Socioafetividade
em cartório
O instituto da
paternidade socioafetiva, introduzido na doutrina brasileira pelo jurista Luiz
Edson Fachin (1992), tem a sua existência ou coexistência reconhecidas no
âmbito da realidade familiar e sua moldura jurídica extrai-se do artigo 1.593
do Código Civil (2002), quando a relação de filiação resulta de outra origem
que não a da consanguinidade.
Verifica-se, assim,
a parentalidade socioafetiva, nutrida pelo espirito, que tem igualdade jurídica
com aquela adveniente do vinculo biológico, ambas com os mesmos direitos e
deveres inerentes à relação paterno-filial.
É certo que tem sido permitido o reconhecimento
voluntário da paternidade biológica perante o Oficial de Registro Civil, a
qualquer tempo, mediante averbação do ato declaratório, no assento respectivo
do nascimento do filho reconhecido, conforme tem sido objeto de politicas
públicas (Lei nº 8.560/1992, com atualização da Lei nº 12.004/2009) e
incentivado por mecanismos de facilitação (Provimentos do CNJ).
Caso é de estender-se, agora, nas mesmas
latitudes, o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva, tendo em
vista a igualdade jurídica entre as espécies de filiação (art. 226 § 6º, da
Constituição Federal), quando, com direitos e qualificações idênticos, o filho
afetivo resulta de um liame dos fatos da vida no plano íntimo da convivência
com o pai referencial.
Neste sentido, iniciativa normativa inédita no
país, vem permitir através do Provimento nº 09/2013, de 2 de dezembro de 2013,
da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco, que homens registrem filhos não
biológicos em cartório, bastando (i) o comparecimento pessoal para a declaração
(art. 2º, § 1º); (ii) a concordância expressa da genitora ou do filho maior
(art. 2º, §§ 3º e 4º); (iii) a qualificação dos dados do requerente, da
genitora e do filho (art. 2º § 3º), e (iv) observadas as normas legais
referentes à gratuidade de atos (art. 8º).
A simplificação do procedimento do
reconhecimento elimina a necessidade de provocação jurisdicional (que rende
processo judicial de média duração) e se apresenta como medida de elevado
alcance social, a saber que muitos
filhos, sem paternidade biológica preestabelecida nos seus registros, já
convivem de forma afetiva com os pais substitutos, em famílias expandidas ou não,
e necessitam, por direito personalíssimo, possuírem um referencial de
autoridade parental e cuidadora.
O provimento, de nossa autoria (como Corregedor
Geral de Justiça, em exercício) considerou, em suas diretivas principais, os
fundamentos axiológicos do princípio da afetividade e da dignidade da pessoa
humana, tendo em conta a amplitude do conceito de família ofertado pela
Constituição Federal de 1988. Mais ainda, quando em seu artigo 226 resulta
estabelecido que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Adiante, o instrumento normativo indica alguns
pressupostos de base, assinalando que:
(i) as normas consubstanciadas nos Provimentos
nºs 12, 16 e 26 do Conselho Nacional de Justiça, as quais visam facilitar o
reconhecimento voluntário de paternidade biológica devem ser aplicáveis, no que
forem compatíveis, ao reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva;
(ii) o disposto no artigo 10, II, do Código
Civil em vigor, estabelece que “os atos judiciais ou extrajudiciais que declararem
ou reconhecerem a filiação devem ser averbados em registro público”, tornando-se
o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, nesse fim, forma
desburocratizada a estabelecer a relação paterno-filial fundada na
socioafetividade;
(iii) o reconhecimento espontâneo da paternidade
socioafetiva não obstaculiza a discussão judicial sobre a verdade biológica
(art. 7º).
Induvidoso que “do reconhecimento jurídico da
filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à
autoridade parental” (Enunciado Programático nº 06/2013, do IBDFAM – Instituto
Brasileiro de Direito de Família), os filhos socioafetivos tornam-se, pelo
Provimento editado, os seus maiores beneficiários, porquanto para além de uma
autoestima elevada, ante a existência de um pai civil (socioafetivo), a sua
dignidade como pessoa humana se coloca em nível de equipotência com a dos
filhos biológicos, pela igualdade jurídico-substancial que congrega todos os
filhos; todos amparados, então, por um poder familiar.
Quando o art. 1.593 do Código Civil permite que
a paternidade socioafetiva seja reconhecida junto a pessoas que não tenham o nome
do pai biológico na certidão de nascimento, suprindo do berço da origens a
lacuna de sua identidade genética na esfera registral, diante dos fatos
supervenientes da vida que as colocam vinculadas a um pai de afeição, caso é de
se admitir que essa declaração possa ser feita pelo pai, administrativamente
(perante o Registro Civil), sem necessária demanda judicial do filho, isto porque
o reconhecimento é feito, sempre, em favor do próprio filho.
Bem de ver que o referido normativo codificado,
em extensão do parentesco civil, recepciona outros vínculos, para além da
adoção, como aqueles decorrentes da reprodução artificial heteróloga (art. 1.597,
V, CC) e da posse de estado de filho; vínculos que nas três hipóteses
reproduzem a noção exata da paternidade socioafetiva.
Neste sentido, o
Enunciado nº 103 do C.J.F./STJ.
Mas não é só. Bem é certo pensar, no ponto, que
a vida para ter sentido precisa ter as bases mais sólidas para o sentido da
vida. Quanto mais se discute a socioafetividade, em seus efeitos jurídicos, o
sentido da vida nos ensina que esses efeitos tem sentido visceral com a própria
vida!!! A paternidade/maternidade (biológicas ou afetivas) sustenta um forte
vínculo de referência, provendo a criança ou adolescente, de fonte essencial de
sua própria identidade.
De tal sentir, não serão desafeições de doutrina
minoritária, sem qualquer sentido de fato, que poderão reduzir o sentido da vida
que a sociedade e, no particular a família, nos ensina.
Realmente. O pernambucano e desembargador
Virgilio de Sá Pereira (1871-1934), um dos maiores civilistas de todos os
tempos, ensinou, por sua vez, que “a família é um fato natural, criada pela
natureza e não pelo homem, motivo pelo qual excede a moldura que o legislador a
enquadra, pois ele não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera.”
(“Direito de Família”, 1923, p. 59).
Em menos palavras: socioafetividade, na esfera
familiar, é a vida pulsando em sua realidade inexorável de afeições, a partir
do contexto mais nuclear, queiram ou não os menos afetivos.
JONES
FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é
desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de
Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de
direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras
Jurídicas (APLJ), onde patrono da cadeira que ocupa é o jurista Virgílio de Sá
Pereira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário