sábado, 27 de fevereiro de 2016

A MOÇA TEM DUAS MÃES. POR ZENO VELOSO.

A MOÇA TEM DUAS MÃES

Por Zeno Veloso. Jornal "O Liberal".


         O casamento de Lucimar com Theodoro durou cinco anos. E foram anos de alegria, entendimento, felicidade, que culminou com o nascimento de Ana Júlia. Passados mais dois anos, vitimada por doença cruel e incurável, Lucimar faleceu, deixando orfã a filhinha.
         Theodoro contratou uma babá experiente e passou, sozinho, a criar Ana Júlia. Algum tempo depois, a menina já tinha completado quatro anos, o viúvo conheceu Palmira, que passou a namorar. O romance evoluiu e os dois se casaram. O primitivo lar foi recomposto, e sob o mesmo teto passaram a viver Theodoro, Palmira e a criança, tudo na maior paz e harmonia.
         Passou-se o tempo, consolidando aquela situação familiar. Ana Júlia cresceu, está uma moça saudável, estudiosa, vai prestar exame Vestibular para o curso de medicina, e nutre um grande amor pela mulher de seu pai, sua madrasta, Palmira, que reputa e ama como verdadeira mãe, e esta, por sua vez, a quer como se fosse filha, e assim a considera.
         Não há dúvida que, entre Palmira e Ana Júlia, embora inexistente o vínculo biológico, estabeleceu-se uma relação de amor, intimidade, afetividade, um parentesco, uma filiação socioafetiva. A moça tem a posse do estado de filha, e Palmira apresenta a posse de estado de mãe. "Tá tranquilo, tá favorável", para usar o jargão da moda, mas falta algo para completar a felicidade das duas: um papel, um documento, que oficialize aquela situação que já existe, na prática da vida, e é reconhecida no meio social. Em suma: Palmira quer que fique constando no registro civil de Ana Júlia que esta é sua filha. Mas, ao mesmo tempo, ninguém deseja excluir desse registro o nome de Lucimar, a saudosa mãe biológica, que amou a filha com grande intensidade, e por esta foi amada, nos poucos anos em que conviveram, e amada continua sendo.
         Realmente, não institutos do moderno Direito das Famílias, que tem evoluído mais rapidamente do que o legislador vem conseguindo acompanhar: a filiação socioafetiva e a multiparentalidade. Assim, é possível que uma pessoa tenha dois pais: um pai biológico, que a registrou, e um pai socioafetivo, que a criou.
         No caso acima narrado, o desejo de Palmira é justo, merece ser acolhido, até considerando que não se quer excluir do registro da filha o nome da falecida mãe biológica. O fato é que Ana Júlia, pelas circunstâncias da vida, e afinal das contas, tem duas mães, a primeira que a gerou, pariu e, por alguns anos, criou, e a outra, que a recebeu e assumiu como filha, conferindo-lhe amor e afeto, sendo esse sentimento recíproco.
         O jovem e vitorioso jurista Flávio Tartuce, um dos mais importantes civilistas de nosso país, aborda esta matéria de que estou tratando ("Direito Civil, v.5 - Direito de Família", 10ª ed., 2015, página 398), observando que o tema ganha relevo na questão relativa aos direitos e deveres dos padrastos e madrastas, com grande repercussão prática no meio social, ensinando: "Se a sociedade pós-moderna é pluralista, a família também o deve ser e para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios", e destaca, na linha do exposto, o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que determinou o registro de madrasta como mãe civil de enteado, mantendo-se a mãe biológica, que havia falecido quando do parto (cf. Apelação 0006422-26.2011.8.26.0286, 1ª câmara de Direito Privado, Itu, Relator Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Júnior, julgamento ocorrido em 14.08.2012).
         Com a orientação de um bom advogado, tendo a sorte de encontrar um membro do Ministério Público estudioso e atento à evolução do Direito, e de um Juiz humano e culto, respeitada a memória da mãe biológica, prematuramente desaparecida deste mundo terreno, a filiação socioafetiva que foi estabelecida pode ser reconhecida e levada a registro. Ana Júlia constará como filha das duas mães, a biológica e a socioafetiva, que a criou com o afeto e o desvelo de uma verdadeira mãe. Constará também no registro que ela tem seis avós: os pais de seu pai, os pais de sua mãe biológica e os pais de sua mãe socioafetiva.


zenoveloso@hotmail.com

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