sábado, 18 de abril de 2020

IMPACTOS DA COVID-19 NOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS. Marcos Ehrhardt Jr.

IMPACTOS DA COVID-19 NOS CONTRATOS IMOBILIÁRIOS

Como os contratos de promessa de compra e venda de unidades imobiliárias vendidas na planta serão atingidos por força da pandemia do coronavírus? Essa é apenas uma das questões a considerar em tempos de alteração das circunstâncias que provocam perturbações de todas as ordens nas relações obrigacionais imobiliárias.
Marcos Ehrhardt Jr.[1]
O cenário nos tradicionais pontos de venda de unidades imobiliárias em nosso país encontra-se bem diferente do que a rotina de semanas anteriores: estandes de venda vazios, imobiliárias fechadas, canteiros de obras desmobilizados... Em algumas regiões do país, não é exagero destacar que novas contratações envolvendo imóveis ficaram praticamente paralisadas.
Não é difícil imaginar as dificuldades que os profissionais do setor enfrentam, desde aqueles que atuam na construção civil, passando pelos corretores de imóveis e advogados especializados, até os empreendedores e empresários do setor. Contudo, esse não é um quadro exclusivo do setor imobiliário.
Ingressamos num período de distanciamento social e não sabemos exatamente que mudanças serão transitórias e quais delas apresentarão tintas de definitividade quando as medidas sociais de contenção à epidemia sanitária forem flexibilizadas.
Não é fácil a tarefa de analisar as consequências de um evento de grande impacto social enquanto estamos vivenciando a própria situação a ser examinada. Falta-nos o distanciamento necessário quando novas informações, projetos de lei e medidas provisórias surgem a todo o momento. Importante ressaltar que não temos um único problema, mas sim uma origem comum (pandemia) para questões e litígios de várias ordens e graus de complexidade. Inviável apegar-se à falsa esperança de que é possível encontrar uma única saída, vale dizer, uma solução padrão para todos os desafios que estamos a encarar.
Como já tive oportunidade de consignar em texto anterior, são inúmeras as situações em que obrigações contratuais se tornaram inúteis ao credor, ou hipóteses em que o cumprimento da avença se tornou impossível ou extremamente oneroso. Diante da escolha entre revisar, resilir ou resolver, resta aos operadores jurídicos lidar com esses problemas utilizando as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento[2].
De início, há que se estabelecer uma premissa essencial: não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos massificados de consumo. Para os fins deste artigo, por exemplo, não há como considerar idêntica a situação de quem adquiriu imóvel na planta, com o caso de quem subcontratou parte da construção ou delegou a terceiros a execução do projeto hidráulico ou de segurança, com o incorporador de determinado empreendimento. Contratos de parceria e/ou constituição de sociedades de propósito específico entre empresas de engenharia devem ser disciplinados à luz do que dispõe o Código Civil e a legislação específica, sem amparo, em princípio, nas disposições do CDC, pois se presume a liberdade das partes, em condições de igualdade negocial, no momento da contratação.
De qualquer modo, para a proteção dos interesses do adquirente, do parceiro ou do incorporador, o caminho para a construção de soluções negociais passa pela análise do caso concreto, sendo indispensável a verificação do que ocorreu em cada relação contratual visando à constatação da causa (ou das causas) de tal ocorrência. Vale dizer, a pandemia do coronavírus não atingiu todos os contratos de modo uniforme, e não se pode confundir a excepcionalidade da situação com os efeitos concretos em cada relação negocial[3].
O novo cenário introduzido pela ocorrência da pandemia e pelas medidas de combate à Covid-19 estabelecidas pelo Poder Público surge meses após a aprovação da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Aqui ocorre uma guinada de 180 graus no percurso que estávamos trilhando: partimos de uma lei liberal, não intervencionista, que reafirma a autonomia privada e a força obrigatória dos contratos, para um clamor geral por medidas intervencionistas destinadas a nos “salvar” da crise e do consequente agravamento da recessão que já estávamos enfrentando.
Este texto está sendo redigido durante a votação do Projeto de Lei do Senado de nº 1.179/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia e relatado pela senadora Simone Tebet, que tem por objetivo criar em nosso país um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). É possível destacar alguns aspectos desta proposta que são relevantes para os contratos imobiliários:
a) Existe um termo inicial para adoção do RJET, considerando-se o dia 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19);
b) A proposta do RJET estabelece um regime transitório. Por essa razão, a suspensão da aplicação de normas nele previstas não implica sua revogação ou alteração;
c) Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da vigência do RJET até 30 de outubro de 2020. Apesar das graves consequências da pandemia, enquanto não aprovado o projeto, inexiste fundamento legal para impedir ou suspender a atual fluência dos prazos prescricionais[4];
d) A proposta do RJET estabelece o dia 30 de outubro de 2020 como termo resolutivo para a situação emergencial que vivenciamos e determina que as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.
Se ainda estamos a aguardar a conclusão do processo legislativo e a sanção presidencial como efetiva possibilidade de alterações no texto e ocorrência de vetos à proposta aprovada pelo Senado, não podemos perder de vista que a Lei nº 13.874/19 introduziu importante alteração no art. 421 do Código Civil, que passou a conter um parágrafo único com a seguinte redação: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
Sobre este ponto, já tive oportunidade de anotar que
A exigência de intervenção mínima do Estado e de se considerar a excepcionalidade da pretensão de revisão contratual deve ser aplicada aos contratos civis e empresariais, que por força do disposto no art. 421-A “presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”. Diante desse quadro, a “alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada”, sendo a revisão medida “excepcional e limitada”. A leitura dos dispositivos citados acima permite extrair a conclusão da impossibilidade de soluções genéricas, apontando para a revisão contratual de modo indistinto e uniforme a diversas espécies contratuais sem análise das peculiaridades do caso concreto, o que demandará bastante do Poder Judiciário nos próximos meses[5].
Deve-se, portanto, no cenário dos contratos regidos pelo CC/02, partir da premissa da conservação dos negócios jurídicos e considerar a revisão contratual de modo excepcional, cuja necessidade deve ser demonstrada pela parte prejudicada no caso concreto[6]. Nesse diapasão, há quem enquadre a pandemia do coronavírus como uma questão de força maior, portanto, um evento natural, e, como tal, “externo, inevitável e alheio às ações de uma das partes”, que tem por consequência eliminar ou limitar a responsabilidade por danos ou outras perdas resultantes de tais eventos.
Importante destacar que existem pretensões diversas ao se avaliar os efeitos da pandemia: ou se está buscando preservar o vínculo negocial, ressaltando-se a necessidade de revisão em face da alteração das circunstâncias, mormente a base objetiva no negócio, vale dizer, o seu equilíbrio econômico, ou se está procurando circunstância exonerativa do dever de indenizar pelo inadimplemento contratual.
Contudo, a mera alegação de força maior não é suficiente para a eficácia exoneratória pretendida. Como esclarece Nelson Rosenvald:
(...) a parte afetada terá de demonstrar que o evento de força maior escapa ao seu controle, tenha impedido, dificultado ou atrasado a execução do contrato, apesar de o contratante ter seguido todos os reasonable steps para evitar ou mitigar as consequências do evento, o Duty to mitigate the loss. Um contratante não será eximido de sua própria negligência.[7]
Conforme já anotei anteriormente[8], a gravidade da situação não permite tolerar comportamentos oportunistas de quem buscará eximir-se de obrigações negociais válidas e eficazes sem demonstração de que a pandemia da Covid-19 alterou a performance contratual. O ônus de demonstrar tal situação compete à parte que alega e não pode ser presumido sem que se ignorem as circunstâncias do caso concreto.
Para o julgador que deverá decidir pela intervenção ou não na avença negocial, é importante levar em consideração se a pandemia da Covid-19 foi a causa exclusiva do inadimplemento contratual. Para tanto, poderá investigar se outros contratos congêneres também deixaram de ser cumpridos no mesmo período. Assume relevância, no momento de surgimento da pandemia, a análise do comportamento posterior de ambos os contratantes, para se perquirir se medidas necessárias e indispensáveis à mitigação dos danos ao objeto contratual foram adotadas.
Imaginando um cenário diferente, de contratação anterior ao início da pandemia do coronavírus, tendo por objeto a aquisição de imóvel na planta, mediante promessa de compra e venda de unidade imobiliária futura, típica relação de consumo, celebrada entre o fornecedor-incorporador e o consumidor-adquirente da unidade, pessoa natural, em busca de sua casa própria, deve-se inicialmente analisar se existe no contrato celebrado entre as partes, cláusula que defina alocação de riscos em circunstâncias de eventos de força maior.
Diferentemente do que ocorre em outros setores, no âmbito dos contratos imobiliários, especialmente aqueles destinados à aquisição de unidades para moradia, que costumam ter longa duração, a existência desta cláusula é bem corriqueira. Refiro-me as denominadas “cláusulas de tolerância”.
Inicialmente introduzidas negocialmente nos instrumentos contratuais, as cláusulas de tolerância, que estabelecem a prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias, passaram a ser admitidas no Judiciário[9], até serem consagradas no texto da Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018[10].
Seria a pandemia do coronavírus circunstância que pudesse ser enquadrada nas hipóteses de incidência da cláusula de tolerância?
A resposta é afirmativa, pela impossibilidade de cumprimento do cronograma de diversos empreendimentos, quer seja por conta de fato do príncipe (v. g.: proibições estatais de funcionamento dos canteiros de obra para garantia do distanciamento social, limitações ao transporte de funcionários, dificuldades do recebimento de insumos oriundos de outras localidades, entre outros), quer seja pela interrupção abrupta e não prevista no fluxo financeiro para o empreendimento.
Como não existe um modelo previsto em lei para tal cláusula, prevalece aqui a liberdade das partes na sua contratação. Qual o suporte fático para a incidência dos efeitos pretendidos por esta cláusula? Só a análise do caso concreto, vale dizer, da verificação da disposição contratual específica permitirá responder a tal indagação. Mas uma premissa pode ser desde logo estabelecida: essa cláusula não pode subordinar totalmente a data de entrega ao interesse único do fornecedor sem algum tipo de explicação e/ou justificativa aferível objetivamente pelo consumidor.
Se considerarmos, por exemplo, o que ocorre no âmbito dos contratos imobiliários em nosso país, não é raro que a alegação de “evento de força maior” seja mencionada pela primeira vez numa contestação de uma ação que busca a resolução contratual e indenização por perdas e danos. Quem procede dessa forma costuma atribuir uma extensão e intensidade à alegação de evento de força maior como se este funcionasse feito um verdadeiro cheque em branco, vale dizer, uma licença plena e irrestrita, para justificar qualquer forma de inadimplemento. É preciso que o Judiciário esteja vigilante para reprimir tal tipo de abuso, pois meras dificuldades e inconvenientes integram o risco da atividade e não são suficientes para gerar esse tipo de eficácia[11].
Já tive oportunidade de sustentar que o prazo inicial de entrega da unidade comercializada costuma ser fixado unilateralmente pelo construtor, sendo, infelizmente, comum se constatar a abusiva prática de fixar o prazo de entrega já contando com o período de tolerância, como se ele fosse aplicável como regra geral, algo corriqueiro que pudesse ser empregado sem algum tipo de justificativa[12].
O período de tolerância precisa ser analisado de modo excepcional, com interpretação restritiva, sendo inapropriado entender que poderia ser aplicado automaticamente, pelo período integral de 180 dias, sem algum tipo de dosimetria e a apreciação das circunstâncias que motivaram o atraso inicial. Há que se exigir do construtor e/ou incorporador a demonstração da ocorrência de circunstâncias imprevisíveis que justifiquem a eficácia da cláusula de tolerância, sendo dele o ônus de comprovar a ocorrência dos fatos que, por disposição expressa do art. 6º do CDC, devem ser informados aos adquirentes tão logo ocorram, com o envio de novo cronograma de entrega, como forma de mitigar os danos a eles infligidos. E mais: deve-se interpretar pela impossibilidade de utilização dessa cláusula como “mera faculdade” do fornecedor[13].
Teremos situações em que os efeitos concretos da pandemia da Covid-19 interferirão no cronograma das obras dos empreendimentos em construção, mas em que o período previsto na cláusula de tolerância será mais do que suficiente e adequado à conclusão da relação negocial nos moldes do que foi pactuado.
Destaque-se, por oportuno, o art. 6º do já referido PL nº 1.179/2020, que propõe que as consequências decorrentes da pandemia da Covid-19 nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil (prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior), não terão efeitos jurídicos retroativos. Além disso, a proposição legislativa preconiza que não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.
Identificar a origem do impedimento fático à conclusão do contrato (se anterior ou posterior ao dia 20 de março de 2020, por exemplo) e o momento de superação deste impedimento será tarefa essencial para análise do programa contratual[14].
Neste sentido, Carlos Eduardo Pianovski adverte:
Não é possível, pois, ceder à tentação de afirmar que a crise – mesmo com a indisfarçável gravidade como a, hoje, gerada pelo COVID-19 – terá repercussões sobre a eficácia de todos os contratos. Tampouco se pode afirmar que, sobre os contratos que demandam os remédios que mitigam sua força obrigatória, os instrumentos serão os mesmos, ou terão a mesma extensão eficacial[15].
Outras situações demandarão a provável intervenção do Poder Judiciário, com a alegação formulada pelo fornecedor de que apesar da existência do período de prorrogação excepcional previsto contratualmente, este não seria suficiente para assegurar o cumprimento do negócio nas bases pactuadas pelas partes.
A solução da controvérsia passa pela observância do dever de informar, dada a exigência de transparência e cooperação, que encontra fundamento no dever geral de boa-fé objetiva, previsto no art. 422, aplicável às relações de consumo numa interpretação prospectiva que priorize o diálogo das fontes[16].
Fazer uma análise objetiva ajudará bastante nessa tarefa, o que pode ser demonstrado com algumas indagações essenciais:
a) Será que foi adotado pelo contratante algum plano de contingência?
b) Seria efetivamente e/ou economicamente possível a adoção de alguma medida de tal natureza?
c) A outra parte foi ao menos notificada das dificuldades e das medidas adotadas?
d) Tais medidas foram adotadas em tempo hábil?
e) Qual o impacto da intervenção do Poder Público na liberdade de agir dos figurantes do negócio?
Como já tive oportunidade de destacar noutro momento:
Compete a quem alega a excludente demonstrar: (a) que estava em dia com suas obrigações no momento da ocorrência da situação excepcional; (b) explicar como ocorreu o impacto no contrato; (c) qual o período de atraso provocado; (d) quanto tempo será necessário para retomar o cronograma; (e) os custos necessários à concretização das medidas de mitigação, desde que, como medida inicial e indispensável, tenha comunicado ao outro contratante a mudança das circunstâncias assim que possível[17].
A disciplina legal do Código de Defesa do Consumidor, se considerada isoladamente, parece insuficiente para lidar com todas as possibilidades de questões atinentes à pandemia da Covid-19, sendo importante não confundir as hipóteses de recusa ao cumprimento da oferta, descritas no art. 35[18], com a impossibilidade superveniente do objeto, desde que adequadamente demonstrada no caso concreto.
Analisando o outro polo da relação negocial, especificamente no que concerne à imputabilidade do incumprimento e à descaracterização da mora, vale dizer, a situação dos adquirentes de unidades imobiliárias que se obrigaram ao pagamento em contratos de longa duração, é possível, guardadas as particularidades das relações de consumo, aplicar raciocínio formulado pelo já citado Carlos Eduardo Pianovski:
Uma questão imediata que vem à tona diante do cenário de pandemia é o cumprimento pontual das obrigações em curso. Apesar da repercussão generalizada dos efeitos da COVID-19 sobre a vida das pessoas, não é possível afirmar, genericamente, que a exigibilidade das prestações contratuais está suspensa, com a cessação dos efeitos da mora. Examinar mora é avaliar imputabilidade objetiva. Há obrigações que permanecem exigíveis, diante da ausência de repercussão efetiva de força maior ou fato do príncipe que afaste a possibilidade razoável de cumprimento tempestivo. A impossibilidade de adimplemento é aferível não pelo fato externo em si, mas pela repercussão deste na esfera jurídica do devedor, sempre forte nos baldrames de alocação de riscos definidos pelo contrato. Nessa linha, pode-se concluir que, ao menos neste momento, boa parte das obrigações pecuniárias se enquadra nesse âmbito em que a exigibilidade se mantém, sempre a depender, obviamente, da aferição concreta sobre a esfera jurídica do devedor, com especial atenção, nos contratos empresariais, nas repercussões objetivas ensejadas pela pandemia em sua atividade econômica[19].
Dito de outro modo: se não é possível presumir que os efeitos da pandemia da Covid-19 interferiram no cronograma das obras, sendo necessário fazer uso do período integral estabelecido como “prazo de tolerância”, sem demonstração das peculiaridades do caso concreto, tampouco é possível presumir, de modo absoluto, a impossibilidade da manutenção do pagamento das prestações contratuais acordadas entre as partes, que igualmente exige do devedor a comprovação de um “impedimento transitório de fato”, alheio à sua vontade, conforme entendimento de Cláudia Lima Marques, Káren Bertoncello e Clarissa Costa de Lima:
(...) considerada a pandemia de COVID-19 como “impedimento transitório de fato” para a configuração da mora, por força maior, parece impositiva a verificação da qualidade de exceção dilatória desempenhada pelo inadimplemento decorrente da pandemia, porquanto assegurada a existência da obrigação para cumprimento futuro, mas sem a incidência dos encargos da mora. Em outras palavras, a pandemia e o estado de emergência, que isolam pessoas doentes, idosos e consumidores em geral, é uma força maior que impede a mora. Como ensina Cristiano Zanetti, a mora é uma espécie de inadimplemento parcial, no modo e no tempo devido. Consideramos, porém, que a força maior impede que a mudança no “tempo e no modo devido” seja considerada injusta ou mesmo seja definida como mora. (...) A força maior não significa o fim da obrigação de remuneração, mas somente sua dilação, razoável até o final da crise e restabelecimento da normalidade, e deve ser considerada para todos os consumidores, o caso da pandemia COVID-19. (...) Logo, o advento da exceção dilatória (Pandemia do Coronavírus), afastando a mora do devedor, indica que a solução equilibrada à proteção do consumidor vulnerável seja o reconhecimento do “dever geral de renegociação nos contratos de longa duração”, pela doutrina europeia atual, sedimentado nos deveres de cooperação, da boa-fé e na antiga exceção de ruína[20].
As técnicas de hermenêutica contratual passam a ocupar posição fundamental, sobretudo diante da nova redação do art. 113 do Código Civil, introduzida pela já citada Lei nº 13.874/19. Merece destaque o teor do inciso V do referido dispositivo, a preconizar que a interpretação deve corresponder “a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.
Diante de um quadro no qual o ritmo das decisões judiciais costuma estar em descompasso com os interesses e as necessidades dos figurantes do contrato, alternativas para a composição extrajudicial de tais conflitos devem ser priorizadas em prol da conservação dos negócios jurídicos[21], o que configura um momento importante para o emprego de técnicas de mediação inspiradas pelo dever geral de boa-fé objetiva, com o intuito de renegociação das bases contratuais para se alcançar o melhor adimplemento possível para todos os figurantes da relação negocial[22].

[2] Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível em https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475025/ primeiras-impressoes-sobre-os-impactos-do-distanciamento-social-nas-relacoes-privadas-em-face-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2020.

[3] Sobre o tema, ver recente artigo de Anderson Schreiber, denominado “Devagar com o andor: coronavírus e contratos  Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional”, publicado na Coluna Migalhas Contratuais, sob a curadoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT), disponível em https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contr...
[4] Importante anotar que mesmo se o texto atual do projeto para o RJTE seja aprovado sem alterações e se torne lei, sua disciplina para a suspensão e ou impedimento de prazos prescricionais somente será aplicada na inexistência de hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional, sendo, neste aspecto, norma subsidiária. Além disso, a suspensão e/ou impedimento aqui analisados, nos termos da proposta para o RJTE também se aplicam às hipóteses de decadência.
[5] Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível em https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475025/ primeiras-impressoes-sobre-os-impactos-do-distanciamento-social-nas-relacoes-privadas-em-face-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2020.
[6] Sobre esse ponto, tratando especificamente de contratos de locação em shopping centers, Aline de Miranda Valverde Terra assevera: “(...) Nada impede, todavia, que, no exercício legítimo da autonomia privada, as partes tenham gerido referido risco contratualmente, alocando-o a uma delas”. Nesse caso, como já se observou em outra sede, “atribui-se ao contratante a responsabilidade pelas consequências deflagradas pelo implemento de determinado fato superveniente previsível, cuja ocorrência, no momento da contratação, era incerta (rectius, risco). A verificação do risco repercutirá, assim, na esfera jurídica dos contratantes, desencadeando as responsabilidades definidas no contrato, com impacto na relação contratual e na economia das partes”. Significa dizer que, caso o contrato tenha, expressa e especificamente, imputado ao locatário, por exemplo, os riscos decorrentes de pandemia seguida de suspensão das atividades por fato do príncipe, nada lhe restará senão assumir as consequências econômicas negativas do evento e continuar a adimplir sua prestação consoante contratualmente ajustado, vale dizer, pagar o aluguel nos termos pactuados. Na hipótese, todavia, de as partes não haverem procedido à alocação positiva do risco, seguem-se as regras supletivas previstas pelo legislador, cuja aplicação pressupõe a qualificação do efeito produzido pelo evento necessário e irresistível no contrato. Vide artigo “Covid-19 e os contratos de locação em shopping center”, disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center. Acesso em: 7 abr. 2020.
[7] Para maiores reflexões sobre o tema, ver artigo de Nelson Rosenvald, denominado “Os impactos do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana”, publicado em https://www.nelsonrosenvald.info/single-post/2020/03/06/OS-IMPACTOS-DO-CORONAVIRUS-NA-RESPONSABILIDADE-CONTRATUAL-E-AQUILIANA. Basta imaginar uma situação concreta de um contrato celebrado entre dois empresários, cuja data de vencimento de determinada obrigação já estivesse expirada, configurando inadimplemento de um dos contratantes. Não será possível, após a configuração da mora, a alegação de evento de força maior para se eximir da incidência da cláusula penal, nos termos do art. 399 do Código Civil.
[8] Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível em https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475025/ primeiras-impressoes-sobre-os-impactos-do-distanciamento-social-nas-relacoes-privadas-em-face-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2020.
[9] Para citar um caso bem ilustrativo do modo como o Superior Tribunal de Justiça compreende esse tipo de cláusula negocial, vale transcrever: RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. ATRASO DA OBRA. ENTREGA APÓS O PRAZO ESTIMADO. CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA. VALIDADE. PREVISÃO LEGAL. PECULIARIDADES DA CONSTRUÇÃO CIVIL. ATENUAÇÃO DE RISCOS. BENEFÍCIO AOS CONTRATANTES. CDC. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. OBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAR. PRAZO DE PRORROGAÇÃO. RAZOABILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia a saber se é abusiva a cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção, a qual permite a prorrogação do prazo inicial para a entrega da obra. (...) 3. No contrato de promessa de compra e venda de imóvel em construção, além do período previsto para o término do empreendimento, há, comumente, cláusula de prorrogação excepcional do prazo de entrega da unidade ou de conclusão da obra, que varia entre 90 (noventa) e 180 (cento e oitenta) dias: a cláusula de tolerância. (...) 5. Não pode ser reputada abusiva a cláusula de tolerância no compromisso de compra e venda de imóvel em construção desde que contratada com prazo determinado e razoável, já que possui amparo não só nos usos e costumes do setor, mas também em lei especial (art. 48, § 2º, da Lei nº 4.591/1964), constituindo previsão que atenua os fatores de imprevisibilidade que afetam negativamente a construção civil, a onerar excessivamente seus atores, tais como intempéries, chuvas, escassez de insumos, greves, falta de mão de obra, crise no setor, entre outros contratempos. 6. A cláusula de tolerância, para fins de mora contratual, não constitui desvantagem exagerada em desfavor do consumidor, o que comprometeria o princípio da equivalência das prestações estabelecidas. Tal disposição contratual concorre para a diminuição do preço final da unidade habitacional a ser suportada pelo adquirente, pois ameniza o risco da atividade advindo da dificuldade de se fixar data certa para o término de obra de grande magnitude sujeita a diversos obstáculos e situações imprevisíveis. (...) 8. Mesmo sendo válida a cláusula de tolerância para o atraso na entrega da unidade habitacional em construção com prazo determinado de até 180 (cento e oitenta) dias, o incorporador deve observar o dever de informar e os demais princípios da legislação consumerista, cientificando claramente o adquirente, inclusive em ofertas, informes e peças publicitárias, do prazo de prorrogação, cujo descumprimento implicará responsabilidade civil. (...) (REsp 1582318/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/9/2017, DJe 21/9/2017).
[10] Vide o art. 43-A da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964: “A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador”.
[11] Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível em https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475025/ primeiras-impressoes-sobre-os-impactos-do-distanciamento-social-nas-relacoes-privadas-em-face-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2020.

[12] EHRHARDT JR., Marcos. Por que não dá para ser tolerante com a "cláusula de tolerância?“ Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/301592/por-que-nao-da-para-ser-tolerante-com-a-clausula-de-tolerancia. Acesso em: 7 abr. 2020.

[13] Anote-se ainda que o fato de existir previsão legal para a referida cláusula não afasta a necessidade de interpretação dela de modo sistemático, especialmente com as disposições que consagram a proteção contratual dos consumidores, destacando-se em especial o disposto no art. 30 (vinculação à oferta) e art. 31 do CDC (informação clara, precisa e ostensiva sobre prazos). Aplicável ainda o inciso III do § 1º do art. 51 do mesmo diploma legal, pois, no caso concreto, a utilização integral do prazo de 180 (cento e oitenta) dias pode se mostrar excessivamente onerosa, em comparação com os eventos que justificariam sua incidência.
[14] No que concerne ao delicado aspecto das relações locatícias, o projeto do RJET determina que não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020 (art. 9º). Atentar para o fato de que o dispositivo somente se aplica às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.
[15] Pianovski, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322653/a-forca-obrigatoria-dos-contratos-nos-tempos-do-coronavirus. Acesso em: 7 abr. 2020.
[16] Pode-se ainda extrair da proposta de Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) a possibilidade de se utilizar, por analogia, a regra de seu art. 12, que trata da possibilidade de realização de assembleias por meios virtuais, para a comunicação entre incorporadores e adquirentes de unidades de empreendimentos em construção, para que o fornecedor possa cumprir com seu dever de informar, esclarecendo as circunstâncias do impacto específico da pandemia no planejamento e/ou cronograma de execução das obras.
[17] Cf. EHRHARDT JR., Marcos. Primeiras impressões sobre os impactos do distanciamento social nas relações privadas em face da pandemia do COVID-19, disponível em https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475025/ primeiras-impressoes-sobre-os-impactos-do-distanciamento-social-nas-relacoes-privadas-em-face-da-pandemia-do-covid-19. Acesso em: 7 abr. 2020.
[18] Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.
[19] Pianovski, Carlos Eduardo. A força obrigatória dos contratos nos tempos do coronavírus. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322653/a-forca-obrigatoria-dos-contratos-nos.... Acesso em: 7 abr. 2020.
[20] MARQUES, Cláudia Lima; BERTONCELLO, Káren; LIMA, Clarissa Costa de. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de Covid-19: pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, vol. 129/2020, Maio-Jun./2020.
[21] Neste sentido, Flávio Tartuce sustenta que “(...) todos os contratos merecem uma análise pontual, dentro do esperado bom senso, como consequência imediata do princípio da boa-fé objetiva. As partes devem, assim, procurar soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade e pela boa razão. Os contratos relacionais ou cativos de longa duração, concretizados no tempo e com grande possibilidade de continuarem a se perpetuar no futuro, merecem prioridade de cumprimento, além daqueles negócios que envolvem conteúdo existencial, além do patrimônio, caso dos contratos de plano de saúde”. (TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos  Extinção, revisão e conservação  Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322919/o-coronavirus-e-os-contratos-extincao.... Acesso em: 7 abr. 2020)
[22] Para aprofundamento do tema, sugere-se a leitura do livro Responsabilidade Civil pelo inadimplemento da boa-fé, editado pela editora Fórum. Maiores informações no seguinte endereço: http://loja.editoraforum.com.br/responsabilidade-civil-pelo-inadimplemento-da-boa-fe-2a-edicao.

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