quinta-feira, 1 de março de 2018

CONVERSÃO DE PACTO ANTENUPCIAL EM CONTRATO DE CONVIVÊNCIA. COLUNA DO MIGALHAS DE FEVEREIRO DE 2018

CONVERSÃO DE PACTO ANTENUPCIAL EM CONTRATO DE CONVIVÊNCIA[1]
Flávio Tartuce[2]
Problema de induvidoso interesse prático diz respeito à hipótese em que um casal celebra pacto antenupcial, por escritura pública, elegendo determinado regime de bens, e não contrai o casamento posteriormente, passando a viver em união estável. Qual regime regerá essa união entre os conviventes? Aquele escolhido pelas partes no pacto antenupcial ou o regime legal, da comunhão parcial de bens? Imagine-se, a título de ilustração, situação concreta em que é elaborado pelo casal um pacto antenupcial escolhendo o regime da separação convencional de bens, tratado nos arts. 1.687 e 1.688 do Código Civil, não seguido pelo matrimônio.
Sobre tal intrincada questão, sigo a corrente segundo a qual o regime de bens a reger a união estável no caso concreto é o previamente escolhido pelas partes no pacto antenupcial. Vejamos trecho de minha obra sobre Direito de Família, em que chego a tal conclusão:
"Dúvida resta para a hipótese de elaboração de um pacto antenupcial por escritura pública, não seguido pelo casamento. Ora, passando os envolvidos a viver em união estável, é forçoso admitir que o ato celebrado seja aproveitado na sua eficácia como contrato de convivência, como querem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (Curso…, 2012, v. 6, p. 369). Os autores citam julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nesse sentido, mencionando o respeito à autonomia privada. Em reforço, serve como alento o princípio da conservação do negócio jurídico, que tem relação direta com a função social do contrato, como consta do Enunciado n. 22 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil" (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 5: Direito de família, p. 166).
O tema tem relação com o art. 1.653 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual é nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento. No caso descrito o pacto antenupcial é válido, pois foi feito por escritura pública. De toda sorte, deveria ele ser considerado ineficaz, caso não houvesse qualquer relacionamento entre os envolvidos. Porém, como passaram eles a viver em união estável, deve ser reconhecida a eficácia da sua opção, manifestada por escrito, como contrato de convivência ou contrato de união estável.
Trata-se de posição que prestigia a autonomia privada e, como afirmo na obra citada, o princípio da conservação do negócio jurídico, uma das aplicações da eficácia interna da função social do contrato, retirada dos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, da codificação material vigente. O último dispositivo, aliás, reconhece que a função social do contrato é princípio de ordem pública, colocado ao lado da função social da propriedade e, portanto, com substrato constitucional no art. 5º, inc. XXIII, do Texto Maior. Quanto ao citado Enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2002, tem ele a seguinte redação: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". Esclareça-se que o contrato em questão é justamente o pacto antenupcial a ser preservado.
Compartilho, assim, da posição doutrinária de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para quem "realmente, caso os noivos não venham a contrair casamento, o pacto antenupcial, a toda evidência, será ineficaz. No entanto, não se pode esquecer a possibilidade de ser estabelecida uma união estável entre eles. Nesse caso, se os nubentes não casam, mas passam a conviver em união estável, o pacto antenupcial será admitido como contrato de convivência entre eles, respeitando a autonomia privada. Até mesmo em homenagem ao art. 170 do Código Civil que trata da conversão substancial do negócio jurídico, permitindo o aproveitamento da vontade manifestada" (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. v. 6: Famílias, p. 315). Os doutrinadores citam o art. 170 do Código Civil, que trata da conversão substancial do negócio jurídico nulo, estabelecendo que "se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade". Pelo teor do comando, um negócio nulo pode ser convertido em outro, se as partes quiserem tal conversão – de forma expressa ou implícita – e se o negócio nulo tiver os requisitos mínimos de validade desse outro negócio, para o qual será transformado.
Faço apenas uma pequena ressalva, no sentido de que a situação não é propriamente de conversão de um negócio nulo, mas de conversão do negócio ineficaz ou pós-eficacização, conforme premissas desenvolvidas por Pontes de Miranda. Trata-se de hipótese em que determinado negócio jurídico não produz efeitos em um primeiro momento, mas tem a eficácia reconhecida pela situação concreta posterior que, aqui, é a convivência entre os envolvidos.
Como destaco em minha obra, no trecho antes colacionado, existe importante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com a mesma conclusão. Vejamos trecho de sua ementa, bem elucidativo: "o pacto antenupcial celebrado entre os litigantes que estabeleceu o regime da separação convencional de bens inclusive para aqueles adquiridos antes do casamento, é válido como ato de manifestação de vontade para estabelecer a separação total relativamente aos bens adquiridos durante a união estável que precedeu o casamento. Precedente" (TJRS, Apelação Cível n. 70016647547, 8ª Câmara de Direito Privado, Comarca de Porto Alegre, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 28/09/2006, DJRS 04/10/2006).
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça há acórdão na mesma linha. Trata-se do julgamento prolatado no Recurso Especial n. 1.483.863/SP, pela Quarta Turma, tendo como relatora a Ministra Maria Isabel Gallotti, em 10 de maio de 2016 e publicado em 22 de junho do mesmo ano. Como consta de seu resumo, sobre a pactuação patrimonial existente na união estável, "o contrato pode ser celebrado a qualquer momento da união estável, tendo como único requisito a forma escrita. Assim, o pacto antenupcial prévio ao segundo casamento, adotando o regime da separação total de bens ainda durante a convivência em união estável, possui o efeito imediato de regular os atos a ele posteriores havidos na relação patrimonial entre os conviventes, uma vez que não houve estipulação diversa". A clareza da premissa jurídica adotada é retirada do voto da Ministra Relatora, com destaque especial, diante de sua relevância prática:
"No caso em exame, o pacto antenupcial, a par de estabelecer o regime da separação de bens, dispôs, expressamente, acerca da incomunicabilidade 'dos bens que cada cônjuge possuir ao casar e os que lhe sobrevierem na constância do casamento (...)'.
Ao se referir aos bens possuídos por cada cônjuge na data do futuro casamento, o pacto claramente dispôs sobre a não comunicação dos bens adquiridos ao longo da união que sucedeu ao primeiro casamento, este já formalmente encerrado com a respectiva partilha de bens conforme consta do acórdão recorrido (e-STJ fl. 1285).
Assim, ao meu sentir, o pacto antenupcial, estabelecendo a livre vontade dos então conviventes e futuros cônjuges de se relacionarem sob o regime da separação total de bens, embora somente tenha vigorado com a qualidade de pacto antenupcial a partir da data do casamento (7.7.2004), já atendia, desde a data de sua celebração (16.4.2003), ao único requisito legal para disciplinar validamente a relação patrimonial entre os conviventes de forma diversa da comunhão parcial, pois é um contrato escrito, feito sob a forma solene, e mais de segura, da escritura pública.
Dessa forma, a celebração de pacto antenupcial em 16.4.2003, ocasião em que foi adotado o regime de separação de bens ainda durante o período de convivência em união estável, e não tendo havido ressalva alguma acerca do início de sua vigência, faz imperioso concluir pelo acerto do acórdão recorrido ao decidir que o referido pacto possui o efeito imediato de regular os atos a ele posteriores havidos na relação informal entre os conviventes e, portanto, deve reger a união estável a partir dessa data" (STJ, REsp 1.483.863/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 10/05/2016, DJe22/06/2016).
Como consta do decisum, serve também como fundamento para a tese que se defende o fato de o art. 1.725 do Código Civil, ao tratar do contrato de convivência, não exigir qualquer formalidade específica para a escolha de um regime de bens diverso da comunhão parcial de bens.
Como palavras finais, o que deve prevalecer é a autonomia privada manifestada pelas partes no pacto, conforme antes destacado, prestigiando-se a vontade individual dos envolvidos e a sua autonomia para a prática dos atos civis. Deixa-se de lado, portanto, um exagerado apego a formalismos, com o que o Direito Civil Contemporâneo não pode mais conviver.

[1] Coluna do Migalhas do mês de fevereiro de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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