sábado, 1 de agosto de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 674 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO N. 674 DO STJ.
SEGUNDA SEÇÃO
PROCESSO
CC 150.252-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 10/06/2020, DJe 16/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Carta precatória. Inquirição de testemunha. Degravação de depoimento. Art. 460 do CPC/2015. Competência do juízo deprecante.
DESTAQUE
Na vigência do CPC/2015, o juízo deprecante é o competente para a degravação de depoimento colhido por carta precatória.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente, frisa-se que o cumprimento de carta precatória é composto por diversos atos, os quais possuem suficiente autonomia para que não sejam considerados um ato único, mas sim como vários procedimentos isolados, aos quais é possível a aplicação de norma processual superveniente.
Sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, a jurisprudência da Segunda Seção se consolidou no sentido de que cabia ao juízo deprecado a realização da degravação, pois o ato integrava a diligência a ser realizada e o Código, conquanto permitisse a colheita do depoimento por outro meio idôneo, previa sua degravação quando o juiz assim determinasse, de ofício ou por requerimento das partes, ou quando houvesse recurso da sentença.
O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao permitir, no § 1º do artigo 453, a oitiva de testemunha que residir em comarca diversa por meio de videoconferência, o que dispensa, inclusive, a utilização de carta precatória, ao menos em parte. Além disso, a gravação passou a ser um método convencional, ficando a degravação prevista apenas para hipóteses excepcionais em que, em autos físicos, for interposto recurso, sendo impossível o envio da documentação eletrônica.
Observa-se que o artigo 460 do CPC/2015 não mais prevê, como fazia o artigo 417, § 1º, do CPC/1973, a degravação "noutros casos, quando o juiz o determinar, de ofício ou a requerimento da parte". Isso não significa que essas hipóteses são vedadas, mas demonstra o intuito do novo Código de incentivar a utilização da mídia eletrônica, tornando a degravação uma situação excepcional.
Nesse contexto, como a gravação passou a ser um método convencional e a degravação está prevista somente "quando for impossível o envio de sua documentação eletrônica", parece que o juízo deprecado pode realizar a colheita da prova por gravação sem realizar a transcrição, pois se supõe que o envio da mídia eletrônica já é suficiente para se entender o ato como completo, estando regularmente cumprida a carta precatória.
Assim, à luz do disposto no artigo 460 do CPC/2015, compete ao juízo deprecante realizar ou autorizar que as partes realizem a degravação caso se mostre necessária.
PROCESSO
REsp 1.869.046-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 26/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO CIVIL
TEMA
Responsabilidade civil objetiva do Estado. Falecimento de advogado nas dependências do fórum. Morte causada por disparos de arma de fogo efetuados por réu em ação criminal. Omissão estatal em atividade de risco anormal. Art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Aplicabilidade. Nexo de causalidade configurado.
DESTAQUE
Aplica-se igualmente ao estado o que previsto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, relativo à responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante o fato de a conduta ser comissiva ou omissiva.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa.
Inicialmente, saliente-se que é aplicado igualmente ao Estado a prescrição do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, de responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante seja a conduta comissiva ou omissiva. O vocábulo "atividade" deve ser interpretado de modo a incluir o comportamento em si e bens associados ou nele envolvidos. Tanto o Estado como os fornecedores privados devem cumprir com o dever de segurança, ínsito a qualquer produto ou serviço prestado. Entre as atividades de risco "por sua natureza" incluem-se as desenvolvidas em edifícios públicos, estatais ou não (p. ex., instituição prisional, manicômio, delegacia de polícia e fórum), com circulação de pessoas notoriamente investigadas ou condenadas por crimes, e aquelas outras em que o risco anormal se evidencia por contar o local com vigilância especial ou, ainda, com sistema de controle de entrada e de detecção de metal por meio de revista eletrônica ou pessoal.
Segundo a jurisprudência do STJ, são elementos caracterizadores da responsabilidade do Estado por omissão: o comportamento omissivo, o dano, o nexo de causalidade e a culpa do serviço público, esta implicando rompimento de dever específico. Depende, portanto, da ocorrência de ato omissivo ilícito, consistente na ausência do cumprimento de deveres estatais legalmente estabelecidos.
As excludentes de responsabilidade afastam a obrigação de indenizar apenas nos casos em que o Estado tenha tomado medidas possíveis e razoáveis para impedir o dano causado. Logo, se é possível ao ente público evitar o dano, e ele não o faz, fica caracterizado o descumprimento de obrigação legal.
Há culpa (embora desnecessária, à luz do art. 927, parágrafo único, do Código Civil) e nexo causal, elementos aptos a determinar a responsabilização do poder público, quando por sua conduta omissiva, deixa de agir com o cuidado necessário a garantir a segurança, no fórum, dos magistrados, autoridades, servidores e usuários da Justiça, sem a qual o evento danoso (falecimento de advogado, dentro do fórum, decorrente de disparo de arma de fogo efetuada por réu em processo criminal no qual a vítima figurava como patrono) não teria ocorrido. É certo ainda que a exigência de atuação nesse sentido não está, de forma alguma, acima do razoável.
PROCESSO
REsp 1.864.625-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/06/2020, DJe 26/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Recuperação judicial. Certidões negativas de débitos tributários. Exigência incompatível com a finalidade do instituto. Princípios da preservação da empresa e da função social. Aplicação do postulado da proporcionalidade. Interpretação sistemática da Lei n. 11.101/2005.
DESTAQUE
A apresentação de certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para concessão do pedido de recuperação judicial.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Da leitura dos enunciados normativos dos arts. 57 e 58, caput, da Lei n. 11.101/2005, depreende-se que a apresentação das certidões negativas de débitos tributários constitui requisito elencado pelo legislador para concessão da recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção, ou tenha sido aprovado pela assembleia de credores.
Reforçando essa exigência, o Código Tributário Nacional, em seu art. 191-A, condiciona a concessão da recuperação à prova da quitação de todos os tributos.
Todavia, dada a existência, noutro vértice, de previsão legal no sentido de que as fazendas públicas devem, "nos termos da legislação específica", conceder o parcelamento dos débitos fiscais ao empresário em recuperação judicial (art. 68 da LFRE), a jurisprudência do STJ vem entendendo que, por se tratar o parcelamento de verdadeiro direito do devedor, a mora legislativa em editar referida lei faz com que as sociedades em crise estejam dispensadas de apresentar as certidões previstas no art. 57 da LFRE.
Muito embora a lacuna legislativa acerca do parcelamento especial tenha sido preenchida na esfera federal com a edição da Lei n. 13.043/2014 (regulamentada pela Portaria PGFN-RFB n. 1/15), a demonstração da regularidade fiscal do devedor que busca o benefício recuperatório não pode ser exigida sem que se verifique sua compatibilidade com os princípios e objetivos que estruturam e servem de norte à operacionalização do microssistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, elencados neste mesmo diploma legal.
O objetivo central do instituto da recuperação judicial é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (art. 47 da LFRE).
Dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deve ser interpretada à luz do postulado da proporcionalidade.
Atuando como conformador da ação estatal, tal postulado exige que a medida restritiva de direitos figure como adequada para o fomento do objetivo perseguido pela norma que a veicula, além de se revelar necessária para garantia da efetividade do direito tutelado e de guardar equilíbrio no que concerne à realização dos fins almejados (proporcionalidade em sentido estrito).
De fato, caso se entenda que a ausência das certidões de regularidade fiscal do devedor impede a concessão do benefício recuperatório, sua não apresentação teria como consequência a decretação da falência da sociedade empresária, o que, fatalmente, dificultaria o recebimento do crédito tributário, haja vista estarem eles classificados em terceiro lugar na ordem de preferências (art. 83, III, da LFRE).
E mais, além de, nesse contexto, tratar-se de medida inadequada para atingir a finalidade pretendida pela norma, a exigência da regularidade fiscal do devedor não se revela necessária, pois, no atual sistema de recuperação de empresas, a Fazenda Pública não fica desprovida dos meios próprios para cobrança dos créditos de sua titularidade.
Isso porque as execuções de natureza fiscal, ao contrário do que ocorre com as demais ações e execuções movidas por credores particulares da recuperanda, não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, devendo seguir seu curso natural, conforme dispõe o art. 6º, caput e § 7º, da Lei n. 11.101/2005.
Na tentativa de realizar a finalidade sobrejacente à regra em questão (garantir a arrecadação fiscal), acaba-se por obstruir indevidamente os fins almejados pelo princípio da preservação da empresa (corolário da função social da propriedade e fundamento da recuperação judicial) e os objetivos maiores do instituto recuperatório – viabilização da superação da crise, manutenção da fonte produtora e dos empregos dos trabalhadores.
De se notar, outrossim, que o condicionamento da concessão da recuperação judicial à apresentação de certidões negativas de débitos tributários resulta em afronta à própria lógica do sistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, na medida em que, ao mesmo tempo em que se exige a comprovação da regularidade fiscal do devedor, exclui-se o titular desses créditos (Fazenda Pública) dos efeitos de seu processamento (nos termos da regra do § 7º do art. 6º da LFRE e daquela prevista no art. 187, caput, do CTN).
Assim, conclui-se que os motivos que fundamentam as normas do art. 57 da LFRE e do art. 191-A do CTN, assentados exclusivamente no privilégio do crédito tributário, não têm peso suficiente para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira, sobretudo diante das implicações negativas que a interrupção da atividade empresarial seria capaz de gerar, diretamente, nas relações de emprego e na cadeia produtiva e, indiretamente, na receita pública e na economia de modo geral.

QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.576.651-SE, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 25/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). Lei n. 10.188/2001. Proprietário das unidades autônomas. Arrendatário. Mero possuidor. Convenção do Condomínio. Indicação do síndico. Encargo da Caixa Econômica Federal. Gestora do Fundo.
DESTAQUE
O arrendamento residencial não tem natureza jurídica de compra e venda nem de promessa de compra e venda, não se aplicando ao arrendatário, que tem conceito definido na Lei n. 10.188/2001, as disposições do art. 1.333 do Código Civil.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O Programa de Arrendamento Residencial instituído pela Lei n. 10.188/2001 define o arrendatário como mero possuidor direto do imóvel, cuja propriedade é da arrendadora, até o cumprimento integral do contrato e o exercício da opção pela compra do imóvel.
O Programa, de nítido caráter social, está sujeito a normas especiais, entre elas a que confere à Caixa Econômica Federal a administração do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que é o legítimo proprietário do imóvel e, enquanto detiver mais de dois terços das unidades, cabe-lhe decidir sobre a administração do condomínio.
O condômino é o proprietário da unidade e, a despeito do elastério do art. 1.334, § 2º, do Código Civil - para considerar como tal também o compromissário comprador e o cessionário - o conceito não pode abranger o arrendatário de imóvel cuja administração está regulada em lei específica. Ademais, o referido arrendamento residencial não tem natureza jurídica de compra e venda nem de promessa de compra e venda.
Segundo o art. 1.333 do Código Civil, "a convenção que institui o condomínio deverá ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais (...)". 4 Nesse contexto, não se aplicam as disposições do art. 1.333 do Código Civil aos arrendatários de que trata a Lei n. 10.188/2001, os quais, por meio do contrato de arrendamento residencial, adquiriram apenas a posse direta dos imóveis, pelo tempo estipulado contratualmente.
Assim, na qualidade de gestora do Fundo de Arrendamento Residencial e de proprietária fiduciária dos imóveis, agiu com acerto a Caixa ao estabelecer, na convenção de condomínio, que a contratação do síndico ficaria a seu encargo, pois assegura a higidez do Programa, evitando o inadimplemento das obrigações condominiais e a má conservação do imóvel. Dar liberdade de escolha dos administradores do condomínio aos seus moradores antes que eles exerçam a opção de compra do imóvel poderia trazer consequências danosas irreversíveis à CEF, a quem compete representar o arrendador ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente (Lei n. 10.188/2001, art. 4º, VI).
PROCESSO
REsp 1.864.625-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/06/2020, DJe 26/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Recuperação judicial. Certidões negativas de débitos tributários. Exigência incompatível com a finalidade do instituto. Princípios da preservação da empresa e da função social. Aplicação do postulado da proporcionalidade. Interpretação sistemática da Lei n. 11.101/2005.
DESTAQUE
A apresentação de certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para concessão do pedido de recuperação judicial.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Da leitura dos enunciados normativos dos arts. 57 e 58, caput, da Lei n. 11.101/2005, depreende-se que a apresentação das certidões negativas de débitos tributários constitui requisito elencado pelo legislador para concessão da recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção, ou tenha sido aprovado pela assembleia de credores.
Reforçando essa exigência, o Código Tributário Nacional, em seu art. 191-A, condiciona a concessão da recuperação à prova da quitação de todos os tributos.
Todavia, dada a existência, noutro vértice, de previsão legal no sentido de que as fazendas públicas devem, "nos termos da legislação específica", conceder o parcelamento dos débitos fiscais ao empresário em recuperação judicial (art. 68 da LFRE), a jurisprudência do STJ vem entendendo que, por se tratar o parcelamento de verdadeiro direito do devedor, a mora legislativa em editar referida lei faz com que as sociedades em crise estejam dispensadas de apresentar as certidões previstas no art. 57 da LFRE.
Muito embora a lacuna legislativa acerca do parcelamento especial tenha sido preenchida na esfera federal com a edição da Lei n. 13.043/2014 (regulamentada pela Portaria PGFN-RFB n. 1/15), a demonstração da regularidade fiscal do devedor que busca o benefício recuperatório não pode ser exigida sem que se verifique sua compatibilidade com os princípios e objetivos que estruturam e servem de norte à operacionalização do microssistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, elencados neste mesmo diploma legal.
O objetivo central do instituto da recuperação judicial é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (art. 47 da LFRE).
Dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deve ser interpretada à luz do postulado da proporcionalidade.
Atuando como conformador da ação estatal, tal postulado exige que a medida restritiva de direitos figure como adequada para o fomento do objetivo perseguido pela norma que a veicula, além de se revelar necessária para garantia da efetividade do direito tutelado e de guardar equilíbrio no que concerne à realização dos fins almejados (proporcionalidade em sentido estrito).
De fato, caso se entenda que a ausência das certidões de regularidade fiscal do devedor impede a concessão do benefício recuperatório, sua não apresentação teria como consequência a decretação da falência da sociedade empresária, o que, fatalmente, dificultaria o recebimento do crédito tributário, haja vista estarem eles classificados em terceiro lugar na ordem de preferências (art. 83, III, da LFRE).
E mais, além de, nesse contexto, tratar-se de medida inadequada para atingir a finalidade pretendida pela norma, a exigência da regularidade fiscal do devedor não se revela necessária, pois, no atual sistema de recuperação de empresas, a Fazenda Pública não fica desprovida dos meios próprios para cobrança dos créditos de sua titularidade.
Isso porque as execuções de natureza fiscal, ao contrário do que ocorre com as demais ações e execuções movidas por credores particulares da recuperanda, não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, devendo seguir seu curso natural, conforme dispõe o art. 6º, caput e § 7º, da Lei n. 11.101/2005.
Na tentativa de realizar a finalidade sobrejacente à regra em questão (garantir a arrecadação fiscal), acaba-se por obstruir indevidamente os fins almejados pelo princípio da preservação da empresa (corolário da função social da propriedade e fundamento da recuperação judicial) e os objetivos maiores do instituto recuperatório – viabilização da superação da crise, manutenção da fonte produtora e dos empregos dos trabalhadores.
De se notar, outrossim, que o condicionamento da concessão da recuperação judicial à apresentação de certidões negativas de débitos tributários resulta em afronta à própria lógica do sistema instituído pela Lei n. 11.101/2005, na medida em que, ao mesmo tempo em que se exige a comprovação da regularidade fiscal do devedor, exclui-se o titular desses créditos (Fazenda Pública) dos efeitos de seu processamento (nos termos da regra do § 7º do art. 6º da LFRE e daquela prevista no art. 187, caput, do CTN).
Assim, conclui-se que os motivos que fundamentam as normas do art. 57 da LFRE e do art. 191-A do CTN, assentados exclusivamente no privilégio do crédito tributário, não têm peso suficiente para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira, sobretudo diante das implicações negativas que a interrupção da atividade empresarial seria capaz de gerar, diretamente, nas relações de emprego e na cadeia produtiva e, indiretamente, na receita pública e na economia de modo geral.

QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.576.651-SE, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 25/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). Lei n. 10.188/2001. Proprietário das unidades autônomas. Arrendatário. Mero possuidor. Convenção do Condomínio. Indicação do síndico. Encargo da Caixa Econômica Federal. Gestora do Fundo.
DESTAQUE
O arrendamento residencial não tem natureza jurídica de compra e venda nem de promessa de compra e venda, não se aplicando ao arrendatário, que tem conceito definido na Lei n. 10.188/2001, as disposições do art. 1.333 do Código Civil.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O Programa de Arrendamento Residencial instituído pela Lei n. 10.188/2001 define o arrendatário como mero possuidor direto do imóvel, cuja propriedade é da arrendadora, até o cumprimento integral do contrato e o exercício da opção pela compra do imóvel.
O Programa, de nítido caráter social, está sujeito a normas especiais, entre elas a que confere à Caixa Econômica Federal a administração do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que é o legítimo proprietário do imóvel e, enquanto detiver mais de dois terços das unidades, cabe-lhe decidir sobre a administração do condomínio.
O condômino é o proprietário da unidade e, a despeito do elastério do art. 1.334, § 2º, do Código Civil - para considerar como tal também o compromissário comprador e o cessionário - o conceito não pode abranger o arrendatário de imóvel cuja administração está regulada em lei específica. Ademais, o referido arrendamento residencial não tem natureza jurídica de compra e venda nem de promessa de compra e venda.
Segundo o art. 1.333 do Código Civil, "a convenção que institui o condomínio deverá ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais (...)". 4 Nesse contexto, não se aplicam as disposições do art. 1.333 do Código Civil aos arrendatários de que trata a Lei n. 10.188/2001, os quais, por meio do contrato de arrendamento residencial, adquiriram apenas a posse direta dos imóveis, pelo tempo estipulado contratualmente.
Assim, na qualidade de gestora do Fundo de Arrendamento Residencial e de proprietária fiduciária dos imóveis, agiu com acerto a Caixa ao estabelecer, na convenção de condomínio, que a contratação do síndico ficaria a seu encargo, pois assegura a higidez do Programa, evitando o inadimplemento das obrigações condominiais e a má conservação do imóvel. Dar liberdade de escolha dos administradores do condomínio aos seus moradores antes que eles exerçam a opção de compra do imóvel poderia trazer consequências danosas irreversíveis à CEF, a quem compete representar o arrendador ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente (Lei n. 10.188/2001, art. 4º, VI).

quarta-feira, 29 de julho de 2020

DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS

 DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
 Flávio Tartuce[1]
No último dia 16 de julho de 2020, participei, a convite dos Professores Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, de curso sobre Alimentos, promovido em plataforma online pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O evento procurou trazer uma análise interdisciplinar a respeito do instituto, e a mim coube analisar a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica na ação de execução de alimentos. Procurarei aqui compartilhar alguns dos temas abordados naquele encontro, notadamente julgados estaduais pesquisados sobre a temática.
Como é notório, a desconsideração da personalidade jurídica está tratada, em termos gerais, pelo art. 50 do Código Civil, que foi recentemente alterado pela Lei da Liberdade Econômica, a Lei n. 13.874/2019. O comando recebeu cinco novos parágrafos e uma locução final no seu caput, visando a trazer parâmetros objetivos para um maior controle na aplicação da categoria. O Código Civil, como se sabe, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige o abuso da personalidade jurídica – caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial –, somado a um prejuízo ao credor. Essa vertente contrapõe-se à teoria menor – adotada, por exemplo, pelo art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor –, que exige apenas o prejuízo ao credor para que a desconsideração seja efetivada. Por óbvio que, em matéria de Direito de Família, sobretudo quanto aos alimentos, incide a primeira teoria.
Voltando-se à essência do art. 50 do Código Civil, a norma continua a enunciar que, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte interessada ou até do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica. Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica, ampliando-se a responsabilidade patrimonial da última.
Com a Lei da Liberdade Econômica, passou-se a prever, na antes citada locução final, que somente serão responsabilizados os sócios ou administradores "beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Adotou-se, portanto, o entendimento de parte considerável da doutrina, consubstanciado no Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Civil, segundo o qual "só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido". De fato, pela teoria maior, a desconsideração deve atingir apenas o sócio ou administrador que tenha praticado a irregularidade e que por ela tenha sido beneficiado de alguma forma.
Em todos os casos, não se pode negar que a desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à autonomia existente entre a pessoa jurídica e seus membros, inserida expressamente no art. 49-A, caput, do Código Civil pela mesma Lei da Liberdade Econômica, ao preceituar que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Alguns julgados a seguir expostos confirmam essa premissa para as execuções dos alimentos.
O novo § 1º do art. 50 procurou trazer parâmetros para a definição do que seja o desvio de finalidade, prevendo que esse representa a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Retirou-se, por bem, a menção expressa ao dolo, que constava na Medida Provisória n. 881, que originou a lei. Na previsão atual, o ilícito pode ser doloso, culposo ou praticado em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, sendo o último gerador de uma responsabilidade sem culpa, conforme o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil. No âmbito das ações de alimentos – e também em outras ações de família –, a prova do dolo é diabólica, de difícil superação, e caso a lei mencionasse esse requisito subjetivo os alimentados teriam grandes dificuldades para efetivar a desconsideração em suas demandas.
Já quanto à confusão patrimonial, outro elemento que pode gerar a configuração do abuso da personalidade jurídica, o § 2º do art. 50 trouxe um rol meramente exemplificativo de situações, tais como a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; e b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. A abertura da norma fica clara pelo inciso III do preceito, que estabelece que outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial também podem gerar a confusão patrimonial, caso da hipótese em que a gestão patrimonial de pessoa jurídica e seus membros é compartilhada.
Sobre a desconsideração inversa ou invertida, foi ela positivada pelo § 3º do art. 50 do Código Civil, ao prever que "o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica". Isso já tinha ocorrido com o CPC/2015, que em seu art. 133, § 2º, havia utilizado a expressão já difundida na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que o capítulo relativo ao incidente de desconsideração é aplicável "à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica". As duas previsões, material e processual, equivalem-se, sem qualquer distinção de conteúdo.
Além da desconsideração direta e da inversa, o § 4º do art. 50 do Código Civil acabou por positivar – pelo menos indiretamente – a chamada desconsideração econômica ou a sucessão de empresas, com a possibilidade de extensão de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, em especial nos casos de confusão patrimonial entre elas. Pelo comando, contudo, "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica".
Sobre os julgados que tratam da desconsideração inversa no âmbito dos alimentos, nota-se que existem acórdãos que a deferem para a responsabilização até de empresa individual de responsabilidade limitada, tratada pelo art. 980-A do Código Civil, formada por apenas uma pessoa (TJSP, Agravo de instrumento n. 2073431-09.2018.8.26.0000, Acórdão n. 13360188, Ribeirão Preto, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto, julgado em 28/02/2020, DJESP 10/03/2020, p. 2227). Não há qualquer óbice para tanto, como já constava do Enunciado n. 470, da V Jornada de Direito Civil: "o patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica".
Essa deve ser a conclusão sobre o tema, mesmo com a nova redação do art. 980-A, § 7º, do Código Civil, novamente inserido pela Lei da Liberdade Econômica: "somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude". A nova norma não afasta, no meu entender, a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica em relação à EIRELI. Da mesma forma, não há qualquer óbice para a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive em execução de alimentos, da sociedade limitada unipessoal, incluída pela Lei n. 13.874/2019 no art. 1.052 do Código Civil.
Como regra geral, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir o incidente previsto no Estatuto Processual, a fim de concretizar o contraditório e a ampla defesa. Nessa linha, em ação de execução de alimentos, julgou o Tribunal de Santa Catarina no final de 2019 (TJSC, Agravo de instrumento n. 4020797-22.2019.8.24.0000, Florianópolis, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Ricardo Orofino da Luz Fontes, DJSC 29/11/2019, p. 367). Além dessa importante ressalva, diante da incidência da teoria maior da desconsideração, muitos julgados apontam a necessidade de se comprovar os seus requisitos, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim sendo, a mera ausência de bens do devedor alimentante, por exemplo, não pode dar ensejo à desconsideração inversa. Somente a título ilustrativo, transcreve-se, trazendo análise a respeito desses elementos em ações de execução de alimentos:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM EXECUÇÃO DE ALIMENTOS DEVIDOS À FILHA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE REJEIÇÃO. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE CARACTERIZADO PELO DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COM INTUITO DE LESAR CREDORES, ESPECIFICAMENTE, NO CASO, A ALIMENTANDA. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada. (TJSC, AI n. 2000.018889-1, Rel. Des. Trindade dos Santos, j. 13-9-2001). (...)" (TJSC, Agravo de instrumento n. 4001454-11.2017.8.24.0000, Palmitos, Sétima Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, DJSC 05/08/2019, p. 206).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. Pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Decisão que indeferiu o pedido. Recurso interposto pela autora. Inconformismo com o indeferimento repisando os argumentos aduzidos no pedido. Alimentos que devem ser buscados do provedor inadimplente. Inexistência de comprovação de insolvência do devedor de alimentos. Ausência de motivos que justifique a instauração do incidente processual requerido. Decisão que não se mostra teratológica. Recurso a que se nega provimento. Manutenção da decisão" (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0033765-64.2017.8.19.0000, Niterói, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Brandão de Oliveira, DORJ 10/04/2018, p. 20).
"DIREITO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INOCORRÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. FALTA DE PROVAS DE CONFUSÃO PATRIMONIAL OU OCORRÊNCIA DE FRAUDE. LIMINAR INDEFERIDA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão proferida em execução de alimentos, que indeferiu a desconsideração inversa da personalidade jurídica, sob o fundamento de que simples ausência de bens em nome do executado não acarreta necessariamente na desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa que é sócio. 1.1. No recurso, o agravante pede a reforma da decisão, sustentando, em resumo, que estariam presentes os requisitos exigidos pela legislação para o deferimento da medida, pois o agravado, na condição de sócio de empresa, utiliza-se da pessoa jurídica para deixar de cumprir as suas obrigações, especialmente do pagamento da prestação alimentícia do agravante. 2. Não há que se falar em desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa em que o alimentante é sócio, porquanto constitui medida excepcional, aplicável somente nos casos em que evidenciadas as circunstâncias legalmente definidas, o que não é a hipótese dos autos. 2.1. Para que haja a desconsideração inversa deve haver o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme art. 50 do Código Civil. (...). 4. Na desconsideração inversa, os bens da sociedade devem responder por atos praticados pelo sócio. Ou seja: A proteção patrimonial da sociedade é retirada, permitindo-se que a pessoa jurídica responda com seus bens por atos praticados pela pessoa física do sócio. 5. Tal instituto foi criado para casos em que o devedor esvazia o seu patrimônio pessoal, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica, em flagrante abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. 6. O Superior Tribunal de Justiça admite a desconsideração da personalidade jurídica inversa quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02: [...] III. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. IV. Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V. A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. [... ] (RESP 948.117/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 03/08/2010). 7. No caso dos autos, a simples afirmação de que o agravado não possui bens penhoráveis, é insuficiente para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, porquanto não há provas da concretização de fraude à Lei ou a terceiros. 7.1. Ademais, não existem fundamentos para a alegação de confusão patrimonial entre a empresa e o executado, ou mesmo a ocorrência de fraude com o intuito de afastar a responsabilidade pelo pagamento de dívidas. 8. Agravo improvido" (TJDF, Processo n. 0703.88.8.372018-8070000, Acórdão n. 111.1403, Segunda Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, julgado em 25/07/2018, DJDFTE 01/08/2018).
Como se pode notar, apesar de contar com uma série de benefícios materiais e processuais, inclusive com a possibilidade de prisão civil do devedor, o credor dos alimentos que executa a sua dívida está submetido à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, com mais requisitos e rigor para que qualquer uma das suas modalidades seja efetivada, especialmente a desconsideração inversa. Não deixa de ser uma contradição, mas é a nossa realidade legislativa, que deve ser considerada para os devidos fins práticos.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

terça-feira, 28 de julho de 2020

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO. ARTIGO DE PABLO STOLZE E FERNANDA BARRETTO.

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO

 Pablo Stolze Gagliano[1]
 Fernanda Carvalho Leão Barretto[2]
“"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade”
( O filho de Mil Homens, Valter Hugo Mãe)
Sumário:
1. Introdução. 2. Diálogo entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil. 3. Responsabilidade Civil por Desistência da Adoção. 3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito. 3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção. 3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. 4. Conclusões e Reflexões Finais.
1. INTRODUÇÃO.
No final do mês de maio de 2020, sites de notícias e redes sociais revelaram ao mundo o caso do pequeno Huxley, um menino de origem chinesa que passou por um processo de adoção internacional que o tornou, em 2017, aos quase dois anos de idade, filho do casal de americanos Myka Stauffer e James de Columbus, pais biológicos de outras quatro crianças.

Myka, uma influenciadora digital com mais de setecentos mil inscritos em seu canal na plataforma YouTube, documentou boa parte da rotina e das etapas do processo de adoção em 27 vídeos e, segundo divulgado por alguns veículos de imprensa, teria tido um crescimento exponencial no seu número de seguidores em virtude dessa divulgação .[3]
Ocorre que o casal, quase três anos após a adoção de Huxley, comunicou ao público haver decidido pela “devolução” do filho, em função de não terem conseguido administrar as necessidades especiais decorrentes do diagnóstico de autismo do garotinho.
A revelação chocou internautas do mundo inteiro, e trouxe a lume uma cruel realidade que não é desconhecida dos nossos pretórios, mas cujo debate ainda é incipiente em solo pátrio: a da “devolução” de crianças e adolescentes por seus pais adotivos.
O termo “devolução", usado frequentemente para traduzir a desistência da adoção, parece muito mais vocacionado a bens, uma vez que seres humanos, dotados de inseparável dignidade, não se sujeitam a um trato que os objetifique, como se fossem coisas defeituosas que frustraram as expectativas do “adquirente” .
Justo por isso, o uso do termo é repleto do significado da dureza que envolve as situações de desistência na adoção, com o retorno a abrigos de pessoas que já estavam acolhidas em seios familiares.
Tudo se torna ainda mais triste se lembrarmos o potencial que essa desistência possui para acarretar uma nova sensação de rejeição naquele que somente foi adotado em razão já haver sido rejeitado, antes, pela família biológica que lhe deu origem.
Segundo dados divulgados pela BBC News, decorrentes de uma pesquisa feita entre onze Estados da federação, num lapso de cerca de cinco anos, foram registrados 172 casos de “devolução” de crianças e adolescentes candidatos à adoção[4], sendo que alguns desses candidatos experimentaram mais de uma situação de desistência no seu calvário em busca de uma família substituta.
Ao lado disso, é cada vez mais frequente a divulgação de decisões que versam sobre a possibilidade de compensação de eventuais danos decorrentes desse fenômeno.[5]
Nesse delicado contexto, surgem questionamentos que serão enfrentados aqui de forma bastante objetiva.
No transcurso do processo de adoção, a desistência dos pais adotantes, se já estiverem convivendo com as crianças ou adolescentes, pode atrair a incidência das regras de responsabilidade civil?
Depois de concluído o processo de adoção, haveria hipótese de desfazimento dela e, se houver, essa desistência geraria dever de indenizar?
2. DIÁLOGO ENTRE O DIREITO DAS FAMÍLIAS E A RESPONSABILIDADE CIVIL.

Importante pontuar que nos parece superada a discussão sobre a possibilidade de se aplicar aos danos causados no âmbito de relações familiares as regras da responsabilidade civil.
Ainda que o Direito das Famílias da pós-modernidade, repersonalizado e revolucionado pelos influxos da Constituição Federal de 88, tenha um dos seus pilares na intervenção mínima do Estado na seara das suas relações[6], isso não significa que a família é um lócus imune às regras da responsabilidade civil.
Não à toa, é ampla (e por vezes polêmica) a casuística em que o Estado-juiz tem sido chamado a decidir sobre a reparabilidade de danos causados no âmbito da convivência familiar, a exemplo das demandas indenizatórias pelo descumprimento dos deveres conjugais (sobretudo o de fidelidade), pelo rompimento de relações amorosas (como o noivado) e pelo abandono afetivo de filho.
Analisando a questão a partir do prisma dos pressupostos da responsabilidade civil na interface com as relações de família, entendemos que, se demonstrada a existência (a) de conduta antijurídica de um membro da família contra outro, (b) do dano indenizável, (c) do nexo de causalidade e, em regra, (d) da culpa, presentes estarão os elementos centrais do nascimento do dever de indenizar.
Todavia, soa fundamental rememorarmos que há, em nosso ordenamento, danos indenizáveis que excepcionalmente derivam de condutas lícitas[7], bem como inúmeras hipóteses enquadradas como de responsabilidade objetiva, ou seja, que prescindem da investigação de culpa para que haja o reconhecimento do dever de indenizar (CC, art. 927), com destaque para o abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil.
Quanto ao art. 187 do CC, escreve, com propriedade, FLÁVIO TARTUCE: “pontue-se que prevalece o entendimento segundo o qual a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva, independentemente de culpa. A propósito da correta conclusão a respeito do abuso de direito, vejamos o Enunciado n. 37, da I Jornada de Direito Civil, de 2004: ‘a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico’ ”.[8]
Após essas necessárias considerações, façamos agora a específica análise do tema proposto.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO

 Para que possamos analisar com solidez o cabimento da reparação por dano derivado da desistência no âmbito da adoção, necessário se faz sedimentar a nossa avaliação em três etapas[9]:
1) desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito;
2) desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção;
3) desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção.
Vamos a elas.
3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito
O art. 46 do ECA dispõe que:
"A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso”.
O instituto tem por objetivo propiciar um início de convivência[10] entre os candidatos previamente habilitados no Cadastro Nacional de Adoção. Vale observar que o procedimento de habilitação deveria durar no máximo 120 dias (ECA, art. 197-F), mas, como informa Maria Berenice Dias, demora, geralmente, de um a dois anos[11].
Cumpre notar, analisando os parágrafos do referido art. 46, que é possível a dispensa do estágio de convivência, se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante por tempo que o magistrado considere suficiente para avaliar a conveniência da constituição do vínculo (ECA, art. 46, §1º).
O legislador adverte, contudo, que a simples guarda de fato não autoriza, de per si, a dispensa da realização do estágio de convivência (ECA, art. 46, §2º).
O prazo máximo de 90 dias é passível de prorrogação por até igual período, e quando os adotantes forem residentes no estrangeiro, será de no mínimo 30 e no máximo 45 dias, prorrogável apenas uma vez (ECA, art. 46, §2º-A e §3º).
Como essa fase tem por característica ser uma espécie de teste[12] acerca da viabilidade da adoção, concluímos que, regra geral, a desistência em prosseguir com o processo de adoção nessa etapa é legítima e não autoriza a reparação civil.
Note-se que aqui estamos tratando do estágio de convivência no sentido estrito, descolado da guarda provisória dos adotandos.
Não desconsideramos, contudo, que possa haver intenso sofrimento psíquico para a criança ou o adolescente se, por exemplo, o estágio de convivência se estender por tempo significativo, se ocorrer majoritariamente fora dos limites do abrigo ou se o laço entre as partes se desenvolver com aparência de firmeza, por meio de atitudes capazes de criar no candidato a filho a sólida expectativa de que seria adotado.
Nesse horizonte, excepcionalmente e a depender das peculiares características do caso concreto[13], as rupturas absolutamente imotivadas e contraditórias ao comportamento demonstrado ao longo do estágio podem vir a ser fontes de reparação civil[14].
 Em alguns Estados da federação há a previsão de salutares medidas voltadas para amenizar as consequências dos traumas decorrentes do insucesso do estágio de convivência, como se dá com o Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho (RO), que celebra acordo com candidatos a pais, desistentes na fase do estágio de convivência, para que subsidiem um ano de psicoterapia para as crianças “devolvidas”[15].
Em síntese, o exercício do direito potestativo de desistir da adoção dentro do estágio de convivência não autoriza o reconhecimento da responsabilidade civil dos desistentes, ressalvadas as situações excepcionais que destacamos.
3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção
A guarda provisória é a etapa que usualmente sucede os estágios de convivência concluídos com êxito, apesar de haver hipóteses de concessão que não passam pela necessidade de prévio estágio.
Uma vez sinalizado pela família adotante, ao Juízo da Infância e da Juventude, o seu interesse em concluir a adoção daquela criança ou adolescente, ser-lhe-á atribuída a guarda para fim de adoção.
Essa guarda muitas vezes é sucessivamente renovada e já atribui aos adotantes amplos deveres parentais para com os adotandos. Quem milita com o instituto da adoção costuma dizer que a guarda provisória funda a relação paterno ou materno-filial, embora ainda não tenha havido a constituição formal do vínculo, que depende da sentença de adoção.
Ademais, durante a guarda provisória, a convivência entre adotantes e adotados não ocorrerá mais no abrigo, e sim no lar dos adotantes.
Por isso, a desistência da adoção, nesse contexto, se afigura muito mais complexa e dura do que o insucesso do estágio de convivência em sentido estrito, uma vez que rompe uma convivência sociofetiva consolidada, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro nacional.
Não se ignora que, enquanto não consumada, por sentença, a adoção, a possibilidade jurídica de desistência existe.
Mas é preciso notar que o seu exercício depois de um estágio prolongado de guarda provisória - que, por vezes, dura anos e promove uma total inserção familiar do adotando no seio da família adotante - pode configurar abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil.
E note-se que, nesse mencionado dispositivo (art. 187, CC), consagrou-se uma "ilicitude objetiva”, vale dizer, que dispensa a demonstração do dolo ou da culpa para a sua configuração.
Aqui, não há como não invocar a bela máxima cunhada pelo francês Saint-Exupéry, em “O Pequeno Príncipe”, clássico da literatura infanto-juvenil: "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
A guarda dos que pretendem adotar precisa ser exercida com plena consciência da grande responsabilidade que encerra.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“ A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil. A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram (TJMG - Apelação Cível 1.0024.11.049157-8/002, Relator(a): Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/04/2014, publicação da súmula em 23/04/2014).
A partir da análise de todo esse panorama, é inexorável a extração da seguinte conclusão: a configuração do abuso do direito de desistir da adoção gera responsabilidade civil e esse abuso estará presente se a desistência se operar depois de constituído, pelo adotante, um vínculo robusto com o adotando, em virtude do prolongamento do período de guarda, ante o amálgama de afeto que passa a vincular os protagonistas da relação.
3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção
Uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção se torna irrevogável (ECA, art. 39, § 1o).
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, “não há nenhuma previsão legal de 'desadoção'. Uma vez filho, adotado ou não, será para sempre, pois filhos e pais mesmo depois da morte permanecem vivos dentro da gente”.[16]
As palavras do grande jurista mineiro, e todas as reflexões que tecemos até aqui, já nos permitem antever a resposta ao último problema que nos propusemos a enfrentar: e se os pais, depois de findo o processo de adoção, resolvem “devolver” seu filho (a), como aconteceu no dramático caso narrado na abertura deste texto?
A resposta é simples: inexiste, no ordenamento brasileiro, base jurídica para devolução” de um filho após concretizada sua adoção.
Aliás, a filiação adotiva, diferentemente da biológica, é sempre planejada, programada e buscada com a paciência que o burocrático processo de adoção exige, num contexto de longa expectativa dos envolvidos.
 Há toda uma preparação para que uma pessoa ou um casal possa se habilitar a adotar, envolvendo a participação de uma equipe multidisciplinar, que existe para dar suporte aos envolvidos e para que os candidatos a pais tenham ciência das variadas e densas dimensões que o processo de acolher - no coração e na vida - um filho exige.
Também não se pode olvidar que o indivíduo adotado é alguém cuja trajetória costuma estar marcada por uma rejeição original, razão pela qual uma vulnerabilidade lhe é imanente e demanda especial proteção por parte do Estado.
Impende perceber, ainda, que muitos dos casos de rejeição a filhos adotivos parte de um rosário de queixas sobre a dificuldade de trato com o filho, do seu comportamento “indomável” ou da revelação de características ou problemas de saúde que “surpreendem negativamente" a família adotiva.
Com todas as vênias, esse tipo de argumento nos parece dos mais absurdos, pela simples razão de que a Constituição Federal não permite a diferenciação entre filhos em função da sua origem, e, ademais, filhos biológicos podem apresentar os mesmíssimos problemas ou questões, sem que se cogite de sua potencial devolução.
E a quem se devolveria um filho biológico?
Assim, entendemos que devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar, e, potencialmente, também, um ilícito penal (abandono de incapaz, previsto no art. 133 do CP), sem prejuízo de se poder defender, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro, a mantença da obrigação alimentar, uma vez que os adotantes não podem simplesmente renunciar ao poder familiar e às obrigações civis daí decorrentes.
Aliás, a apresentação, em juízo, de um pleito de desconstituição do vínculo de filiação adotiva pode ensejar o proferimento liminar de sentença de mérito, por improcedência liminar do pedido, à semelhança do que se dá com as hipóteses elencadas no art. 332 do CPC. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma hipótese atípica de improcedência liminar do pedido.[17]
4. CONCLUSÕES E REFLEXÕES FINAIS
 O drama da desistência na adoção é agudo e tem desafiado, cada vez mais, os nossos Tribunais.
Partindo da premissa da possibilidade de entrelaçamento das esferas da responsabilidade civil e das relações familiares, investigamos o cabimento de indenização pelos danos derivados das “devoluções” de crianças e adolescentes em processo de adoção ou com a adoção já consumada.
Trata-se de uma indenização que não apenas atende ao escopo compensatório, mas também se justifica em perspectiva pedagógica, à luz da função social da responsabilidade civil.
Aliás, a dor, a angústia, o sofrimento derivados da “devolução de um filho” - como se mercadoria fosse - acarretam, em nosso sentir, um dano moral que dispensa prova em juízo (“in re ipsa”).
Se a desistência ocorre dentro do estágio de convivência (ECA, art. 46) no sentido estrito, não se há que falar, em regra, em responsabilidade civil, eis que o direito potestativo de desistência é legítimo e não abusivo.
Se a desistência ocorre, contudo, após o estágio de convivência, durante período de guarda provisória e antes da sentença transitada de adoção, pode se configurar o abuso do direito (de desistir), à luz do art. 187 do CC, daí emergindo a responsabilidade civil.
Após a sentença de adoção transitada em julgado, é juridicamente impossível a pretendida “devolução”, caracterizando, tal ato, se efetivado, no plano fático, ilícito civil (e, a depender do caso, também, ilícito penal, por abandono de incapaz - art. 133, CP). Ressalte-se que o juiz, inclusive, pode proferir uma sentença de rejeição do pedido de devolução, sem sequer citar o réu (hipótese atípica de improcedência liminar do pedido - art. 332, CPC).
Adotar é lançar ao solo sementes de amor, mas esse ato precisa se dar no terreno da responsabilidade e da consciência de que as relações paterno ou materno-filiais, quaisquer que sejam as suas origens, são repletas de arestas que demandam paciência, resiliência e afeto para serem aparadas.
 REFERÊNCIAS
1. DIAS, Maria Berenice. O Perverso Sistema da Adoção in PEREIRA, Rodrigo da Cunha, DIAS, Maria Berenice (Coord.) Familia e Sucessões. Polêmicas, tendências e inovações. Editora IBDFAM, 2018, 1 Ed. p. 114.
2. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 22ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 740/741.
3. GAGLIANO, Pablo Stolze. Aula proferida pelo coautor Pablo Stolze Gagliano, em aula, por videoconferência, proferida no dia 17 de julho de 2020, a convite da ilustre Promotora de Justiça Márcia Rabelo, coordenadora do Caoca do Ministério Público do Estado da Bahia.
4. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 449.
_________________________. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 156.
5. TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil - volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 79-80.
7. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40464738 acessado em 25 de julho de 2020.
9. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40464738 acessado em 25 de julho de 2020.

[1] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).
[2] Advogada. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL. Professora da UNIFACS- Universidade Salvador e de diversos cursos de pós-graduação. Conselheira da OAB/BA. Vice-presidente do IBDFAM/BA.
[6] Nesse sentido, vale a pena conferir Rodrigo da Cunha Pereira, segundo o qual "a família contemporânea não admite mais a ingerência do Estado, sobretudo no que se refere à intimidade de seus membros. Conforme salienta Luiz Edson Fachin, está-se diante de um notório processo de privatização das relações, com propagação da interferência mínima do Estado no âmbito das relações privadas, notadamente nas relações de família". (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 156).
[7] A exemplo do dano provocado por aquele que age sob estado de necessidade ou em legítima defesa nos termos dos artigos 929 e 930, CC.
[8] TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil - volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 79-80.
[9] Essas conclusões basearam-se em aula proferida pelo coautor Pablo Stolze Gagliano, por videoconferência, no dia 17 de julho de 2020, a convite da ilustre Promotora de Justiça Márcia Rabelo, coordenadora do Caoca do Ministério Público do Estado da Bahia.
[10] Segundo diálogo virtual que mantivemos com Silvana Du Monte, uma das maiores especialistas do país em matéria de adoção, presidente da Comissão do IBDFAM destinada ao tema, essa é a fase do “cortejo” entre os candidatos a pais e filhos, que se dá, comumente, no próprio abrigo, acompanhado pela equipe técnica e com saídas aos finais de semana.
[11] DIAS, Maria Berenice. O Perverso Sistema da Adoção in PEREIRA, Rodrigo da Cunha, DIAS, Maria Berenice (Coord.) Familia e Sucessões. Polêmicas, tendências e inovações. Editora IBDFAM, 2018, p. 114.
[12] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 449.
[13] Nesse sentido “ A devolução injustificada do menor/adolescente durante o estágio de convivência acarreta danos psíquicos que devem ser reparados(TJ-SC AI: 40255281420188240900 Joinvile 4025528-14.2018.8.24.0900, Rel: Marcus Túlio Sartorato, 3 Camara de Direito Civil, j: 29/01/2019)
[14] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, pag. 450
[16] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 450
[17] ” DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 22ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 740/741.