sexta-feira, 22 de julho de 2016

O MIÚDO PORTUGUÊS E O PRINCÍPIO ESQUECIDO. QUANDO O GESTO REENSINA A SOCIEDADE FRATERNA. ARTIGO DE JONES FIGUEIRÊDO ALVES

O miúdo português e o princípio esquecido.
Quando o gesto reensina a sociedade fraterna

Jones Figueirêdo Alves

Uma breve cena pós-jogo reensinou ao mundo, domingo passado, um princípio esquecido. O garoto português que consolou o torcedor francês, achado em prantos (https://m.youtube.com/watch?v=8Gwt4nB3Y8k), ensaiou no seu gesto infantil solidário, a prática do espírito da fraternidade (“principium fraternitas”) que deve servir a um novo Estado, como princípio e valor supremo. Um “princípio esquecido” em um  mundo que busca a verdadeira convivência possível (Camargo Biagio, 2010).
O Estado do Bem-Estar Sócio-Fraternal teve ali uma de suas melhores configurações. Dois torcedores de países distintos (Portugal e França), abraçaram-se em ato instante, sem diferença de idades e de escolhas, colocando-se vitoriosos por uma unidade reencontrada, a da humanidade dos homens bons (Yevgeny Yevtuchenko, 1966). O miúdo, com a iniciativa do seu consolo fraternalista, queria dizer, apenas, que todos ganham na igualdade solidária que elimina derrotas. Ele, assim agindo, reaviventou na comuna de Saint-Denis, em  França,   um dos lemas de ordem da própria Revolução Francesa (1789).
A fraternidade deve ser observada, para além de sua categoria politica, como uma categoria juridica determinante de efetivação dos direitos fundamentais, certo que uma “sociedade solidária e fraterna” é a base da realização de direitos e, sobremodo, constitui a melhor ferramenta de reconhecimento do homem em sua dignidade.
Nesse contexto, a fraternidade, em suas práticas multifacetadas, se apresenta como (i) a composição necessária  de laços familiares, entre povos e individuos, compreendendo a família humana; ii) o “valor orientativo” de novos direitos, necessários ao aprimoramento da vida em sociedade, instrumentalizando “um direito que recupere a razão sensivel, que se preocupe e seja capaz de atender às novas demandas” (Mônica Nicknich, 2010); e (iii) a mais nova possibilidade de integração, por um pacto comum substancial de mudanças, com aplicação em todos os sistemas sociais (Lafaette Pozzoli e Watanabe Hurtado, 2010).
Consigne-se, antes de mais, que a fraternidade situa-se estruturada no ideário de uma sociedade fundada na liberdade e na igualdade em dignidade e direitos, onde todos os seres humanos “devem agir uns aos outros com espírito de fraternidade” (artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
Segue-se que, diante desse documento histórico, constitucionaliza-se o direito fraterno, a exemplo da cláusula “sociedade fraterna”, constante do preâmbulo da nossa Constituição Federal de 1988, a dizer que um Estado Democrático instituído objetiva assegurar direitos, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça que se apresentam como valores supremos de uma sociedade fraterna.  
Anota-se, a propósito, que o constitucionalismo fraternal é introduzido na doutrina juridica, em nosso país, com as reflexões do Ministro Carlos Ayres Brito, em sua obra “Teoria da Constituição” e, no caso, mesmo que se sustente ausente a força normativa do preâmbulo, impende reconhecê-lo como o espirito da Constituição que ele apresenta, em seus principios informadores.
Lado outro, estamos em que a constitucionalização do Estado Fraternal, também alcança microssistemas normativos, com estatutos jurídicos que buscam, v.g., assegurar a tutela integral da criança e do adolescente (Lei nº 8.069/1990),  particularrmente a da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), do idoso (Lei nº 10.741/2003) e das pessoas com deficiência, para sua inclusão social e cidadania (Lei nº 13.146/2015), cujas novas dimensões do direito emprestam visível concretude à fraternidade, com a consciência  responsável sobre o outro, em favor de seus cuidados e de sua proteção, com posturas atitudinais solidárias. Cuidado e fraternidade tornam-se valores jurídicos em linha do compromisso preambular constitucional.
Em ser assim, a lição do garoto português é a manifestação viva e eloquente da dicção constitucional do artigo 1º da Constituição do seu país (1976), dispondo que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. No seu sentido mais objetivo, “tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (cf. Preâmbulo).
De fato. “É na fraternidade que o homem se apresenta a si como um ser humano ‘e penetra no dia espiritual do que é presença’ quando o outro acontece no mundo histórico, com a mesma importância do eu mesmo na unidade do Espírito”, diz-nos Maria Inês Chaves de Andrade, em sua tese “A Fraternidade como Direito Fundamental entre o Ser e o Dever Ser na Dialética dos Opostos de Hegel (Almedina, Coimbra 2010). Mais exatamente, “a própria humanidade enquanto fraternidade de homens”.
A fraternidade, em sua juridicidade, há de ser compreendida, designadamente, como um bem jurídico extraído do bem-estar social, o que deve ser alcançado nas diversas relações sociais que uma sociedade complexa, multifacetária e conflituosa experimenta em seu cotidiano, e bem por isso interimplica um exercício de garantia à felicidade comum das pessoas. Os fraternais são tendentes à pacificação social e por ela desenvolvem uma sociedade menos conflituosa. Eles situam-se na adequada dimensão do ser humano em dinâmica de sua história pessoal, interagindo com as correlações de forças sociais que envolvem os outros em uma mesma práxis de natureza convivencial.

Demais disso, Direito e Fraternidade complementam-se entre si, nas relações sociais concretas que emprestam à experiência humana o emprego dos sujeitos sociais, enquanto sujeitos de direito, destinados a um papel (re)conciliatório, através do qual formula-se uma sociedade aberta, tolerante e mediadora de melhor qualidade de vida.
Torna-se, de efeito, indispensável que a fraternidade, como categoria jurídica, implemente os seus enunciados e princípios no ordenamento jurídico e, sobremodo, servindo como base interpretativa, em vocação de decisões judiciais e de políticas públicas. Indispensável à ideia e ao implemento da solidariedade social, a sua concepção principiológica fornece método e relacionalidade ao próprio sistema que ela confere.
Confiram-se dois exemplos, onde a exigência da solidariedade como valor, no âmbito familiar, coloca em conflito a própria fraternidade com as fraquezas humanas. A quem não se mostre fraterno, na acepção mais densa do significado de irmandade espiritual, e ponha em risco a segurança dos filhos, desertando do dever de prestar-lhes alimentos, esse déficit de paternidade se afigura suficiente à caracterização do crime de abandono (Neste sentido: TJRS, 7ª Câmara Criminal, Rel. Des. Marcelo Bandeira, j. em 27.07.06), e, a tanto, também perde aquele o direito de reclama-los diante do desamparo cometido. Noutro giro, será ”descabido o pedido de alimentos, com fundamento no dever de solidariedade, pelo genitor que nunca cumpriu com os deveres inerentes ao poder familiar, deixando de pagar alimentos e prestar aos filhos os cuidados e o afeto que necessitavam em fase precoce do seu desenvolvimento”. (TJRS, 7ª Câmara Cível, Ap. Cível 70013502331, Relatora Desa. Maria Berenice Dias, j. em 15.02.06. Na mesma linha: TJRS, Ap. Cível nº 70019179894, de 09.05.07).
Bem de ver, que a fraternidade coloca-se como categoria de humanização do direito, com sua matriz adstrita ao necessário aperfeiçoamento das relações. Aliás, é na esfera do direito de família que ela mais se apresenta exigível às compreensões e vivências das reciprocidades. Com pertinência, “o conceito de fraternidade tem na família uma validade intuitiva e etimológica” (Oscar Vazquez, 2008), indicando o seu princípio evidencias fortes na própria práxis da mediação familiar, porquanto esta pressupõe “uma alternativa fraterna de tratamento de conflitos” (Ghisleni e Spengler, 2011). Em sua dinâmica, a mediação familiar ao ressignificar o conflito propicia uma capacidade dialogal de superá-lo, a partir do en(tender) (a)o outro. Pessoas envolvidas em conflito familiar somente alcançam a solução ideal pelo diálogo e nele a fraternidade tem a sua expressão estrutural dialógica.
Não custa anotar, outrossim, que o processo judicial também tende a servir de instrumento de práticas fraternais, quando ali são priorizados os institutos jurídicos da conciliação e da mediação.
Vejamos, a propósito, o artigo 1º do Código de Processo Civil vigente (Lei nº 13.105/2015), que ao dispor que o novo processo civil “será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República (...)” faz evidenciar identicos principios informadores que permeiam a idéia-força propugnante de uma sociedade fraternal. Essa repercussão jurídica coloca tal propósito orientador no processo civil, como processo de resultado, com maior destaque quando:
(i) acentua a relevância jurídica do instituto da conciliação (art. 3º) determinando a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (art. 165), estimulando a composição do composto litigioso por audiência específica (art. 334) e, sobretudo, determinando o empreendimento de todos os esforços para viabilizar a solução consensual nas ações de família, em audiência própria dividida em tantas sessões quantas sejam necessárias (art.696); (ii) consagra o dever de cooperação no processo pelo princípio cooperativo constante do artigo 6º, segundo o qual “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” e (iii) estabelece os deveres de esclarecimento (artigo 357, § 3º) e de diálogo ou consulta  (artigos 9º e 10).
Em outras palavras, os deveres de cooperação configuram deveres acessórios de conduta das partes no processo, mediante boa-fé e lealdade processuais, com incidência dos valores fundamentais que sediam, por óbvio, as relações de uma sociedade mais harmônica.
Pois bem. Existem determinismos axiológicos para a desenvoltura de uma sociedade fraterna, dentro da prática volitiva que serviu de exemplo, com as cores domingueiras da final da Eurocopa, no episódio do garoto português. Ali, a fraternidade geriu uma unidade idealizada constitucionalmente, em seu sentido amplo, como matriz de uma sociedade mais justa e harmônica, diante do seu caráter pluralista e diferenciado de seus partícipes.
Naquele momento, o reconhecimento do outro, em consenso, resgata a condição humana e estabelece o paradigma da cultura de paz. O interesse momentâneo do pequeno torcedor vitorioso para compensar com palavras de afago o outro que não experenciou o mesmo festejo de conquista, ao tempo uno em que esse resultou confortado, em ato instante, no gesto fraterno, fez evidenciar, quanto bastante, o que a fraternidade protagoniza.
Por certo, na cena difundida ao mundo pelas mídias sociais, somos também protagonistas.

Referências:

ANDRADE, Maria Inês Chaves de. A Fraternidade como Direito Fundamental entre o Ser e o Dever Ser na Dialética Fundamental dos Opostos de Hegel. Coimbra: Editora Almedina, 2010, 255 p.

BAGGIO, Moacir Camargo; Da Tolerância. Direito e Conflito sob o signo da Tolerância: por uma jurisdição constitucional comprometida com a fraternidade; São Paulo: LTr; 1a. ed., 2010, 230 p.;

BRITO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. São Paulo: Editora Forense, 2003.

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Fraternidade como Categoria Constitucional: considerações a partir do  compromisso preambular da Carta Magna do Brasil de 1988.  Artigo foi parcialmente apresentado no Seminário Internacional “Fraternidade: princípio relacional  político e jurídico”, promovido pelo Instituto Universitário Sophia,em Loppiano/Florença (Itália), entre 11 a 13 de março de 2013. (Cf. http://www.focolare.org/pt/news/2013/03/10/fraternita-principio-relazionale-politico-e-giuridico/).
Web: http://www.catedrachiaralubich.org/uploads/artigos/artigos_2014-09-02_artigocatedracarlosaugustoafraternidadecomocategoriaconstitucional_pdf_03b03683446f910878038adeedd6d007.pdf

PAULO, Beatrice Marinho; Ser Irmã(o) nas novas configurações familiares: a fraternidade psico-afetiva; in DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliene Ferreira; Moraes, Naime Márcio Martins (Coord.); Afeto e Estruturas Familiares; Belo Horizonte (MG): Del Rey, 2010, 551 p.; 79-101;

RESTA, Elígio. O direito fraterno. Trad. de Sandra Regina Martini Vial. Florianopólis: Edunisc, 2004.



Jones Figueiredo Alves é Desembargador Decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Mestre em Ciências Jurídicas e Especialista em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (FDUL). Preside a Comissão de Magistratura de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).



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