quinta-feira, 8 de maio de 2008

TJ/SP. DECISÃO SOBRE ABANDONO MORAL.

Responsabilidade Civil - Dano moral - Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim (TJSP - 8ª Câm. de Direito Privado; Ap com Revisão nº 511.903-4/7-00-Marília-SP; Rel. Des. Caetano Lagrasta; j. 12/3/2008; v.u.).

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes Autos de Apelação Cível com Revisão nº 511.903-4/7-00, da Comarca de Marília, em que é apelante ... sendo apelado ... :
Acordam, em Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão:
"deram provimento ao Recurso, v.u.
Sustentou oralmente o Dr. A.C.R", de conformidade com o voto do Relator, que integra este Acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores Silvio Marques Neto e Joaquim Garcia.
São Paulo, 12 de março de 2008
Caetano Lagrasta
Relator
RELATÓRIO
Trata-se de Ação de Indenização por Danos Morais movida por ... em face de ..., em razão de ter sido abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial.
A r. sentença de fls. 157/162, cujo relatório se adota, julgou improcedente a ação.
Irresignado, apela o autor, alegando que houve cerceamento de defesa, decorrente do julgamento antecipado da lide. No mérito, que houve dano moral, uma vez que seu pai deu tratamento diferenciado aos demais filhos e netos, privando-o do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, o que feriu sua dignidade, além do inegável abandono material a que se viu relegado.
Recurso tempestivo, isento de preparo e respondido (fls. 183/193).
É o relatório.
VOTO
O julgamento preferencial de ações a envolver questões de família foi determinado desde que a cadeira foi assumida por este Relator, em 26/2/2007. Nada obstante, a natureza da causa não foi observada pelo Distribuidor, tendo sido os Autos, indevidamente, remetidos ao acervo.
O Recurso merece ser provido.
Após o reconhecimento da paternidade, evidente que não só o requerente, como seus filhos e netos - desde que comprovada a impossibilidade paterna -, subsidiariamente, podem requerer pensão alimentícia ao avô.
Por outro lado, independe tal concessão do eventual resultado de ação negatória, pelo requerido interposta, após 13 anos do reconhecimento determinado, com trânsito em julgado (fls. 50). Ainda que este, em casos de Família, permita, de acordo com a orientação do C. STF, a relativização da coisa julgada, que se trata de direito indisponível e pode ser perseguido a qualquer tempo, por qualquer dos membros da família atingidos pelo reconhecimento.
Acresce que a possibilidade de indenização por dano moral - neste caso ligada diretamente ao afeto, ao sentimento - há que ser perseguida, como o foi, até agora com resultado negativo. Ou seja, submetido ao exame de DNA, resultou este positivo, julgando-se a Ação improcedente. Alhures, manifestou esta Relatoria opinião no sentido de que: "Nas ações de reconhecimento ou negação de paternidade (em sentido amplo), a condição de culpa, ou dolo, apresenta-se como a de maior intensidade, por recusar-se à paternidade comprovada ou pretender atribuí-la, conscientemente, a pessoa diversa. Vão se tornando comuns as ações que atribuem falsamente, ou por mera vingança, a paternidade. Por outro lado, impedir que o filho (jovem ou adulto) conheça a verdadeira ascendência é fato que se reveste de inegável gravidade, por interferir no futuro do investigante ou de pessoas indiretamente ligadas ao investigado. Nesta hipótese, a falsa imputação pode conduzir à desagregação de outra família, cogitada a presença de adultério. Contudo, definida e aceita a paternidade, seria demasia pretender que respondesse o investigando também por indenização, eis que o excesso levaria à impossibilidade de aproximação e ao completo estremecimento entre genitor e filho". (Revista do Advogado, ano XXVII, nº 91, maio/2007, pp. 28-29). Esta assertiva final não reflete a situação específica, pois que o pai teve oportunidades reiteradas de aproximação, inclusive quando da mudança do filho para aquela Comarca, ou mesmo, o que seria de se esperar, quando do nascimento do neto, em condição de saúde abalada definitivamente. Omitiu-se de forma consciente à responsabilidade, nada obstante tenha sofrido declaração judicial e, hoje, comprovada cientificamente através do exame a que, durante anos, negou se submeter.
Mais a mais, a atitude revestiu-se de dolo, inclusive eventual, ao assumir o resultado e colocar o filho e seus descendentes em posição econômica de vexame, sem contar as agruras de eventuais promessas (cujo teor pode ser extraído do tempo decorrido entre o reconhecimento e a tentativa frustrada de a este renegar).
O dolo, essencial à configuração, neste caso, do nexo de causalidade, deve ser extraído dos fatos de ter o apelante admitido o relacionamento sexual com a mãe do autor, recusando-se a se submeter ao exame de DNA três vezes (fls. 40); por nada opor à inafastável prova testemunhal (fls. 38 e ss.), salvo a mera declaração de haver se submetido à incisão de vasectomia bilateral, recusada expressamente pelo v. Acórdão de fls. 41/49, e nada obstante sua expressiva condição financeira.
Guardadas as devidas proporções com a matéria penal, evidencia-se que o instituto do dolo eventual pode ser aplicado à esfera civil, quando, nesta, há que tratar de dolo, em qualquer dos modos de sua tipologia. Assim, MAURACH observa que: "A expressão 'dolo eventual' é, em si, equívoca. Pode ser entendida como dolo eventual de atuar, ou como dolo não eventual de atuar, unido a uma vontade eventual de resultado. (...) O 'querer eventual' não basta, em momento algum, para constituir o dolo. Se o autor diz a si mesmo 'seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em todo caso eu atuo', existe dolo eventual. Ocorrerá, ao contrário, culpa consciente se o autor se privar da atuação de saber, com certeza, que se produziria o resultado típico" (in Tratado de Derecho Penal, Barcelona, Ediciones Ariel, 1962, fls. 315-316, traduzi). Com meridiana clareza, completa ANÍBAL BRUNO: "diversa é a situação no dolo eventual. Neste, o agente prevê o resultado apenas como provável ou possível, mas, apesar de prevê-lo, age, aceitando o risco de produzi-lo.
O caçador dispara a arma contra o animal que passa em frente a um grupo de árvores onde acaba de penetrar o seu companheiro de caça, prevendo, embora, que esse possa ser atingido pelo projétil. O agente desfecha o tiro na sua vítima, apesar de prever que a bala possa atingir também a criança que ela tem ao regaço. Ao contrário do que ocorre no dolo direto, no eventual, a vontade não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial, que nem sempre é lícito, e o resultado não é representado como certo, mas só como possível. Mas o agente prefere que ele corra a desistir do seu ato. No dolo direto, a vontade e a representação são bem definidas e positivas, isto é, dirigem-se no sentido de um resultado previsto e querido como certo. No dolo eventual, a previsão é de uma possibilidade; e a vontade, em relação ao resultado, se manifesta apenas como a aceitação do possível. Se o ato praticado pelo agente é em si mesmo lícito, como no primeiro exemplo, o fato pode permanecer no domínio da licitude, mas pode penetrar no terreno do ilícito pela ocorrência do resultado punível, que o agente aceita como conseqüência possível do seu comportamento. Malgrado a atenuação dos elementos constitutivos do dolo na forma eventual, sobretudo nos casos em que o ato inicial se apresenta como lícito, a doutrina moderna equipara essa norma ao dolo direto. E assim procede também o nosso Código, reunindo as duas formas na mesma definição do crime doloso" (Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., Forense, Tomo 2º, pp. 73-74).
Essas características bem definem a condição de assumir o resultado naquela esfera, quando o primeiro tratadista observa que: "(...) não se requer que o desejo de realização, processado pelo autor, aponte precisamente para o resultado legal. Ainda quando a meta que o autor persiga não pertença ao resultado legal, deverá ser incluído ao evento típico, por razão do nexo indissolúvel entre fim e meio, na conduta final. Também o resultado não desejável ao autor será objeto da direção final" (ob. cit., fl. 318, traduzi).
Por sua vez, BRUNO admite que "o dolo eventual confina com a culpa. Se o agente, prevendo embora o resultado, espera, sinceramente, que este não ocorra, não se pode falar de dolo, mas só de culpa. É a culpa com previsão ou culpa consciente" (p. 74) e esta é suficiente para estabelecer, na esfera civil, o nexo de causalidade e a conseqüente obrigação de indenizar.
Se o pai não alimenta, não dá amor, é previsível a deformação da prole. Isso pode acontecer, e acontece, com famílias regularmente constituídas.
Não se trata de aferir humilhações no decorrer do tempo. Ninguém é obrigado a amar o outro, ainda que seja o próprio filho. Nada obstante, a situação é previsível, porém, no caso da família constituída, ninguém, só por isso, requer a separação; ocorre que, na espécie, o abandono material e moral é atitude consciente, desejada, ainda que obstada pela defesa do patrimônio em relação aos outros filhos - o afastamento, o desamparo, com reflexos na constituição de abalo psíquico, é que merecem ser ressarcidos, diante do surgimento de nexo de causalidade.
Sobre o assunto, ROLF MADALENO preleciona: "Ninguém poderá afirmar, em sã consciência, que não constitui uma especial gravidade, reprovada pela moral e pelo direito, a atitude do pai que se recusa em reconhecer espontaneamente uma filiação extramatrimonial, que resulta comprovada depois em Juízo. (...) É altamente reprovável e moralmente danosa a recusa voluntária ao reconhecimento da filiação extramatrimonial e, certamente, a intensidade deste agravo cresce na medida em que o pai posterga o registro de filho que sabidamente é seu, criando em Juízo, e fora dele, todos os obstáculos possíveis ao protelamento do registro da paternidade, que, ao final, termina por ser judicialmente declarada. Claramente postergatória do reconhecimento parental, onde o investigado se vale de todos os subterfúgios processuais para dissimular a verdade biológica, fugando-se com esfarrapadas desculpas ao exame pericial genético, ou mesmo, esquivando-se da perícia com notórios sintomas de indisfarçável rejeição ao vínculo de parentesco com filho, do qual tem sobradas razões para haver como seu descendente. Mas, como era dito, falta de reconhecimento do próprio filho engendra, com efeito, um ato ilícito que faz nascer, ao seu turno, o direito de obter um ressarcimento em razão do dano moral de que pode padecer o descendente. Não se apregoa o direito à reparação moral em qualquer investigatória de paternidade extramatrimonial, pela tão-só negativa do pai ao reconhecimento espontâneo, pois que tal atitude permitiria concluir que ao indigitado pai seria vedado exercer qualquer dúvida sobre uma paternidade que lhe fosse atribuída, por conseqüência de alguma relação sexual e de intimidade que ele não desconhecesse, embora pudesse ter dúvidas acerca da exclusividade daquela relação.
A reparação civil, admitida como passível de reparação pelo gravame moral impingido ao investigante, haverá de decorrer daquela atitude. Como ascendente sujeito ao reparo moral, situa-se também aquele que, mesmo depois de apresentado laudo judicial e científico, de incontestável paternidade, ainda assim, prossegue negando guarida ao espírito humano de seu filho investigante, que busca, agudamente, o direito da declaração da sua paternidade, mas que segue seu genitor a privá-lo da identidade familiar tão essencial, e condição de seu crescimento e desenvolvimento psíquico; estes, isentos de sobressaltos e fissuras na hígida personalidade psicológica. Nunca deve ser esquecido, por outro lado, que capacidade civil é meramente requisito para a formação final da personalidade, jamais pressuposto para afirmação do direito à honra". (in O Dano Moral na Investigação de Paternidade, disponível no endereço eletrônico: http://www.rolfmadaleno.com.br/site/index.ph?option=com_content&task=view&id=29&Itemid=39).
Estabelecido o nexo de causalidade entre a ofensa e o abalo psíquico suportado pelo autor, fixa-se a indenização por danos morais no equivalente a 500 salários mínimos regionais, a ser pagos de uma só vez, respeitando-se, desta forma, os parâmetros: pune-se para que não se reitere e observada a condição econômica do agente. É entendimento desta C. Corte (Ap nos 410.796.4/0, 456.716.4/3, 441.092.4/0) que a fixação da indenização no equivalente a salário mínimo dispensa a incidência de correção monetária, ou qualquer outro índice, e condenando-o, ainda, ao pagamento das custas e verba honorária de 15% sobre o valor da condenação.
Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso, nos termos ora alvitrados.
Caetano Lagrasta
Relator

Um comentário:

fabriciolordelo disse...

Professor Tartuce:
vi o vídeo de uma palestra sua na OAB/RS pelo site desta seção sobre Contrato de convivência. Gostei muito, mas agora foi retirado do ar. Como faço para vê-la de novo?
Abraço,
Fabricio Lordelo (fabriciolordelo@ig. com.br).