quarta-feira, 28 de outubro de 2015

COLUNA NO MIGALHAS DE OUTUBRO DE 2015. ESTATUTO DA FAMÍLIA X ESTATUTO DAS FAMÍLIAS


ESTATUTO DA FAMÍLIA X ESTATUTO DAS FAMÍLIAS.
SINGULAR X PLURAL.
EXCLUSÃO X INCLUSÃO.

Flávio Tartuce[1]


O Brasil vive, no presente momento, um grande conflito ideológico e, como não poderia ser diferente, tal colisão atinge não só os aplicadores do Direito como também os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, especialmente em temas condizentes aos costumes e à família. Como exemplo desse embate, pode ser citada a tramitação de dois projetos de lei a respeito do conceito de família no Congresso Nacional.  
O primeiro deles, na Câmara dos Deputados, intitulado Estatuto da Família (PL 6.583/2013), no singular, pretende restringir o conceito de família aos casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres e seus filhos. Nos termos do seu art. 1º, "esta Lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar". Em complemento, enuncia a proposta de art. 2º da norma que "para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
 A outra projeção é o Estatuto das Famílias (PL 470/2013), no plural, em curso no Senado Federal, originário de proposta formulada pelos juristas que compõem o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e que, em vários de seus dispositivos, traz um conceito extensivo de família.  Cite-se, entre tantas regras, a proposta de conceito de união estável constante do seu art. 61, in verbis: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Como se nota, a proposta menciona a união de duas pessoas, não obrigatoriamente homem e mulher.
Acompanhando os debates que ocorrem na Câmara dos Deputados, e diante do momento que vive o País, o Projeto de Lei n. 6.583/2013 tem grandes chances de ser aprovado. Se isso ocorrer, não persistindo eventual veto da Presidência da República, dois são os caminhos interpretativos para a citada projeção.
O primeiro deles é o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Ora, é sabido que o Supremo Tribunal Federal concluiu que a união homoafetiva é entidade familiar protegida pela Constituição Federal, devendo ser aplicadas, por analogia, todas as regras previstas para a união estável heteroafetiva (julgado na ADPF 132/RJ, publicado no Informativo n. 625 da Corte, de maio de 2011). Em complemento, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, logo após, que é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consequência natural da decisão do Supremo, pois se todas as normas são aplicáveis por analogia, o mesmo deve ser dito quanto à conversão da união estável ao casamento, retirada do art. 1.727 do Código Civil (REsp. 1.183.378/RS). Conforme o voto do Ministro Luis Felipe Salomão nesse acórdão, proferido em outubro de 2011, “é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os diplomas superados – deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da pessoa humana. Por isso, não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade”.
Todas essas decisões fizeram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editar, em 2013, a Resolução n. 175, que veda às autoridades competentes, caso dos responsáveis pelos Cartórios de Registro Civil de todo o País, a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Em suma, o casamento homoafetivo transformou-se em realidade prática do Direito Brasileiro.
No âmbito da doutrina do Direito de Família, para demonstrar qual a corrente majoritária hoje prevalecente, pontue-se que, na VII Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, aprovou-se enunciado segundo o qual é existente e válido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Cabe esclarecer que desse evento participaram juristas com as mais variadas visões sobre o Direito de Família e, mesmo assim, a proposta aprovada conseguiu ampla maioria, o que demonstra uma sedimentação doutrinária a respeito do tema no País.  
O citado Estatuto da Família, no singular, desconsidera toda essa evolução. Sim, evolução, pois a tendência dos países ocidentais é a inclusão dos direitos civis de casais homossexuais, sem que isso represente qualquer afronta ou ofensa aos direitos das pessoas que pretendem ter uniões heteroafetivas. Nessa perspectiva, o projeto já soa totalmente inconstitucional. 
Mas não é só. O art. 2º do Projeto de Lei n. 6.583/2013 é inconstitucional por desconsiderar o conceito de família monoparental previsto no art. 226, § 4º, do Texto Maior, constituída por um dos ascendentes e seus descendentes. Como antes se transcreveu, a projeção limita a família aos pais que vivem com seus filhos, deixando de fora as famílias monoparentais existentes entre avós e netos.
Sem falar em outras entidades que também não foram contempladas, caso das famílias mosaico – de várias origens, oriundas de famílias reconstituídas – e das famílias anaparentais (na expressão criada por Sérgio Resende de Barros) – famílias sem pais, formadas por irmãos ou primos que vivem juntos, com intuito comunitário familiar.
Sabe-se, conforme os escritos de vários constitucionalistas nacionais, que a Constituição Federal Brasileira de 1988 é inclusiva, e não exclusiva, afirmação que merece especial atenção quanto tópico que regulamenta as entidades familiares em rol meramente exemplificativo (art. 226). Assim, não pode uma lei infraconstitucional limitar o texto superior na concessão de direitos civis sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Vale dizer, em complemento, que a Lei Maria da Penha já traz um conceito ampliativo, em seu art. 5º, inciso II, ao estabelecer que a família deve ser compreendida "como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa". Essa é a ideia de família que deve prevalecer na realidade brasileira, na opinião deste articulista, não só para os fins de incidência dessa lei, mas também de outras normas.
De toda sorte, há um segundo caminho para a interpretação do Estatuto da Família, qual seja o de adaptá-lo ao Texto Maior e a toda essa evolução. Por essa ideia, é possível firmar a premissa segundo a qual o projeto de lei apenas exemplifica algumas formas de família, sem excluir outras, caso de todas as entidades aqui citadas. Se for assim, nosso Congresso Nacional perde precioso tempo de trabalho legislativo, pois as famílias ali previstas já estão amplamente tuteladas, especialmente por serem maioria no Brasil.
Pensamos que o trabalho a ser desenvolvido é de proteção de outras constituições famílias, como propõe o Estatuto das Famílias, no plural; e não o Estatuto da Família, no singular. A inclusão deve prevalecer sobre a exclusão, pois esse é o sentido da nossa Lei Maior. Como palavras finais, vale lembrar que a Constituição Brasileira veda a discriminação no seu art. 5º, além de valorizar a dignidade da pessoa humana no seu dispositivo inaugural. A projeção no singular deixa esses valores de lado.







[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em Direito. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD – Escola Paulista de Direito, sendo coordenador dos últimos. Professor da Rede LFG. Diretor nacional e estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.

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