º grau, este novo parentesco também deverá se estender ao quarto grau, para todos os efeitos, quer alimentar quanto sucessório.
 
Direito ao nome: O nome faz parte de um dos direitos da personalidade. É através dele que somos conhecidos e reconhecidos pela vida afora. Assim, de suma importância que possamos delinear a amplitude da possibilidade de modificá-lo, quer seja pela inclusão ou exclusão de determinado patronímico.O nome de família materno, paterno, da madrasta, do padrasto, ou socioafetivo e o avoengo poderão ser incluídos no nome civil. Tal pretensão é admissível, mesmo que o interessado ainda não tenha atingido a maioridade, uma vez que o art. 56 da Lei n. 6.015 não trata de alterações pela via judicial, mas administrativa, em que a pessoa pode pleitear junto ao oficial do Registro Civil, “pessoalmente ou por procurador bastante”, que se averbe a mencionada alteração. Portanto admite-se alteração de nome pleiteada por menor, conforme julgou a 4a. Câmara da 1a. Seção Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo[19].Da mesma forma que se admite a inclusão do sobrenome do padrasto, também é possível que seja retirado do assento de nascimento o patronímico do genitor, nos casos, por exemplo, de abandono afetivo. Contudo, a retirada do sobrenome não excluiria o direito sucessório e tampouco o alimentar. Caso contrário, sua desídia em relação ao filho traria como consequência a sua dispensa com qualquer obrigação em relação a ele.
 
Direito de convivência e guarda: Havendo vários pais/mães, necessário será a definição de convivência e guarda, a fim de assegurar o melhor interesse da criança. Assim, caso esta família não conviva sob o mesmo teto, importante que todos os que façam parte desta MULTIPARENTALIDADE tenham dias de convivência definidos, judicialmente ou não. Quanto à guarda, o ideal é que ela seja compartilhada, podendo todos os envolvidos dialogar sobre os destinos deste filho. Em não sendo isto possível, a guarda poderá ser determinada a favor da dupla com quem resida o infante. Ainda não havendo acordo, caberá ao Judiciário decidir no caso concreto.Neste caso específico, a guarda deverá ficar com YYY e KKK, posto que é com eles que a infante reside, devendo a convivência entre ZZZ e XXX se dar de forma livre.
 
Direito a alimentos: A pensão alimentícia está embasada, dentre outros, no princípio da solidariedade familiar. Assim, se a pessoa possuir mais de um pai ou mais de uma mãe, natural que o dever ao pensionamento alimentar seja estendido a todos. E esta obrigação não se limitará aos pais, mas incluirá também todos os avós. De se ver que o menor poderá ser muito melhor assistido, tendo em vista o número de pessoas que estarão obrigadas com seu sustento e cuidado. Na espécie, verifico que ZZZ possui uma outra filha quase da mesma idade da requerente e que aquela menor estuda do Colégio Galois (um dos mais caros de Brasília!), faz curso de inglês e possui plano de saúde. De outra banda, ZZZ possui uma fazenda de mil hectares com mais de vinte empregados fixos (com salário médio cada um de dois salários a dois salários mínimos e meio). Além disso, possui uma camionete Hilux, duas Stradas, um Uno, um Caminhão, um I30, um Volvo, além de uma casa no Lago Norte.
A Lei 8.560/92, em seu art. 7º, autoriza a fixação da verba alimentar, mesmo que não haja pedido expresso:
Art. 7° Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.
Assim, atenta às necessidades da criança e às possibilidades financeiras de ZZZ, FIXO pensão alimentícia a ser paga por ele desde o dia da citação, notadamente dia 22 de julho de 2013, fls. 45/46, no valor de cinco salários mínimos mensais.
 
Direito ao reconhecimento genético: O direito ao reconhecimento genético está intimamente relacionado com o princípio da dignidade humana. Todos temos o direito de saber de onde viemos, por quem fomos gerados. Além da curiosidade natural, gravita em torno deste direito a necessidade de sabermos quem pode vir a ser nossos irmãos e pais biológicos, até mesmo para evitar relacionamento sexual com estas pessoas. Ademais, há casos em que somente parentes consanguíneos podem ajudar no caso de transplante.
 
Direito à herança: Admitida a MULTIPARENTALIDADE, todos os efeitos daí advindos são estendidos. É dizer, como o direito sucessório é assegurado aos filhos, ele terá direito de receber herança de tantos pais/mães quantos tiver. O princípio do melhor interesse da criança deve subsidiar todas as relações jurídicas.
 
Entendo que, ao se atentar para o princípio do melhor interesse da criança, bem como ao princípio da realidade e da dignidade da pessoa humana, não há como afastar a possibilidade de que uma pessoa possa ter mais de um pai e de uma mãe. Pois como afirma Roudinesco[20], para a psicanálise, a família, seja qual for sua evolução, e sejam quais forem as estruturas às quais se liga, será sempre uma história de família, uma cena de família, semelhante àquela dos Labdácias, dos reis shakesperianos ou dos irmãos Karamazov.
O direito deve espelhar e proteger a vida da pessoa na sua inteireza. Se no caso concreto ela possuir duas mães, dois pais, ou seja lá a composição que sua família tenha, não cabe ao Direito e tampouco ao Judiciário impor limites a esta entidade familiar.
Hannah Arendt[21] já dizia que a pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá. Ou seja, somos únicos!
Engessar arranjos familiares tendo como fundamento o dogma da unicidade de paternidade e maternidade, é apenas fazer uma leitura linear da vida. É preciso que nossos horizontes sejam alargados, que nossa visão seja aprofundada, e que nossos braços sejam fontes de acolhimento.
Aceitar a formação das famílias como elas efetivamente se apresentam, é lhes dar dignidade. Ressalta Schreiber[22] que a dignidade não consiste em um conceito de aplicação matemática. A própria percepção do que é ou não essencial ao ser humano varia conforme a cultura e a história de cada povo, e também de acordo com as concepções de vida de cada indivíduo.
Ortega e Gasset afirma que o homem é ele e suas circunstâncias. Ou seja, cada um de nós possui sua própria realidade, onde há a possibilidade de que, observada a complexidade da vida, tenhamos mais de um pai ou mãe.
Assim, se a vida se mostra plúrima, com diversos caminhos, neste sentido deve caminhar o Direito, a fim de que possa acompanhar o desenvolvimento da sociedade e aceitar a vida de cada pessoa, respeitando sua família na forma que ela se desenhou.
Luc Ferry[23] alerta que o único laço social que nos últimos dois séculos se aprofundou, intensificou e enriqueceu foi o que une as gerações no seio da família. Frequentemente decomposta, situada fora do casamento ou sem dúvida recomposta, no entanto menos hipócrita: esse é o paradoxo da família moderna. É nela, e talvez apenas aí, que subsistem e até se aprofundam formas de solidariedade de que o restante da sociedade, dominado quase exclusivamente pelos imperativos da competição e da concorrência, quase não tem mais conhecimento. É diante dos nossos próximos, daqueles que amamos e, sem dúvida por extensão, diante dos demais humanos que espontaneamente nos disponibilizamos “sair de nós mesmos”, a recuperar a transcendência e o sentido de uma sociedade que mobiliza o tempo todo tendências contrárias. E esse dado pode parecer trivial, mas não é: longe de ser óbvio, é fruto de uma história singular. Em vez de essa nova fase do individualismo apenas construir mais um desdobramento egoísta, a esfera do privado torna-se o grande negócio público de amanhã. Em vez de singulares e isolados, os problemas do indivíduo tendem ao universal, de forma que o que ingenuamente acreditamos pertencer à lógica individual é eminentemente público e coletivo.
O moderno enfoque da proteção da família desloca-se de sua instituição como um todo para perceber e valorar cada um de seus integrantes. Todos temos direitos à identidade pessoal. Se nossa realidade mostra-se diversa da grande maioria das famílias, este motivo não é o bastante para que não tenhamos direitos.
A dignidade da pessoa humana deve ser o princípio e o fim do Direito. O ser humano deve ser sempre o que de mais relevante cabe ao Direito tutelar. Se o deixarmos ao desabrigo, estaremos sendo cúmplices de rasgos na alma. O não fazer, o se omitir, também é uma forma cruel de abolir direitos.
A MULTIPARENTALIDADE hoje é uma realidade em muitas famílias. A ciência do Direito deve recebê-la e aceitá-la como evolução social. Famílias, em toda sua diversidade, caleidoscópicas, multifacetadas, são verdades que se impõe. Destarte, a MULTIPARENTALIDADE deve ser incluída e acatada no ordenamento jurídico como um novo perfil familiar, sempre respeitando-se a dignidade de cada integrante desta família.
 
Isto posto JULGO PROCEDENTE o pedido para DECLARAR que         YYY não é o pai biológico de XXX, mas além de ser seu pai registral é também seu PAI AFETIVO, bem como para DECLARAR que ZZZ é o pai biológico de XXX. Destarte, DECLARO que tanto YYY quanto ZZZ são pais de XXX, e como consequência passará a se chamar XXX Z, devendo constar em seu registro de nascimento a dupla paternidade. Estabeleço a GUARDA em favor de YYY e KKK, com a convivência livre a favor de ZZZ.
FIXO os alimentos devidos por ZZZ no importe de cinco salários mínimos mensais, a serem pagos todo o dia 05 de cada mês, tendo como marco inicial a data da citação, especificamente dia 22 de julho de 2013.
CONDENO ZZZ no pagamento das custas e honorários advocatícios que fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais), nos termos do art. 20,§ 4º do CPC.
 
Transitada em julgado, expeça-se mandado de averbação, dê-se baixa e arquive-se.
 
Sobradinho/DF, 06 de junho de 2014.

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