quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A REFORMA DOS FUNDOS DE INVESTIMENTOS NO PROJETO DE LEI DE CONVERSÃO 17/2019. ARTIGO DE PABLO RENTERIA

A reforma dos fundos de investimentos no Projeto de Lei de Conversão 17/2019.
O CDC, a responsabilidade dos prestadores de serviços e a insolvência civil dos fundos
Pablo Renteria[1]
O Plenário da Câmara de Deputados aprovou o texto do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2019, oriundo da Medida Provisória nº 881, apelidada de Medida Provisória da Liberdade Econômica. Entre outros temas, referido Projeto cuida dos fundos de investimento, representando, nesse particular, a mais audaciosa tentativa de reforma legislativa, desde a promulgação da Lei nº 13.303, de 2001, que consolidou o enquadramento das cotas de fundos como valores mobiliários, sujeitos às competências regulatórias da Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
A proposta contém avanços importantes, que já foram amplamente noticiados, como a dispensa de publicação dos atos constitutivos no registro de títulos e documentos, a permissão de limitação da responsabilidade do cotista ao valor da sua cota e a melhor delimitação, no regulamento, das responsabilidades de cada prestador de serviço, observada a regulamentação da CVM.
Nada obstante, o Projeto, que segue para apreciação do Senado, ainda oferece oportunidades para reflexões adicionais, tendo em vista o aperfeiçoamento do marco legal desse importantíssimo instrumento de investimento, responsável por um mercado pujante e dinâmico, que têm em mãos patrimônio líquido de cinco trilhões de reais, representativo de 74% do PIB brasileiro.[2]
Nessa direção, a primeira observação a ser feita, de ordem preliminar, diz respeito à opção por incluir as novas regras propostas no Código Civil. Tal escolha deveria refletir a intenção do legislador em transformar o fundo de investimento, até hoje figura setorial circunscrita ao mercado de valores mobiliários, em instituto de mais amplo alcance.
No entanto, segundo se depreende do Projeto de Lei de Conversão, as disposições sobre fundos estariam sujeitas à competência normativa da CVM, o que significa dizer que tais regras, apesar de introduzidas no Código Civil, teriam aplicação restrita aos limites da Lei nº 6.385, de 1976.
Se fosse o intuito do legislador de manter o fundo de investimento como instituto exclusivo dos mercados regulados pela CVM, melhor seria introduzir as novas regras em lei especial ou até mesmo na referida Lei nº 6.385, que guarda evidente afinidade com o tema. A sua inclusão no Código Civil, de vocação sabidamente geral, só se justificaria se fosse aproveitada a oportunidade para disciplinar, de forma inédita, a constituição de fundos de investimentos que se poderia chamar de privados, em contraposição aos fundos atuais que, nos termos da Lei nº 6.385, de 1976, constituem veículos destinados a fazer apelo à poupança pública ou a terem cotas negociadas em mercados públicos regulamentados.
Fundos criados com pequeno número de cotistas, sem qualquer esforço de distribuição pública das cotas, apresentam relevância diminuta para a proteção da poupança popular ou a higidez do mercado financeiro, de modo que poderiam prescindir da regulação financeira hoje existente e se desenvolverem, exclusivamente, com base em normas legais simples e bem definidas. Eventuais disputas entre os cotistas e os prestadores de serviço seriam levadas ao Judiciário ou à arbitragem, como ocorre, ordinariamente, com os litígios privados no Brasil.
O reconhecimento legal dos fundos privados apresentaria dupla vantagem. De um lado, aumentaria a liberdade econômica, colocando à disposição dos agentes econômicos estrutura jurídica eficiente e flexível para a gestão patrimonial e a realização de investimentos. Desse modo, os particulares não teriam mais de recorrer, por falta de alternativa, aos fundos de investimento regulamentados pela CVM, incorrendo em custos e riscos legais desnecessários, mesmo quando, em realidade, querem criar um mecanismo puramente privado de gestão de recursos.
De outro lado, a criação legal dos fundos privados desoneraria o órgão regulador, que, hoje em dia, se vê obrigado a alocar parte de seus (escassos) recursos na supervisão de fundos que, todavia, pelas razões indicadas, constituem veículos privados, que guardam pouca pertinência com os seus mandatos legais (formação de poupança, desenvolvimento do mercado de valores mobiliários e a proteção do público investidor).
Outra observação a ser feita sobre o texto do Projeto refere-se à proposta de permitir que o regulamento do fundo autorize a criação de “classes de cotas com direitos e obrigações distintos, podendo constituir patrimônio segregado para cada classe”. A previsão de diferentes classes não é novidade; ao contrário encontra-se plenamente assimilada na regulamentação da CVM sobre fundos de investimento em direitos creditórios e fundos de investimento em participações.
No entanto, nas condições atuais, toda cota, independentemente da sua classe, corresponde a uma parte ideal da carteira única de ativos do fundo, participando, ainda que em termos desiguais, da rentabilidade auferida por todos os bens, sem exceção. A proposta, contudo, ao permitir a criação de “patrimônio segregado para cada classe”, levaria à constituição de múltiplos acervos de bens dentro mesmo fundo, cada qual de propriedade de conjunto distinto de cotistas condôminos. Haveria, assim, “subfundos” dentro de um mesmo fundo, sem que fiquem claras as vantagens ou as potencialidades que o legislador busca alcançar por meio desse novo modelo.
Sublinhe-se, também, a regra contida na parte final da proposta do novo art. 1.368-E, nos termos do qual “os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, não respondendo os prestadores de serviço por tais obrigações; respondem, porém, pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má fé”.
O texto procura restringir a responsabilidade dos prestadores de serviços aos casos de dolo comprovado, afastando, assim, a regra geral do direito brasileiro, aplicável às atividades profissionais em geral, segundo a qual toda pessoa responde pelos prejuízos que causar com dolo ou culpa, entendida esta última como o desvio voluntário em relação ao padrão de conduta esperado do profissional (Código Civil, art. 186). A derrogação do regime comum justifica-se, possivelmente, no entendimento de que a responsabilização por atos culposos gera consequências adversas no mercado, inibindo profissionais de oferecerem estratégias de investimento mais arriscadas, ante o risco de alegação de imprudência ou negligência de sua parte. Em contrapartida, convém dizer que a proposta pode propagar a percepção de que as relações com fundos de investimento são menos seguras, haja vista a ausência do direito de indenização pelos danos causados com culpa pelos prestadores de serviço.
De todo modo, o texto, se aprovado, deve suscitar dúvidas interpretativas. Em uma análise preliminar, identificam-se algumas indagações, como, por exemplo, quanto ao alcance da norma, que poderia compreender os cotistas ou, ao reverso, restringir-se aos prejuízos alegados por terceiros que entabulam relações com o fundo. Além disso, no que tange às relações de consumo, parece razoável esperar importante debate quanto à conciliação dos diferentes diplomas legislativos. Nesse particular, deve-se discutir qual regime há de prevalecer: a nova regra, a ser inserida no Código Civil, ou a responsabilidade objetiva por defeito de serviço, prevista no Código de Defesa do Consumidor.
Mencione-se, de outra parte, a proposta de submeter os fundos com limitação de responsabilidade ao vetusto regime da insolvência civil, previsto nos artigos 955 a 965 do Código Civil e nos artigos 748 a 761 do Código de Processo Civil de 1973 (que, nesse particular, não foi revogado pelo Código de 2015). Tendo em vista a opção de manter a qualificação do fundo de investimento como espécie de condomínio incidente sobre patrimônio separado, afigurar-se-ia mais condizente submetê-lo a regime da liquidação extrajudicial semelhante ao adotado pela Lei nº 9.514/1997 em relação aos patrimônios de afetação administrados por companhia securitizadora.
Tal regime, com efeito, mostra-se menos oneroso e demorado do que a insolvência civil, haja vista dispensar o processo judicial, e também mais flexível, conferindo maior liberdade às partes para definir, no regulamento e nas deliberações das assembleias gerais de cotistas, o procedimento de liquidação mais apropriado para o fundo, tendo em conta as circunstâncias peculiares de cada caso.
Por fim, cumpre assinalar a exclusão da disposição, constante de versões anteriores do Projeto, que pretendia afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor do âmbito dos fundos de investimento. O abandono da proposta se explica, possivelmente, pela percepção de que o seu acolhimento introduziria assimetria regulatória no arcabouço legislativo, excepcionando os fundos da incidência do diploma consumerista, que, todavia, permaneceria aplicável aos demais produtos e serviços financeiros, igualmente oferecidos, em agências ou plataformas digitais, ao público de varejo.
Nada obstante o recuo legislativo nesse particular, a compatibilização do Código de Defesa do Consumidor permanece sendo tema incontornável para a indústria de fundos. A aplicação descuidada das normas consumeristas vem gerando distorções significativas, uma vez que, a pretexto de proteger o cotista consumidor, torna sem efeito princípio fundamental do funcionamento do mercado de capitais, qual seja, a assunção de riscos pelo investidor. Além disso, a falta de conhecimento especializado sobre a regulamentação dos fundos de investimento tem levado a decisões incoerentes, que identificam defeitos na prestação de serviços ainda que o prestador tenha observado rigorosamente as regras emanadas da CVM. A isso se acrescenta a admissão acrítica pelos tribunais da incidência do CDC em casos em que sequer há parte vulnerável a ser protegida, como ocorre, por exemplo, nos fundos em que os cotistas são investidores profissionais, plenamente capazes de defender seus interesses em paridade de condição com os prestadores de serviços. Disso tudo resulta ambiente de insegurança jurídica e de aversão ao risco, que inibe a mais ampla oferta de produtos por parte dos agentes econômicos. Impõe-se, portanto, a urgente tarefa de aperfeiçoar a interpretação da legislação consumerista, de maneira a proporcionar proteção equilibrada ao cotista, sem, todavia, prejudicar o regular funcionamento do mercado de capitais, tão importante para o desenvolvimento econômico do país.

[1] Sócio fundador do Renteria Advogados. Professor do departamento de direito da PUC-Rio. Ex-Diretor da Comissão de Valores Mobiliários.

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