quinta-feira, 29 de março de 2018

ARTIGO. UNIÃO ESTÁVEL E NAMORO QUALIFICADO. COLUNA DO MIGALHAS DE MARÇO DE 2018

UNIÃO ESTÁVEL E NAMORO QUALIFICADO[1]
Flávio Tartuce[2]
A união estável traz para os aplicadores do Direito grandes dificuldades na análise dos seus elementos caracterizadores. Nos termos do que consta do art. 1.723, caput, do Código Civil de 2002, dispositivo fundamental para a análise do tema, “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O dispositivo regulamenta o art. 226, § 3º, da CF/1988, trazendo o mesmo conceito e requisitos que constavam da Lei 9.278/1996, tendo tanto essa lei como o Código Civil a contribuição doutrinária do Professor Álvaro Villaça Azevedo, nosso Mestre nas Arcadas. Vale lembrar que, não obstante a lei mencionar a diversidade de sexos, é possível juridicamente a união estável homoafetiva, conclusão a que chegou o Supremo Tribunal Federal no histórico julgamento prolatado no ano de 2011 e publicado no Informativo n. 625 da Corte.
Como se extrai dessa definição, a lei não exige prazo mínimo para a constituição da união estável, sendo necessário analisar as circunstâncias do caso concreto para apontar a sua existência ou não. Os requisitos, nesse contexto, são que a união seja pública – no sentido de notoriedade, não podendo ser oculta, clandestina –, contínua – sem que haja interrupções, sem o famoso “dar um tempo” – e duradoura, além do objetivo dos companheiros ou conviventes de estabelecer uma verdadeira família (animus familiae).
Para a configuração dessa intenção de família, entram em cena o tratamento dos companheiros entre si (tractatus), bem como o reconhecimento social de seu estado (reputatio). Nota-se, assim, a utilização dos clássicos critérios para a configuração da posse de estado de casados também para a união estável.
De todo modo, constata-se que os elementos essenciais para configuração da união estável são abertos e subjetivos, razão pela qual se acredita existir uma verdadeira cláusula geral para a sua constituição. A lei não exige que os companheiros residam sob o mesmo teto, o que é retirado da antiga Súmula 382 do STF, antes aplicada às relações de concubinato, mas cujo teor também incide para a união estável. Nesse sentido a premissa número 2, publicada na edição n. 50 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, dedicada à união estável: “A coabitação não é elemento indispensável à caracterização da união estável” (precedentes citados: STJ, Ag. Rg. no AREsp 649.786/GO, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 04/08/2015, DJE18/08/2015; Ag. Rg. no AREsp 223.319/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, julgado em 18/12/2012, DJE 04/02/2013; Ag. Rg. no AREsp 59.256/SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, julgado em 18/09/2012, DJE 04/10/2012; Ag. Rg. nos EDcl. no REsp 805265/AL, Rel. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS), 3ª Turma, julgado em 14/09/2010, DJE 21/09/2010, REsp 1.096.324/RS, Rel. Ministro Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ/AP), 4ª Turma, julgado em 02/03/2010, DJE 10/05/2010, e REsp 275.839/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 02/10/2008, DJE 23/10/2008).
Em complemento, não há qualquer requisito formal obrigatório para que a união estável reste configurada, como a necessidade de elaboração de uma escritura pública entre as partes ou de uma decisão judicial de reconhecimento. A propósito, em importante precedente, entendeu o Ministro Luís Roberto Barroso, em julgamento prolatado no âmbito do STF, que “não constitui requisito legal para concessão de pensão por morte à companheira que a união estável seja declarada judicialmente, mesmo que vigente formalmente o casamento, de modo que não é dado à Administração Pública negar o benefício com base neste fundamento. (...). Embora uma decisão judicial pudesse conferir maior segurança jurídica, não se deve obrigar alguém a ir ao Judiciário desnecessariamente, por mera conveniência administrativa. O companheiro já enfrenta uma série de obstáculos decorrentes da informalidade de sua situação. Se ao final a prova produzida é idônea, não há como deixar de reconhecer a união estável e os direitos daí decorrentes” (STF, Mandado de Segurança 330.008, Distrito Federal, 03/05/2016).
Justamente por tais dispensas de formalidades, ao contrário do que ocorre com o casamento, tem variado muito a jurisprudência no enquadramento da união estável. Gosto sempre de citar, com o fim de ilustrar as dificuldades existentes na configuração da união estável, aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que afastou a sua caracterização no caso em que duas pessoas namoravam havia cerca de oito anos, mas que não chegaram a constituir família. O relator do acórdão entendeu pela inexistência da união estável e pela presença de um namoro, pois “faltou um requisito essencial para caracterizá-lo como união estável: inexistiu o objetivo de constituir família. Com efeito, durante os longos anos de namoro mantido entre os litigantes, eles sempre mantiveram vidas próprias e independentes. Realizaram várias viagens juntos, comemoraram datas festivas e familiares, participavam de festas sociais e entre amigos, a autora realizava compras para a residência do réu – pagas por ele –, às vezes ela levava o carro dele para lavar, e consta que ela gozou licença-prêmio para auxiliar o namorado num momento de doença. Contudo, ainda que o relacionamento amoroso tenha ocorrido nesses moldes, nunca tiveram objetivo de constituir família” (TJRS, Embargos Infringentes 70008361990, 4º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, decisão de 13/08/2004).
Na esteira do que consta do julgado, o intuito de constituição de família é o que diferencia cabalmente o namoro da união estável. Conforme destacado por José Fernando Simão em aulas e exposições sobre o tema, se há um projeto futuro de constituição de família, estamos diante de namoro. Se há uma família já constituída, com ou sem filhos, ou seja, se ela já existe no presente, há uma união estável. Para que se verifique a existência dessa família no presente, devem ser levados em conta os critérios da reputação e do tratamento, antes destacados, que podem ser demonstrados por todos os meios de prova, como testemunhas e documentos, sejam eles públicos ou não.
Tais critérios também servem para diferenciar a união estável do chamado namoro qualificado, aquele que se prolonga por muito tempo, mas não chega a apresentar todos os requisitos essenciais para que a família presente esteja configurada. Um dos primeiros a utilizar tal expressão entre nós foi o Professor Euclides de Oliveira, em suas brilhantes palestras sobre a “escalada do afeto” (o seu instigante texto sobre o tema pode ser encontrado em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/13.pdf>).
Mais recentemente, Zeno Veloso escreveu sobre o assunto em preciosa obra recém-lançada, que congrega a análise de vários temas por esse grande jurista. Ao tratar do namoro qualificado, ensina-nos o Mestre do Pará:
“Nem sempre é fácil distinguir essa situação – a união estável – de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima – inclusive, sexual –, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar – e muito – a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de 'namoro qualificado', os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem – ou ainda não querem – constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro – mesmo do tal namoro qualificado –, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo” (VELOSO, Zeno. Direito Civil: temas. Belém: ANOREGPA, 2018. p. 313).
Como se pode perceber também das lições transcritas, o que é fundamental para a configuração de um ou outro instituto é o objetivo de constituição de família, o que é retirado do comportamento das partes envolvidas e do reconhecimento social de haver no relacionamento uma família presente.
Assim como ocorre no âmbito da doutrina, podem ser encontradas decisões que utilizam o termo namoro qualificado para denotar o namoro longo, em que não há a presença dos requisitos familiares de uma união estável. De importante precedente do Superior Tribunal de Justiça extrai-se o seguinte:
“Na relação de namoro qualificado os namorados não assumem a condição de conviventes porque assim não desejam, são livres e desimpedidos, mas não tencionam naquele momento ou com aquela pessoa formar uma entidade familiar. Nem por isso vão querer se manter refugiados, já que buscam um no outro a companhia alheia para festas e viagens, acabam até conhecendo um a família do outro, posando para fotografias em festas, pernoitando um na casa do outro com frequência, ou seja, mantêm verdadeira convivência amorosa, porém, sem objetivo de constituir família” (STJ, REsp 1.263.015/RN, 3ª Turma, Rel. Min Nancy Andrighi, julgado em 19/06/2012, DJe 26/06/2012).
Na linha do que defendi e das palavras de Zeno Veloso, o aresto aponta a necessidade da intenção de constituição de família, o animus familiae, como fundamento essencial para a união estável, eis que “a configuração da união estável é ditada pela confluência dos parâmetros expressamente declinados, hoje, no art. 1.723 do CC/2002, que tem elementos objetivos descritos na norma: convivência pública, sua continuidade e razoável duração, e um elemento subjetivo: o desejo de constituição de família. A congruência de todos os fatores objetivos descritos na norma, não levam, necessariamente, à conclusão sobre a existência de união estável, mas tão somente informam a existência de um relacionamento entre as partes. O desejo de constituir uma família, por seu turno, é essencial para a caracterização da união estável pois distingue um relacionamento, dando-lhe a marca da união estável, ante outros tantos que, embora públicos, duradouros e não raras vezes com prole, não têm o escopo de serem família, porque assim não quiseram seus atores principais” (REsp 1.263.015/RN).
Concluindo do mesmo modo, mais recentemente, também do Tribunal da Cidadania, entendeu-se que “o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado ‘namoro qualificado’ –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros” (STJ, REsp 1.454.643/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015).
Como palavras derradeiras, por todas as lições e conclusões expostas, nota-se que a intenção e a conduta com objetivo de constituição de uma família que existem no presente são fulcrais para a diferenciação da união estável em relação ao chamado namoro qualificado, sendo a análise de tais requisitos nas circunstâncias do caso concreto essenciais para que se chegue à conclusão pela existência ou não da entidade familiar.
[1] Coluna do Migalhas de março de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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