quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SUAS APLICAÇÕES AO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. PARTE I. COLUNA NO MIGALHAS

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SUAS APLICAÇÕES AO DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. PRIMEIRA PARTE[1]
Flávio Tartuce[2]
Mais uma vez, tive a grande honra de ser convidado para palestrar no XI Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), entre os dias 25 e 27 de outubro deste ano de 2017. Trata-se de um dos maiores congressos do mundo sobre o tema e, sem dúvidas, um dos mais importantes eventos de Direito Privado de nosso País.
As temáticas das exposições, nesta oportunidade, estão baseadas em perguntas práticas que devem ser respondidas pelos palestrantes. A mim coube discorrer sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, respondendo à seguinte indagação: “O CPC/2015 consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica?”.
Procurarei responder a tal pergunta em uma série de três artigos, publicados neste canal. Neste primeiro texto, demonstrarei o enquadramento do tema, bem como a principal aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito de Família e das Sucessões trazida pelo novo Estatuto Processual.
Pois bem, diante de sua concepção como realidade técnica e orgânica, a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres na ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo. Tal realidade pode ser retirada do art. 45 do Código Civil de 2002, ao dispor que começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Fala-se em autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros, o que constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916, dispositivo que não foi reproduzido pela atual codificação material, sem que isso traga qualquer conclusão diferente.
Como decorrência lógica desse enquadramento, em regra, os componentes da pessoa jurídica somente responderão por débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual dependendo do tipo societário adotado (responsabilidade in vires). A regra é de que a responsabilidade dos sócios em relação às dívidas sociais seja sempre subsidiária, ou seja, primeiro exaure-se o patrimônio da pessoa jurídica, para depois, e desde que o tipo societário adotado permita, os bens particulares dos sócios ou componentes da pessoa jurídica serem executados.
Devido a essa possibilidade de exclusão da responsabilidade dos sócios ou administradores, a pessoa jurídica, por vezes, desviou-se de seus fins, cometendo fraudes e lesando a sociedade ou terceiros, provocando reações na doutrina e na jurisprudência. Visando a coibir tais abusos, surgiu no Direito Comparado a figura da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, teoria do levantamento do véu ou teoria da penetração (disregard of the legal entity). Com isso, alcançam-se pessoas e bens que se escondem dentro de uma pessoa jurídica para fins ilícitos ou abuso, além dos limites do capital social (responsabilidade ultra vires).
Entre os grandes especialistas no assunto em nosso País, Fábio Ulhoa Coelho demonstra as suas origens com precisão: “a teoria é uma elaboração doutrinária recente. Pode-se considerar Rolf Serick o seu principal sistematizador, na tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tübigen, em 1953. É certo que, antes dele, alguns autores já haviam dedicado ao tema, como por exemplo, Maurice Wormser, nos anos 1910 e 1920. Mas não se encontra claramente nos estudos precursores a motivação central de Serick de buscar definir, em especial a partir da jurisprudência norte-americana, os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas (1950)” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 37. v. 2).
Como se extrai de obra do último jurista, são apontados alguns julgamentos históricos como precursores da tese: caso Salomon vs. Salomon & Co., julgado na Inglaterra em 1897, e caso State vs. Standard Oil Co., julgado pela Corte Suprema do Estado de Ohio, Estados Unidos, em 1892. A verdade é que, a partir das teses e dos julgamentos citados, as premissas de penetração na pessoa jurídica passaram a influenciar a elaboração de normas jurídicas visando a sua regulamentação, especialmente nos Países do modelo da “Civil Law”. Na Itália, fala-se em superamento della personalitá giuridica; na Alemanha, Durchgriff der juristischen person; na Argentina, teoria de la penetración de la personalidad societaria; em Portugal, desconsideração da personalidade colectiva.
Em resumo, o instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios e administradores, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa.
Dessa forma, os bens particulares dos sócios ou administradores podem responder pelos danos causados a terceiros. O véu ou escudo, no caso a própria pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. Bens da empresa também poderão responder por dívidas dos sócios, por meio do que se denomina desconsideração inversa ou invertidacom grande incidência para o Direito de Família e das Sucessões.
O atual Código Civil Brasileiro acolheu expressamente a desconsideração. Prescreve o seu art. 50 que: “em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o Juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Como a desconsideração da personalidade jurídica foi adotada pelo legislador da codificação privada de 2002, não é recomendável mais utilizar a expressão teoria, que constitui trabalho doutrinário, amparado pela jurisprudência. Tal constatação também é retirada da leitura do Código de Defesa do Consumidor.
O art. 28, caput, da Lei 8.078/1990 enuncia que: “o Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”; (...) § 5º: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Faz o mesmo o art. 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), ao prever que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Tanto em relação à adoção da teoria quanto à manutenção das leis especiais anteriores, expressa o Enunciado n. 51, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (2002), que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”. Eis um argumento doutrinário de relevo pelo qual não se pode mais utilizar a expressão teoria, uma vez que a desconsideração foi abraçada pela codificação privada.
Ponto importante a ser esclarecido, diante do comum baralhamento no uso dos termos, é que a desconsideração não se confunde com a despersonificação ou despersonalização, pois essas últimas expressões significam o fim da pessoa jurídica, tratada pelo art. 51 do Código Civil Brasileiro. Reitere-se que pela desconsideração da personalidade jurídica não há extinção da pessoa jurídica, mas apenas uma ampliação de responsabilidades. A melhor doutrina aponta a existência de duas grandes teorias fundamentais acerca da desconsideração da personalidade jurídica.
A primeira delas é a teoria maior ou subjetiva, segundo a qual a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos. O primeiro deles é o abuso da personalidade jurídica; o segundo, o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002, sendo aplicada para as relações civis, notadamente para aquelas fundadas em vínculo de Direito de Família ou das Sucessões. Incide, portanto, para as fraudes praticadas entre cônjuges ou entre herdeiros.
Por outra via, pela teoria menor ou objetiva, a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pela Lei 9.605/1998, para os danos ambientais e, segundo a posição consolidada da jurisprudência superior – apesar da existência de críticas doutrinárias –, pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Entre os principais precedentes que trazem tal conclusão está o rumoroso caso da explosão do “Shopping Center” de Osasco (STJ, REsp 279.273/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Julgado em 04.12.2003, DJ 29.03.2004, p. 230). Como não se pode atribuir a subsunção dessas normas para as relações familiares ou entre herdeiros, a aplicação da teoria menor foge do âmbito em estudo neste texto.
De todo modo, existem duas modalidades básicas de desconsideração, sujeitas às duas teorias expostas. A primeira delas é a desconsideração direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica. Está ela tratada pelos expostos art. 50 do Código Civil e art. 28 do CDC. A segunda é a desconsideração indireta, inversa ou invertida, hipótese em que bens da pessoa jurídica respondem por dívidas dos sócios ou administradores.
A última modalidade não estava tratada em lei, tendo surgido doutrinariamente no Brasil a partir dos estudos do Professor Rolf Madaleno – quem ora se homenageia –, especialmente no âmbito do Direito de Família e das Sucessões (por todas as suas obras: Direito de família. Aspectos polêmicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 31). No âmbito doutrinário, a desconsideração inversa ou invertida também foi reconhecida pelo Enunciado n. 283, da IV Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (2006), in verbis: “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”. Da jurisprudência superior anterior, vários já eram os arestos que a reconheciam (por todos: STJ, REsp. 948.117/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22.06.2010, publicado no seu Informativo n. 444).
Pensamos que a principal e mais importante inovação do Código de Processo Civil de 2015 sobre a temática foi justamente essa positivação da desconsideração inversa, incluída no seu art. 133, § 2º, no tópico relativo ao “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”. E, conforme o Enunciado n. 11, aprovado na I Jornada de Processo Civil, realizada em agosto último pelo mesmo Conselho da Justiça Federal, tal procedimento incide também para essa modalidade de desconsideração.
Sobre as regras relativas ao citado incidente, e suas aplicações ao âmbito do Direito de Família e das Sucessões tratarei no artigo de continuidade a este texto.

[1] Coluna do Migalhas do mês de outubro de 2017.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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