quinta-feira, 9 de agosto de 2007

ARTIGO DE JOSÉ FERNANDO SIMÃO. NOVAMENTE O AFETO.

NOVAMENTE O AFETO.

"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"
Saint-Exupéry
I - A vida como ela é.
Ainda ontem jantava com minha família em uma animada pizzaria de São
Paulo. Era aniversário de minha tia. Se formos buscar a noção jurídica
(em sentido estrito de tio), diria a vocês que o tio é o irmão do pai
ou da mãe, que é parente colateral ou transversal de terceiro grau
desigual.
O fato é que minha tia que aniversariava não era irmã de meu pai ou de
minha mãe, mas era simplesmente uma amiga de meus pais, de muitos
anos, que eu e minhas irmãs chamamos de tia desde priscas eras. Com os
filhos desses tios, temos relação de primos, apesar da inexistência de
vínculo de sangue.
Da mesma forma, minha tia Helena e meu tio Newton. São pais de minha amiga Cecília, com quem estudei do maternal até a 8ª série (ainda na Escola Nova Lourenço Castanho), no colegial (já no Colégio Santa Cruz) e nos 5 anos de faculdade em que cursamos o Largo de São Francisco. Em resumo, estudamos juntos de 1977 a 1996. Também eles são meus tios.
Note-se bem. Não se trata apenas de uma alcunha ou forma carinhosa de tratamento. As relações que descrevo têm por base o afeto e não os laços de sangue. Assim, presentes estão os elementos tractatus (como nos tratamos reciprocamente) e fama (como as demais pessoas nos vêem).
Somos tios e sobrinho do afeto.
Bem, voltando ao tema do artigo, no jantar com essa tia na data de ontem, ela e meu tio contavam um fato interessante. Os filhos deles (meus primos) já são todos adultos, formados e independentes e moram aqui em São Paulo.
Meus tios residem numa pacata cidade do interior paulista e lá tem uma criança, filha da empregada do casal, que eles chamam de neta.
Sim, porque durante o jantar meu tio me pergunta: "Zé Fernando, você quer ver uma foto de minha neta?"
Estranhei a pergunta e meu tio, sacou o celular e, todo orgulhoso, mostrou a foto da linda criança de 3 anos de idade, toda sorridente.
Ele me dizia que a menina o chama de avô e ele a chama de neta (tractatus) e que todos sabem, na cidade o carinho especial que se criou entre os dois (fama).
"Ela me cativou!", dizia meu tio todo feliz.
Meus tios têm planos para o futuro da neta: abrir uma poupança para custear seus estudos! Hoje, dão presentes, ajudaram a mãe da criança a construir uma casa e assim por diante.
Um de seus filhos me perguntou assustado se a menina teria, juridicamente, algum direito.
Eu, rapidamente, respondi com o seguinte julgado.
II - O direito como deveria ser.

Em almoço recente com o Desembargador Mathias Coltro, conversávamos sobre a questão do valor jurídico do afeto e sua abordagem pelos Tribunais.
O desembargador me narrou julgado curioso e por isso interessante.
Em determinada demanda, o autor, pai de certo rapaz, pretendia ver-se exonerado de sua obrigação de prestar alimentos, com fundamento no fato de não ser pai biológico do réu alimentando.
Trata-se de hipótese em que o autor (pai registral) pretendia impugnar a paternidade do filho de sua companheira, com quem conviveu como se casado fosse pro alguns anos.
Em defesa, o réu (filho, portanto), trouxe argumento dos mais interessantes.
Disse ele que, realmente, não era filho consangüíneo de seu pai, que, ao iniciar a união estável com sua mãe, sabia que essa estava grávida de outro homem.
Mesmo tendo ciência da gravidez, mesmo tendo ciência de que o filho era biologicamente de terceiro, o autor da demanda, aceitou registrar a criança como se sua fosse (adoção à brasileira).
O juiz de primeira instância determinou a produção de prova pericial, o tão famoso exame de DNA (que de tão vulgar virou objeto de show de calouros na televisão), cujo resultado foi óbvio: o autor não era pai biológico do réu.
Digo que o resultado foi óbvio porque autor e réu afirmavam a mesma coisa, qual seja, a inexistência de vínculo sangüíneo.
O fato curioso se deu na seqüência. Com base no exame de DNA, o magistrado julgou procedente a demanda negatória de paternidade e exonerou o pai do dever de prestar alimentos.
O réu apelou afirmando que teve seu direito de defesa cerceado, porque não pode provar na demanda a parentalidade socioafetiva. Queria o filho ter a chance de provar que apesar da inexistência de vínculo biológico, havia entre autor e réu o vínculo do afeto.
O Tribunal reformou a decisão de 1º grau. Os argumentos do acórdão são sólidos e merecem transcrição.
"Ainda que o direito positivo não aluda de forma expressa à sócio-afetividade, a ela não deixa de remeter e de forma implícita, que chega quase à explicitude, em determinadas circunstâncias, prestando-se como exemplo adequado o da adoção. Família não é somente o ente advindo de relação biológica, havendo que se considerar e em algumas vezes com importância até superior, a que advém do relacionamento afetivo, em cuja moldura tanto é possível inserir! Se em relação ao filho biológico a afetividade surge como circunstância natural e resultante de sua própria condição, torna-se evidente que no tocante ao filho que não tenha essa mesma característica, acabe ela por emergir, como fruto da ligação que passa a existir entre ele e os pais. Pouco importa tenha o legislador do Código Civil brasileiro, ao contrário do português, desconsiderado o estado de filiação".[1] 2
O acórdão acolheu o cerceamento de defesa e determinou ao retorno dos autos à instância inferior para que fosse permitida a produção da prova do vínculo afetivo.
O julgado não decidiu pela existência ou não da parentalidade socioafetiva, mas permitiu ao réu produzir prova judicial que a comprove.
III - A vida e o direito
Em conclusão, nosso jantar de ontem foi muito produtivo. Antes dele, meus tios sabiam que tinha uma neta e sabiam de suas responsabilidades para com ela. Meus primos ainda achavam que se tratava apenas de um gesto de solidariedade.
Saíram do jantar cientes do vínculo jurídico que se criou em razão do afeto e das responsabilidades recíprocas.
Como frase final, meu tio me dizia, "bom, se temos dever com nossa neta em sua criação, ela terá dever para conosco em nossa velhice".
Sábia frase que reflete a noção jurídica pela qual parentesco gera direitos e deveres recíprocos. É uma via de duas mãos.
Não é nova a questão. Vejamos o seguinte diálogo entre o principezinho e a raposa que encontrara:
"- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam
galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho
necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou..."
O direito hoje, dá razão à Saint-Exupéry quando, em 1943, na obra "O pequeno príncipe" escreveu a frase que faria História: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".
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2- 5ª Câmara - Seção de Direito Privado, Comarca: Barueri (6ªVara -
proc.nº 29013/2004), Apelação nº 464.936-4/0-00 - Voto nº 13384,
Recorrente(s): MT P (menor rep.p/mãe), Recorrido(s): W P, Relator
Desembargador Mathias Coltro, Natureza da ação: Negatória de
paternidade e exoneração de pensão

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