sexta-feira, 3 de abril de 2020

O CONTRATO NOS TEMPOS DE COVID-19. ARTIGO DE JOSÉ FERNANDO SIMÃO.

O contrato nos tempos da COVID-19. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio.
 José Fernando Simão
“A estabilidade das convenções é uma necessidade social e um princípio de bom senso; ela é também uma regra de justiça”. Radouant.
“Nos sistemas jurídicos não se podem enxertar teorias; as teorias, ainda que extendentes, têm de estar contidas no sistema. A meia-ciência ama teorias, como, através de séculos, amou metafísica” Pontes de Miranda[1]
I – Uma possível introdução.
O título das presentes linhas tem por inspiração uma das obras clássicas de Gabriel Garcia Marques: “Amor nos tempos do cólera” de 1985. As personagens, Fermina Daza e Florentino Ariza, depois de uma vida de desencontros amorosos, acabam entrando em um barco para uma viagem fluvial e resolvem nele ficar até os restos de sua vida.
Em tempos de coronavírus, revisitar as categorias jurídicas é preciso. Preciso, como necessário. A precisão teórica é o objetivo.
A pandemia se instalou definitivamente e com ela o caos jurídico. A doutrina, sempre ansiosa por dar respostas, parece se precipitar em conclusões pouco refletidas.
A pandemia é uma hipótese de força maior (artigo 393 do CC)? A pandemia é uma hipótese de alteração de circunstâncias (arts. 317 e 478 do CC)?
As notas que surgiram são de que estamos diante da força maior descrita no artigo 393 do Código Civil e muito se falou sobre fortuito externo (que rompe nexo causal e fasta o dever de indenizar) e o fortuito interno (que deve ser arcado pelo devedor).
Então é hora de pontuar as categorias, indicar seus afeitos e dar sugestões de solução de algumas questões práticas. Como ensina Pontes de Miranda:
Somente se justificam teorias que correspondam aos sistemas jurídicos e, pois, o integrem. Partindo-se de tais premissas metodológicas, pode-se cogitar, em especial, do assunto, sem se perder de vista o direito vigente[2]
II – As velhas categorias jurídicas em xeque.
a) Deixem a força maior fora disso! Sua aplicação é residual na pandemia.
A força maior (e, aqui, acreditem: é inútil fazer a distinção com o caso fortuito como se verá a seguir e mais inútil ainda se fazer a distinção entre fortuito externo e interno) conta com definição legal (art. 393, parágrafo único, do CC):
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Se caso fortuito ou de força maior são ou não sinônimos e qual seria a distinção entre eles, a doutrina traz 6 teorias[3] que Washington de Barros Monteiro assim compila: “a) teoria da extraordinariedade; b) teoria da previsibilidade e da irresistibilidade; c) teoria das forças naturais e do fato de terceiro; d) teoria da diferenciação quantitativa; e) teoria do conhecimento; f) teoria do reflexo sobre a vontade humana”.[4]
Por que a distinção é irrelevante para se abordar os efeitos do vírus sobre as relações contratuais? A um porque não se há distinção eficacial entre o caso fortuito e a força maior (explico isso a seguir). A duas porque não se trata de caso fortuito nem de força maior a pandemia.
Em termos de efeitos, em ocorrendo o caso fortuito ou de força maior, a lei autoriza:
1) A resolução do contrato, seu desfazimento, sua extinção, com efeitos ex nunc, ou seja, do momento em que se declarou a a resolução para frente.
2) Irresponsabilidade do devedor pelos prejuízos causados ao credor.
O fato necessário torna a prestação impossível de ser cumprida. Nos exemplos de manual, há uma greve geral em São Paulo que impede a locomoção de pessoas. O devedor não consegue chegar no domicílio do credor para efetuar o pagamento. Há uma impossibilidade física de se levar o cavalo ao credor quando o trânsito colapsa.
Duas questões merecem reflexão. A primeira é que se a “impossibilidade” é passageira, a força maior não tem aplicação. É fato que vivemos uma pandemia passageira. Conforme leciona Pontes de Miranda,
“Se é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá. Enquanto tal mudança é de esperar-se, de jeito que se consiga a finalidade do negócio jurídico, nem incorre em mora o devedor, nem, a fortiori, se extingue a dívida. Mas, ainda aí, é de advertir-se que a duração da impossibilidade passageira, ou de se supor passageira, pode ser tal que se tenha de considerar ofendida a finalidade, dando ensejo a direito de resolução”[5].
Se a prestação é exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não estamos diante da força maior em seu sentido clássico. Isso porque há uma figura específica para resolver exatamente essa situação. Há categoria própria.
Não se desconhece a leitura de parte da doutrina, em tempos em que a o Código Civil de 1916 não cuidava da figura da revisão contratual, nem da onerosidade excessiva. É por isso que a doutrina antiga ainda apegada ao BGB em sua versão original (a partir de Hedemann), entendia que será impossível a prestação “cujo cumprimento exija do devedor esforço extraordinário e injustificável”[6].
Há uma pandemia e, por ato do Poder Executivo, os Shoppings Centers fecham. Não há público, não há faturamento. O shopping center cobra dos lojistas a componente fixa do aluguel. Há uma pandemia e o comércio de rua, por ato do Estado, fecha suas portas. Não há público e o lojista precisa pagar o aluguel. A pergunta que cabe em ambos os casos é: há uma impossibilidade de se cumprir a prestação que é pecuniária (dar dinheiro)?
A resposta é obviamente negativa. Aliás o jornal Valor econômico de hoje, dia 27.03.2020, afirma que “caixa alto ajuda grandes empresas a enfrentar a crise”. Segundo o jornal, 85% das companhias que tem ação na bolsa conseguem honrar seus compromissos trabalhistas mesmo que ficassem 12 meses sem faturar. E metade das empresas restantes (15%, portanto) suportariam 6 meses. São 97 empresas não financeiras que fazem parte do IBOVESPA e do Índice Small Caps[7].
Da mesma forma, a ausência de passageiros em aviões. Não há impedimento para o transporte ocorrer, mas há custos altos em se transportar poucos passageiros.
E ainda que as empresas, sem faturamento, não tivessem dinheiro para pagar o aluguel, força maior é um conceito que não se aplica aos exemplos dados.
Há hipóteses em que a força maior resulta da pandemia? Há e são relacionadas à prestação de fazer. A empreitada não pode prosseguir pela pandemia. Não se podem reunir os pedreiros e demais funcionários em tempo de quarentena. A prestação de serviços de limpeza para porque o prefeito de certa cidade decreta quarentena que efetivamente proíbe o cidadão de sair de sua casa.
Da mesma forma, os shows, espetáculos, festas de casamento que foram cancelados pelas restrições da pandemia. Nessas hipóteses, o contrato se resolve e as partes voltam ao estado anterior, sem se falar em perdas e danos.
Se possível for o serviço remoto, por home office, o serviço deve ser prestado em tempos de pandemia. É o que ocorre com advogados, contadores etc. Sendo possível o trabalho remoto (e muitas vezes o é), não há que se alegar impossibilidade da prestação porque o devedor não pode sair de casa.
b) Pensem na base objetiva do negócio e seus efeitos (Teoria de Oertmann).
Agora, a categoria que se deve estudar é a da perda da base do negócio, que retoma a famosa história da Coroação do Rei Eduardo VII, os chamados coronation cases (qualquer trocadilho com o coronavírus não é mera coincidência).
A origem das teorias da imprevisão, da onerosidade excessiva, da base do negócio se encontra na velha cláusula medieval rebus sic stantibus. “Contractus que habent dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur”: os contratos em que haja dependência de fatos futuros devem ser compreendidos estando assim as coisas.
Novamente, precisas as lições de Pontes de Miranda a respeito do tema:
“O princípio de adimplir-se o que se prometeu exige que não se levem em conta os sacrifícios dos devedores. Deve, pague. Mas esse absolutismo levaria a soluções que destoam dos propósitos de adaptação social, que tem todo sistema jurídico. Não nos referimos à equidade, porque esse conceito perturbaria, profundamente, a pesquisa para a solução do problema da base dos negócios jurídicos; sem nos referimos a indagações sobre a cláusula rebus sic stantibus, porque solução ligada a esse conceito somente poderia consistir em se ter sempre por inserta, ainda que tacitamente, ou implicitamente, a cláusula”[8].
A cláusula, de origem canônica, nasce como forma de relativizar, abrandar, o princípio pacta sunt servanda, ou seja, o princípio pelo qual todos os acordos devem ser cumpridos.
É uma ideia lógica e precisa: se o contrato nasceu com certa base objetiva, ou seja, determinadas circunstâncias circundantes, e tais circunstâncias se alteram por um fato imprevisível, o contrato pode ser resolvido ou revisto. Daí rebus (as coisas) sic (assim) stantibus (estando).
Eduardo VII, filho da Rainha Vitória (que faleceu em janeiro de 1901), marcou sua coroação para 26 de junho de 1902. Os ingleses esperavam, eufóricos, sua coroação, pois a maioria deles não tinha visto uma cerimônia como aquela (o reinado longevo de Vitória – 1834 a 1901 – que só foi suplantado por Elizabeth II – 1952 até o momento). Assim, divulgado o percurso do cortejo real, foram firmados contratos de locação de sacadas (balconies) para que as pessoas pudessem ter uma visão privilegiada do monarca. Ocorre que, por um problema de saúde do Rei, a coroação foi adiada e só ocorreu em 9 de agosto de 1902. A questão jurídica suscitada era a seguinte: a mudança de data da coroação tornou a locação impossível com perda de seu objeto? A resposta é negativa, pois as sacadas poderiam ser usadas normalmente. Se as sacadas tivessem desabado por força de uma calamidade, aí teríamos a impossibilidade do objeto. Contudo, uma sacada para ser usada sem que haja o cortejo atende às bases do negócio?
Arnoldo Medeiros da Fonseca, em obra clássica e já antiga (1943) sobre o tema, porém que tempo não conseguiu desatualizar, explica o que é base do negócio:
“Por base do negócio entendem-se as representações dos interessados, ao tempo da conclusão do contrato, sobre a existência de certas circunstâncias básicas para sua decisão, no caso de serem estas representações encaradas por ambas as partes como base do acordo contratual (Geschäftsgrundlage), incluindo-se, assim, em princípio, entre elas, v. g., a equivalência de valor entre a prestação e a contraprestação, considerada tacitamente querida; a permanência aproximada do preço convencionado, etc. Quando, em conseqüência de fatos sobrevindos depois da conclusão do contrato, a base do negócio desaparece, perturbando-se o equilíbrio inicial, o contrato não corresponderia mais à vontade das partes e o juiz deveria, por sua intervenção, readaptá-lo a essa vontade, fosse resilindo-o, fosse modificando-o, para que ele correspondesse ao que as partes teriam querido, se previssem os acontecimento”[9].
Completa Pontes de Miranda:
Base do negócio jurídico é o elemento circunstancial ou estado geral de coisas cuja existência ou subsistência é essencial a que o contrato subsista, salvo onde o acordo dos figurantes restringiu a relevância do elemento ou do estado geral de coisas.
Deixa de subsistir a base do negócio jurídico: a) se, tratando-se de negócio jurídico bilateral, deixa de haver contraprestação (se deixa de haver prestação, há a exceptio non adimpleti contractus, e – com o inadimplemento – a resolução); b) se não se pode obter a finalidade objetiva do negócio jurídico, ainda que possível a prestação, entendendo-se que a finalidade de um dos figurantes que o outro admitiu é objetiva (=subjetiva comum)”[10].
É exatamente (ainda que sob o manto da teoria da imprevisão e de uma leitura mais ligada ao evento em si – a Grande Guerra) que ocorreu na famosa decisão do Conseil d’État (a última instância dos Tribunais Administrativos franceses) de 30 de março de 1916, quando decidiu a questão do fornecimento de gás em Bordeaux. Lembra Laura Coradini Frantz que se tratava de litígio entre a Prefeitura de Bordeaux e a Compagnie Générale d’Eclairage da cidade[11]. O contrato entre a cidade e a empresa tinha o valor fixo do gás a ser pago pelos cidadãos. Com a guerra, os custos de transporte do gás aumentaram[12] enormemente e a empresa queria aumentar o preço dos consumidores. A companhia ganha uma indenização a ser paga pela Prefeitura.
Arnoldo Medeiros da Fonseca explica que Chardenet, comissário do Governo, sustentou o princípio de que “o concessionário não deve suportar a sobrecarga ocasionada por eventos imprevistos, que o coloquem na impossibilidade de executar o serviço nas condições em que foi pactuado”[13]. Diz Chardenet que “o poder público, o concedente, exigirá do concessionários a execução do serviço, ao qual se obrigou por contrato, mas o poder público levará em conta o concessionário, seja em lhe concedendo indenização, seja limitando certas obrigações ao qual se obrigou, seja por outros ajustes. O poder público levará em conta o encargo excedente superior ao máximo das dificuldades ou ao máximo da amplitude das variações econômicas, cuja previsão era possível no momento em que se contratou”[14].
A questão foi tão séria que, em 1918, no dia 21 de janeiro, com a Grande Guerra ainda em curso, a França editou uma lei geral, a Lei Faillot, para cuidar da revisão contratual. Trata-se de uma lei provisória e com término de vigência expressamente previsto. O artigo 1º assim dispõe:
Art. 1º. Enquanto durar a guerra e até três meses após o fim da cessação das hostilidades, as disposições excepcionais seguintes são aplicadas aos mercados e contratos comerciais para as partes ou apenas uma delas, que foram concluídos antes de 1 de agosto de 1914[15], e que cuidem de entrega de mercadorias ou de produtos, seja outras prestações sucessivas ou apenas diferidas.
Os efeitos da Lei Faillot estão em seu artigo segundo:
Art. 2º. Independentemente de a causa da resolução resultar do direito comum ou da convenção, os mercados e contratos atingidos por essa lei, de acordo com o artigo anterior, podem ser resolvidos a pedido de qualquer uma das partes, se ficar comprovado que, por conta do estado de guerra, a execução das obrigações de um dos contratantes acarretará encargos ou lhe causará um prejuízo, cuja importância ultrapassará em muito as previsões que poderiam ter sido razoavelmente feitas à época da convenção.
Da experiência francesa de 1918, interessa, e muito, a parte final do artigo 2º e, com isso, passo aos problemas da realidade brasileira:
“O juiz pode, também, por pedido de uma das partes, decidir pela suspensão de execução do contrato durante o prazo que ele determinar”
c – A casuística brasileira atual
Há setores da economia realmente colapsados pelo caos pandêmico e o confinamento preventivo.
Alguns contratos têm o sinalagma afetados por conta das mudanças profundas verificadas entre o momento de sua celebração e o de sua execução. A alteração radical da base do negócio exige que se busque um reequilíbrio das prestações, se possível, ou sua resolução, se impossível.
Todo o norte dessas reflexões é o princípio da conservação do negócio jurídico. O contrato deve ser prioritariamente preservado, pois isso interessa aos próprios contraentes (o adimplemento atrai, polariza, a obrigação[16]). A sua manutenção, portanto, interessa ao sistema jurídico como um todo e se revela fundamental para a economia (manutenção de trocas), especialmente quando o desemprego ameaça considerável parcela da população brasileira.
Assim, a base jurídica da revisão contratual será, em leitura alargada, o art. 317 do Código Civil. In verbis:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Se o dispositivo nasce exclusivamente para possibilitar a inserção judicial de correção monetária a um contrato que não a previa e por isso está localizado no “objeto do pagamento” e logo a seguir ao princípio do nominalismo (art. 315)[17], a elasticidade interpretativa permite que o dispositivo seja utilizado para a revisão geral das prestações contratuais, em busca do equilíbrio perdido.
Muitos contratos, em razão da pandemia (motivo imprevisível), nasceram equilibrados (sinalagma genético), mas suas prestações ficaram manifestamente desproporcionais pela mudança da base objetiva do negócio.
É por isso que o contrato de locação comercial (não residencial nos termos da lei 8.245/91) passa a ser o centro das atenções em tempos de pandemia. Os centros comerciais (Shoppings Centers) estão fechados por decisão do poder executivo. As lojas deixam de ter qualquer faturamento, ou seja, cessam suas atividades.
Se é verdade que o aluguel a ser pago pelo volume de vendas (faturamento) cai para zero, a chamada res sperata, ou seja, as vantagens que o locatário paga por estar naquele shopping center, cujo renome lhe rende bons resultados, precisa ser revista quando há fechamento do shopping. Note-se que as despesas do empreendedor com água, luz, limpeza etc. (repassadas ou não aos lojistas) tende a zero. Os custos do empreendimento se minimizam demais quando há o encerramento (temporário das atividades).
Há que se lembrar nessa “busca pelo sinalagma perdido” que empreendedor e lojista são simultaneamente vítimas da pandemia.
Da mesma forma ocorreu o desequilíbrio por mudança da base do negócio nos contratos de aquisição de energia elétrica pelas empresas distribuidoras. Há um problema evidente (isso também vale para o petróleo). Em uma economia recessiva (como ocorreu em 2014 com a então Presidente Dilma), a distribuidora não tem demanda, a atividade econômica paralisada, com mais gente em casa, muitos estabelecimentos fechados e serviços sendo feitos por home office, implica o não consumo de parte considerável da energia adquirida pelas distribuidoras. O ano de 2020, com a “prometida” recuperação da economia, era visto pelo setor como ano de bons resultados para todos e com consequente aumento de demanda por energia elétrica. A pandemia alterou radicalmente situação. Por que uma das partes deve perder sozinha por conta de uma mudança da base contratual?
Em 30 de março de 2020, o Ministério de Minas e Energias postergou, sine die[18], a realização de todos os leilões de geração e transmissão programados para esse ano.
Se o contrato entre geradoras e distribuidoras seguir o princípio pacta sunt servanda, numa realidade fática e econômica de perde-perde, a distribuidora perde sozinha e a geradora ganha sozinha. Contudo, todos devem perder, um pouco, por meio da revisão dos contratos.
Vamos a um critério geral de revisão que observe o sinalagma e, posteriormente, critérios específicos para alguns tipos contratuais. Qual a solução que se propõe? O reequilíbrio do contrato com base em divisão de prejuízos observados alguns critérios:
- Análise decorrente da capacidade econômico-financeira das partes contratantes. A revisão da locação em que figura como locatária empresa de um grande grupo empresarial que tem um caixa suficiente para suportar a pandemia não pode ser igual à revisão daquela pequena loja de shopping que só tem um estabelecimento. A capacidade econômica da empresa educacional não pode ser comparada ao poder de compra de cada consumidor estudante. Balanços das empresas serão parâmetro para se postergar no tempo o cumprimento de certas prestações;
- Análise do ramo de atividade e seu potencial de mais rápida ou mais lenta recuperação. No setor de energia elétrica, por exemplo, com o fim da pandemia muitos estabelecimentos voltam a funcionar e a demanda volta a crescer. O juiz deve considerar o período de diferimento do pagamento das prestações a partir do prisma do tempo de recuperação daquele setor ou atividade;
- Evitar-se, a qualquer custo, a moratória completa, pois ela gera a ruptura do elemento preço, uma sensação de caos social e, no mais das vezes, graves danos à outra parte. Diferir-se no tempo parte da prestação devida afastando-se os encargos da mora é forma de recomposição do sinalagma funcional.
Para as locações de shopping center, Aline de Miranda Valverde Terra, indica como os fundamentos da revisão os artigos 567 do Código Civil[19] e art. 19 da Lei 8.245/91[20]. Isso também vale para as locações em geral.
No caso dos estabelecimentos de ensino em que, de um lado, há o fornecedor e, de outro, o consumidor, temos uma situação interessante. Não foi pequena a batalha dos donos de estabelecimentos de Ensino Superior junto ao MEC para que se permitisse a existência de graduação realizados totalmente on-line. Cursos virtuais significam pagar menos professores e, por consequência, menos horas de trabalho. Uma solução, agora, é garantir a manutenção do maior número de aulas por meio virtual.
Há diversas plataformas habilitadas para aulas virtuais presencias (professores e alunos em suas casas), com recurso de imagem, voz e chat, o que permite um diálogo efetivo entre quem ensina e quem aprende. É dever do Estabelecimento de Ensino providenciar as aulas virtuais, sob pena de inadimplemento. Isso porque essas plataformas são essenciais, na atualidade, ao desenvolvimento de atividades de ensino. Ao aluno cabe a decisão: manter o contrato vigente ou pedir sua extinção (resolução) por perda da base do negócio jurídico.
Contudo, se certas disciplinas exigirem uma parte prática, que se torna impossível por conta da utilização de espaços, por exemplo laboratórios, o fornecedor pode paralisar tal atividade, mas com duas consequências cuja escolha será do consumidor aluno: (i) reduzir proporcionalmente e de imediato o valor da mensalidade cobrada e permitir ao aluno ou (ii) a resolução do contrato por mudança da base do negócio, sem a incidência de qualquer multa.
III – Algumas notas conclusivas
Em notas conclusivas, podemos afirmar que será intenso o trabalho do Poder Judiciário para garantir a conversação dos contratos firmados pré-pandemia, ou seja, 20 de março de 2020.
A tendência de resolução do contrato, bem como de suspensão total de seus efeitos é nefasta ao equilíbrio contratual e ao sistema jurídico como um todo, com gravíssimos reflexos econômicos.
A pandemia é passageira. As decisões judiciais devem ser temporárias e com revisão constante de acordo com as rápidas mudanças fáticas que o quadro traz. É preciso releitura da ideia de imutabilidade das decisões.
É um momento de enorme insegurança social. Há uma instabilidade jurídica pela situação inusitada.
Não é momento de se “ressuscitar” a boa-fé objetiva cujo alcance foi profundamente limitado pela Lei da Liberdade Econômica[21]. O Brasil caminhava para a superação da intervenção judicial sobre o conteúdo do contrato. Boa-fé e função social recebem tratamento legal de eficácia mais restrita, menos abrangente. Voltava-se a valorizar a ideia de obrigatoriedade do contrato.
A boa-fé objetiva e a função social do contrato não podem retomar na pandemia a proeminência que perderam em 2019. Invocar o dever de mitigar os prejuízos (duty to mitigate the loss) é criar um vazio ao magistrado. E se esse dever não chegar a bom termo? O juiz reduz “prejuízos” reduzindo prestação contratual? Se for assim, que se analise o sinalagma à luz do artigo 317 do Código Civil e que o fundamento seja a base objetiva do negócio e não a cláusula geral de boa-fé que tenta retomar seu lugar (perdido em 2019) de panaceia para todos os males.
A pandemia é passageira, as soluções são passageiras, mas nem por isso podem ser menos pensadas, nem mais ligeiras.
Termino, como comecei, com Pontes de Miranda:
“Os sistemas jurídicos preocuparam-se com os problemas da impossibilidade originária, do erro (que é subjetivo) e da impossibilidade superveniente, e em geral deixaram de editar regras jurídicas para as espécies em que se não inseriu cláusula no negócio jurídico, mas em que a permanência, ou, pelo menos, a não mudança profunda das circunstâncias, é essencial ao negócio jurídico”[22].

[1] Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 285/286.
[2] Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 285/286
[3] Todas as teorias estão explicadas no meu livro Vícios do Produto no novo Código Civil e no CDC, São Paulo: Atlas, 2003, p. 179.
[4] Pontes de Miranda é contundente: “A distinção entre força maior e caso fortuito só teria de ser feita, só seria importante, se as regras jurídicas a respeito daquela e desse fossem diferentes, então, ter-se-ia de definir força maior e caso fortuito, conforme a comodidade da exposição. Não ocorrendo tal necessidade, é escusado estarem os juristas a atribuir significados que não têm base histórica, nem segurança em doutrina.” (Tratado de direito privado. t. XXII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 158/159, grifou-se).
[5] Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 289.
[6] Gomes, Orlando. Obrigações. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, item 114, p. 177.
[7] Dados obtidos do jornal em edição física.
[8] Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 294.
[9] Fonseca, Arnoldo Medeiros. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 115.
[10] Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 340.
[11] Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 19.
[12] O carvão foi um dos motes da Grande Guerra, pois, à época, era a principal fonte de energia.
[13] Fonseca, Arnoldo Medeiros. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 289.
[14] Fonseca, Arnoldo Medeiros. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 289.
[15] A Grande Guerra se inicia em 28 de julho de 1914. A Lei Faillot só abarca contratos anteriores ao início do conflito.
[16] Couto e Silva, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 17.
[17] O dispositivo fazia grande sentido quando a inflação no Brasil tinha picos repentinos, o que acabava por gerar planos econômicos quase sempre desastrosos. Essa é a razão histórica do dispositivo, mas a interpretação atual não se prende ao fenômeno inflacionário ou à correção monetária.
[18] Portaria 134.
[19] Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava
[20] Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá - lo ao preço de mercado.
[21] Valem as críticas de Pontes de Miranda às teorias que, quando da mudança de circunstâncias, invocam a equidade ou boa-fé. “As teorias que se atem à equidade ou à verificação da boa-fé, além de serem casuísticas e terem o defeito de deixar ao arbítrio do juiz o exame, são perturbadas, inicialmente, pela falta de aprofundamento da questão prévia: desde quando se há de consultar a equidade ou se atender à boa-fé? Não poderiam abstrair da consideração da existência, ou não, da base (subjetiva ou objetiva) do negócio jurídico” (Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 310, grifou-se).
[22] Pontes de Miranda, F. C. Tratado de direito privado. t. XXV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 293.

Nenhum comentário: