domingo, 18 de setembro de 2022

REGISTRO FACULTATIVO DA UNIÃO ESTÁVEL. ARTIGO EM COAUTORIA COM CARLOS ELIAS DE OLIVEIRA.

 Registro facultativo da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais : como ficou após a Lei n. 14.382/2022.

Carlos E. Elias de Oliveira

Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral na UnB e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado e parecerista. Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro do STJ. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporânea (RDCC).

Flávio Tartuce

Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Colunista do Migalhas. Autor de obras jurídicas pelo Grupo GEN.

 

Brasília e São Paulo, 15 de setembro de 2022

 

Resumo

1. O art. 94-A da Lei de Registros Públicos (LRP) prevê o registro facultativo da união estável e foi fruto da Lei do SERP (Lei n. 14.382/2022) - Capítulo 1.

2. O art. 94-A da LRP positiva, com alguns ajustes adicionais, o que já era permitido pelo Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), norma que precisará ser atualizada - Capítulo 2.

3. Apesar da atecnia do texto do art. 94-A da LRP, o registro da união estável é uma faculdade, e não um dever, haja vista sua natureza declaratória, extraída da leitura sistemática do referido dispositivo, com o art. 1.723 do CC - Capítulo 2.

4. Cabe ao Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), na qualificação registral do título declaratório de existência de união estável, avaliar se o casal incorre ou não em algum impedimento matrimonial, causa suspensiva ou outro obstáculo ao casamento, observadas as particularidades da união estável, como a viabilidade de pessoas casadas formarem união estável se estiverem separadas. Nesta última hipótese, o registro facultativo só será admitido se a separação estiver devidamente formalizada mediante averbação da separação judicial ou extrajudicial no assento de casamento. Mera separação de fato, sem a devida formalização, impede o registro facultativo da união estável. - Capítulo 3.

5. No caso de o título ser uma sentença declaratória de união estável, a qualificação registral negativa só se justificará se o impedimento matrimonial ou outro óbice jurídico surgir supervenientemente à sentença - Capítulo 3.

6. No caso de causa suspensiva do casamento, o registro da união estável poderá ser feito, com uma advertência, qual seja a de que o regime de bens necessariamente será o da separação legal de bens (arts. 1.641, inc. I, e 1.723, CC) - Capítulo 3.

7. A declaração da união estável deverá ser objeto de ato de registro stricto sensu, ao passo que a extinção da união estável deverá ser objeto de averbação no assento de união estável - Capítulo 4.

8. Os arts. 106 e 107 da Lei de Registros Públicos, que tratam do dever de anotação e de comunicação envolvendo o assento de casamento, devem ser estendidos ao assento de união estável por analogia, tendo em vista a existência de lacuna legislativa - Capítulo 4.

9. Para o registro da declaração da união estável ou para averbação de sua extinção, admitem-se um título judicial - sentença declaratória - ou dois títulos extrajudiciais - escritura pública declaratória lavrada por Tabelião de Notas ou termo declaratório lavrado perante o Registrador Civil das Pessoas Naturais - Capítulo 7.

10. É dispensável a assistência de advogado para os títulos declaratórios existência ou de extinção da união estável - Capítulo 6.

11. O conteúdo do título declaratório de união estável deve conter, no mínimo, as informações essenciais à lavratura do registro. Este, por sua vez, obrigatoriamente deverá conter dados indispensáveis para a identificação: a) da data do registro (art. 94-A, inc. I, da LRP); b) dos envolvidos (art. 94-A, inc. II a IV, da LRP); c) da origem do título (art. 94-A, inc. V e VI, da LRP); d) do regime de bens (art. 94-A, inc. VII, da LRP); e) do novo nome dos companheiros, se for o caso (art. 94-A, inc. VIII, da LRP) - Capítulo 6.

12. O conteúdo do título declaratório da extinção da união estável satisfaz-se com a declaração dos companheiros, acompanhada das informações necessárias à identificação deles. É conveniente, mas não obrigatória, a menção aos dados do assento da união estável - Capítulo 6.

13. É irrelevante, para efeito da averbação da declaração de extinção da união estável, que o título tenha tratado de questões jurídicas conexas, como partilha de bens, alimentos, guarda de filhos, entre outros temas - Capítulo 6.

14. Título judicial ou extrajudicial estrangeiro de declaração de existência ou extinção da união estável envolvendo, ao menos, um brasileiro poderá ser inscrito diretamente no Livro “E” do 1º Ofício de RCPN do domicílio atual de qualquer dos companheiros no Brasil ou do último domicílio que qualquer deles teve no Brasil. O título deverá ser acompanhado de tradução juramentada e de sua legalização ou apostilamento, dispensado seu registro no RTD (art. 94-A, §§ 3º e 4º, da LRP) - Capítulo 7.

15. No caso de título estrangeiro de declaração de “união estável” à luz da legislação estrangeira, o oficial deverá recusar o registro se o instituto estrangeiro de união não puder ser objeto de adaptação lato sensu para o instituto brasileiro correspondente.

16. O registro facultativo de união estável previsto no art. 94-A da LRP deve ser disponibilizado pelos serviços consulares, observados, mutatis mutandi, por analogia, o art. 32 da LRP e outras normas relativas a casamento consular de brasileiro.

 

1. Introdução

Trataremos, neste artigo, do registro facultativo da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN) após o advento da Lei n. 14.382/2022, conhecida como Lei do SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos).

Transcrevemos, desde logo, o art. 94-A da LRP, introduzido pela Lei do SERP, por ser o foco principal do assunto deste texto:

Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar: (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

I - data do registro; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

II - nome, estado civil, data de nascimento, profissão, CPF e residência dos companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

III - nome dos pais dos companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

IV - data e cartório em que foram registrados os nascimentos das partes, seus casamentos e uniões estáveis anteriores, bem como os óbitos de seus outros cônjuges ou companheiros, quando houver; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

V - data da sentença, trânsito em julgado da sentença e vara e nome do juiz que a proferiu, quando for o caso; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VI - data da escritura pública, mencionados o livro, a página e o tabelionato onde foi lavrado o ato; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VII - regime de bens dos companheiros; (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VIII - nome que os companheiros passam a ter em virtude da união estável. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

§ 1º Não poderá ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença judicial transitada em julgado. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

§ 2º As sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, nos quais ao menos um dos companheiros seja brasileiro, poderão ser levados a registro no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que qualquer dos companheiros tem ou tenha tido sua última residência no território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

§ 3º Para fins de registro, as sentenças estrangeiras de reconhecimento de união estável, os termos extrajudiciais, os instrumentos particulares ou escrituras públicas declaratórias de união estável, bem como os respectivos distratos, lavrados no exterior, deverão ser devidamente legalizados ou apostilados e acompanhados de tradução juramentada. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)”.

 

 

2. Natureza declaratória e facultativa do registro da união estável

A união estável é uma situação de fato com efeitos jurídico. Constitui-se com a presença dos requisitos legais fáticos do art. 1.723 do CC, sendo marcada por uma informalidade na convivência more uxorio do casal.

Essa característica de informalidade acaba gerando dificuldades operacionais práticas aos conviventes, especialmente para comprovar essa situação fático-jurídica perante entidades públicas e privadas para diversos efeitos. Citamos, como exemplos, as dificuldades para inserir o companheiro como dependente em plano de saúde ou em entidade previdenciária.

Com o objetivo de atenuar essas dificuldades, mesmo sem previsão legal expressa, o Provimento n. 37/2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) havia autorizado o registro facultativo da sentença ou da escritura pública declaratória de união estável no Livro “E” do 1º RCPN do domicílio dos companheiros (art. 33, parágrafo único, da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6.015/1973).

Esse registro não desfrutava de eficácia constitutiva, porque a constituição da união estável dá-se com a mera presença dos requisitos fáticos do art. 1.723 do CC. A eficácia do registro era apenas declaratória e prestava-se, na prática, a reduzir as dificuldades operacionais dos companheiros em provar a união estável perante terceiros.

O art. 94-A da LRP, introduzido pela Lei do SERP (Lei n. 14.382/2022), finalmente positiva em lei federal o que era permitido no supracitado ato infralegal do CNJ. Mas o faz com alguns ajustes adicionais, o que, inclusive, exigirá que o referido ato do CNJ venha a ser atualizado, na nossa opinião.

À luz da leitura sistemática dos arts. 33, parágrafo único, e 94-A da LRP com os arts. 1.723 e seguintes do Código Civil, podemos descrever o procedimento de registro da união estável. Houve lapsos cometidos pelo legislador do ponto de vista da técnica da redação legislativa, os quais podem ser contornados por meio da interpretação sistemática ora defendida.

Os companheiros têm a faculdade, e não um dever jurídico, de registrarem união estável no Livro “E” do 1º Ofício do RCPN. O motivo é que a união estável se constitui com a presença dos mencionados requisitos fáticos do art. 1.723 do CC e se extingue com o desaparecimento desses mesmos elementos, quais sejam a presença de uma relação pública – notória -, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. O registro lato sensu, portanto, é apenas declaratório. Nesse ponto, a redação do caput do art. 94-A da LRP foi atécnica por não deixar clara essa facultatividade, o que conduz o jurista a ter de lançar mão de uma interpretação sistemática com o art. 1.723 do CC.

3. Qualificação registral: impedimentos matrimoniais, causas suspensivas ou outros obstáculos

Os efeitos jurídicos do casamento devem ser estendidos à união estável, salvo naquilo que for incompatível em razão da natureza informal da união estável. Trata-se de um relativo paralelismo jurídico entre o casamento e a união estável. Essa é a diretriz do nosso ordenamento, à luz da jurisprudência e da doutrina brasileira. A esse propósito, destacamos o Enunciado n. 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, que traz a necessidade de diferenciação dos institutos em suas regras de formalidade ou solenidade: "a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável”.

Por esse motivo, cabe ao RCPN, na qualificação registral do título declaratório de existência de união estável, avaliar se o casal incorre ou não em algum impedimento matrimonial, causa suspensiva ou outro obstáculo ao casamento, observadas as particularidades da união estável. Se houver impedimento matrimonial, o oficial deve negar o registro da união estável. Porém, existem duas ressalvas que merecem ser aqui destacadas.

primeira ressalva é para o caso de impedimento matrimonial ser o fato de um dos companheiros ser casado (art. 1.521, inc. VI, do CC). Nessa hipótese, é preciso lembrar que esse impedimento não inviabilizará a caracterização da união estável na hipótese de esse companheiro casado estar separado de fato (art. 1.723, § 1º, CC).[1] Todavia, como o registro público envolve uma situação de formalidade, o registro facultativo da união estável de pessoa casada só poderá ocorrer se ela estiver “formalmente” separada, seja por meio de uma separação judicial, seja por intermédio de uma separação extrajudicial, tudo devidamente averbado no assento de casamento. Mera separação de fato (sem a devida formalização) impede o registro facultativo. Por essa razão, o § 1º do art. 94-A da LRP autoriza o registro da união estável mesmo se qualquer dos companheiros for casado, desde que a separação esteja devidamente formalizada. Entendemos que, para efeitos de comprovação da separação judicial ou extrajudicial, é necessário comprovar que ela foi averbada no assento de casamento.

segunda ressalva é que, nada obstante a existência de algum impedimento matrimonial, pode ocorrer de um juiz reconhecer a união estável. Por exemplo, um juiz reconhece a união estável entre um genro e uma sogra, apesar de tal situação ser considerada um impedimento patrimonial à luz de uma interpretação literal do art. 1.521, inc. II, CC.[2] Nessa ilustração hipotética, o juiz pode ter adotado alguma interpretação teleológica ou ter seguido outro caminho argumentativo no caso concreto. Nessa situação, é forçoso respeitar a autoridade jurisdicional. Nenhum impedimento matrimonial eventualmente existente antes da data da sentença pode ser invocado como obstáculo à união estável, em respeito à autoridade da coisa julgada.

Não há obrigatoriedade de a sentença ser expressa acerca do afastamento de eventual impedimento matrimonial, seja porque a coisa julgada recai sobre a parte dispositiva da sentença, seja porque a coisa julgada goza de eficácia preclusiva e, assim, faz presumir repelidas qualquer argumento de mérito em contrário (arts. 504 ao 508 do CPC/2015). Somente fatos supervenientes à sentença poderiam ser considerados não alcançados por ela, pois a coisa julgada limita-se ao cenário fático de sua época.

Por isso, entendemos ser cabível o registro da união estável com base em sentença que tenha declarado a existência de uma união estável. É vedado ao oficial recusar-se a esse registro a pretexto da existência de impedimento matrimonial nascido antes da data da sentença. A recusa só poderia ocorrer se o impedimento matrimonial tivesse surgido após a data da sentença declaratória. Imagine, por exemplo, que, após a sentença, um dos companheiros tenha casado com outrem. Nesse caso, não terão os companheiros o direito ao registro da união estável com base na sentença declaratória, pois, após a prolação dessa, surgiu um impedimento matrimonial. Essa é a inteligência do art. 94-A, § 1º, parte final, da Lei de Registros Públicos.

Em havendo causa suspensiva do casamento, em uma das situações descritas no art. 1.523 do Código Civil, o registro da união estável poderá ser feito, com uma advertência, qual seja a de que o regime de bens necessariamente será o da separação legal ou obrigatória de bens (arts. 1.641, inc. I, e 1.723 do CC).[3] Vale pontuar que a jurisprudência superior tem entendido pela aplicação do art. 1.523 do Código Civil também para a união estável. Nesse sentido: “a hipótese em que ainda não se decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02. (...). Determinando a Constituição Federal (art. 226, § 3º) que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, não se pode admitir uma situação em que o legislador, para o matrimônio, entendeu por bem estabelecer uma restrição e não aplicá-la também para a união estável” (STJ, REsp n. 1.616.207/RJ, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 17/11/2020, DJe de 20/11/2020).

Acresça-se que, se o registrador identificar outro óbice jurídico que comprometa a validade ou a eficácia da união estável, cabe-lhe negar o registro. Por exemplo, se um dos companheiros tiver quatorze anos de idade, seria vedada a caracterização de união estável, tendo em vista que a proibição de casamento infantil - o que envolve menor de 16 anos, nos termos do art. 1.520 do Código Civil[4] -, seria extensível à união estável. A exceção é para o caso de o título ser uma sentença judicial declaratória de união estável envolvendo um suposto óbice jurídico existente antes da data dessa sentença, conforme já expusemos acima.

4. Registro, averbação e anotação envolvendo união estável

caput do art. 94-A da LRP prevê o registro lato sensu abrange tanto a declaração da união estável quando a sua extinção. O termo “registro” empregado no referido dispositivo é na sua acepção ampla (lato sensu). Assim, registro lato sensu – que, por vezes, é mencionado também como “inscrição” (ex.: art. 33, parágrafo único, da LRP) – compreende, em regra, três espécies: o registro stricto sensu, a averbação e a anotação.

O registro diz respeito a atos que constituem uma situação jurídico-registral e possuem natureza principal. Já a averbação ostenta natureza acessória, por destinar-se a alterar um registro anterior. A anotação, por fim, serve para lançar remissões recíprocas em diferentes assentos da mesma pessoa, a fim de permitir a notícia atualizada do estado civil da pessoa em qualquer dos seus assentos de registro civil. É o que se retira da Lei de Registros Públicos (arts. 97 ao 108; e art. 246 por analogia) e do Código Civil (arts. 9º e 10).

Do ponto de vista da técnica registral, a declaração da união estável deverá ser objeto de ato de registro stricto sensu, porque cria uma situação jurídico-registral, ou seja, cria um assento de registro civil, qual seja o assento de união estável.

A extinção da união estável, por sua vez, deverá ser objeto de averbação no assento de união estável, pois destina-se a alterar o registro anterior.

A Lei do SERP foi atécnica em termos de redação legislativa, pois convinha que esse detalhamento tivesse sido deixado claro tanto no art. 94-A da LRP quanto em outros dispositivos correlatos - como no art. 100 da LRP e nos arts. 9º e 10 do CC -, o que acabou não ocorrendo.

Além disso, apesar do silêncio do legislador, é forçoso concluir que o registro da declaração de união estável ou a averbação de sua extinção sejam anotados nos assentos anteriores de cada um dos companheiros, como no assento de nascimento.

Igualmente, fatos jurídicos-registrais posteriores - como eventual registro de óbito de qualquer dos companheiros -, devem ser anotados no assento de união estável. Cabe ao registrador promover as comunicações devidas para tanto.

O fundamento é a aplicação analógica dos arts. 106 e 107 da LRP, que tratam desse dever de anotação e de comunicação para o assento de casamento e que, por conta da semelhança, devem ser estendidos para o assento de união estável. A Lei do SERP padeceu de atecnia em termos de redação legislativa por não ter sido expresso nesse ponto.

5. Título inscritível

caput do art. 94-A da LRP indica os títulos inscritíveis no RCPN envolvendo a união estável. Para o registro da declaração da união estável ou para averbação de sua extinção, admitem-se um título judicial e dois títulos extrajudiciais.

O título judicial é uma sentença declaratória. Essa sentença declarará a existência ou a extinção - dissolução - da união estável. Enfatize-se que a sentença tem natureza declaratória, pois a constituição e a desconstituição da união estável dão-se automaticamente com a presença ou o desaparecimento dos tão mencionados requisitos fáticos do art. 1.723 do CC.

Os títulos extrajudiciais podem ser uma escritura pública declaratória ou um termo declaratório. Esses títulos declararão a existência ou a extinção da união estável. Nesse ponto, consideramos atécnica o termo “distrato” utilizado pelo caput do art. 94-A do CC para se referir à extinção da união estável por consenso dos companheiros.[5] Isso, porque não se trata propriamente de um “distrato”, assim entendido o negócio jurídico bilateral por meio do qual as partes, por comum acordo, extinguem um contrato (art. 472 do CC). Cuida-se, na verdade, de um mero ato declaratório de ambos os companheiros declarando que os requisitos fáticos do art. 1.723 do CC desapareceram, o que acarretou automaticamente a extinção da união estável.

A escritura pública declaratória de reconhecimento da união estável ou de sua dissolução é lavrada por qualquer tabelião de notas, de livre escolha dos companheiros (art. 8º da Lei n. 8.935/1994).[6]

O termo declaratório de união estável é a coleta, por escrito, pelo oficial de RCPN, da declaração de ambos os companheiros acerca da existência ou da extinção da união estável.

Como se vê, os companheiros possuem a faculdade de lavrar uma escritura pública perante o Tabelião de Notas ou de comparecer diretamente ao RCPN para que o registrador colha, por escrito, a declaração de existência ou de extinção da união estável.

É intuitivo concluir que as partes haverão de preferir declarar sua vontade diretamente perante o oficial de RCPN, que lavrará o pertinente termo declaratório. Além de menos burocrática, essa via tende a ser menos onerosa. Em princípio, esse ato não geraria o pagamento de emolumentos adicionais àqueles que são cobrados pelo registro da união estável, salvo previsão diversa na pertinente lei de emolumentos.

Isso, porém, não significa que a escritura pública declaratória tenda ao desuso. A expertise técnica do Tabelião de Notas em auxiliar as partes e a eventual preferência dos companheiros na portabilidade de uma escritura parecem-nos elementos indicativos de que muitos casais ainda haverão de lançar mão dos serviços do notário.

6. Conteúdo e dispensa de advogado nos títulos extrajudiciais

Os títulos extrajudiciais (escritura pública declaratória ou termo declaratório) relativos à existência ou à extinção da união estável não dependem da assistência de advogado. Inexiste exigência legal a esse respeito.

No caso de título declaratório da existência da união estável, o seu conteúdo abrangerá, no mínimo, as informações essenciais à lavratura do registro. Este, por sua vez, obrigatoriamente deverá conter dados indispensáveis para a identificação: a) da data do registro (art. 94-A, inc. I, da LRP); b) dos envolvidos (art. 94-A, incs. II a IV, da LRP); c) da origem do título (art. 94-A, incs. V e VI, da LRP); d) do regime de bens (art. 94-A, inc. VII, da LRP); e e) do novo nome dos companheiros, se for o caso (art. 94-A, inc. VIII, da LRP).

No caso de título declaratório da extinção da união estável, entendemos que bastará haver a declaração dos companheiros, acompanhada das informações necessárias à identificação deles, com a qualificação dos declarantes.

Parece-nos ser conveniente que o título mencione expressamente os dados do assento da união estável. A falta dessa menção, porém, não impedirá a averbação desse título nesse assento, pois inexiste exigência legal dessa informação.

Igualmente, não há obrigatoriedade de o título declaratório de extinção da união estável ter tratado de questões jurídicas conexas, como partilha de bens, alimentos, guarda de filhos, entre outrras consequências da dissolução. Além de algumas dessas questões poderem exigir decisão judicial - como a guarda de filhos menores -, inexiste dever legal de todas essas questões serem resolvidas no mesmo ato.

7. Títulos estrangeiros de união estável, problemas de adaptação de direito estrangeiro e casos de atos consulares

Como último tema deste texto, o registro lato sensu do título judicial ou extrajudicial de declaração da existência ou de extinção da união estável pode ser feito mesmo se tiverem sido lavrados no exterior, desde que qualquer dos companheiros seja brasileiro (art. 94-A, § 2º, da LRP). É o caso, por exemplo, de uma escritura pública lavrada perante um notário norte-americano nos EUA envolvendo, ao menos, um brasileiro como companheiro. Nesse caso, essa escritura pública estrangeira poderá ser levada a registro diretamente no Livro “E” do 1º Ofício de RCPN do domicílio atual de qualquer dos companheiros no Brasil ou do último domicílio que qualquer deles teve no Brasil.

Bastará que o título se submeta às seguintes formalidades (arts. 94-A, § 3º, LRP): a) a tradução juramentada; e b) a sua legalização ou, se se tratar de país signatário da Convenção da Apostila, o seu apostilamento. Ademais, especificamente para o efeito de registro da união estável, a tradução desse título estrangeiro não precisará ser registrada no RTD, ao contrário do que sucede com os documentos estrangeiros em geral que serão utilizados para produzir efeitos no Brasil (art. 148, da LRP).[7]. O § 3º do art. 94-A da LRP é norma especial, a afastar a regra geral do art. 148 da LRP.

Alertamos que o registrador precisará estar atento para a natureza jurídica da “união estável” reconhecida no título estrangeiro. Se o título estrangeiro se referir à união estável disciplinada pela legislação brasileira, não haverá obstáculos. Todavia, se se referir à “união estável” da legislação estrangeira, o registrador deverá enfrentar um problema típico de Direito Internacional Privado e conhecido como adaptação lato sensu de direitos estrangeiros. Caberá ao registrador averiguar se a “união estável” da legislação estrangeira pode ou não ser equiparada à união estável da lei brasileira.

Caso a resposta seja negativa, o registrador deve qualificar negativamente o título estrangeiro, ou seja, terá que negar o registro da “união estável estrangeira”.

Por exemplo, a “união de fato” da legislação portuguesa pouca semelhança tem com a união estável brasileira. Em termos sucessórios, por exemplo, a união de fato portuguesa não confere quase nenhum direito ao convivente supérstite. Em um caso como esse de dessemelhança dos institutos, entendemos pela inviabilidade da adaptação lato sensu do direito estrangeiro e, por consequência, entendemos inviável o registro da união estável.

Para aprofundamentos acerca da adaptação de direitos estrangeiros – a qual pode ser feita pelos notários e registradores sem necessidade de decisão judicial, conforme defendido por um dos coautores[8] –, reportamo-nos à tese de doutorado de autoria do primeiro coautor deste texto e que contou com a presença do segundo coautor na banca examinadora: O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos.[9]

Por fim, não se pode confundir a hipótese exposta com a de títulos extrajudiciais lavrados em consulado brasileiro. Os consulados oferecem aos brasileiros que estão no exterior serviços notariais e registrais. Nesses casos, o consulado brasileiro atuará como um “verdadeiro” RCPN ou um Tabelionato de Notas perante o brasileiro que está no exterior. Terá, portanto, se isso for pedido pelo brasileiro, de lavrar escritura pública declaratória de união estável ou colher o termo declaratório de união estável. Terá de registrar a existência ou averbar a extinção da união estável.

Nesse ponto, pecou o legislador em não ter sido explícito sobre essa hipótese. Diante dessa omissão, entendemos que devem ser aplicadas, por analogia, mutatis mutandi, as regras previstas para casamento consular de brasileiro, o que atrairá a incidência do art. 32 da LRP, além de outras normas conexas.[10]


[1] CC/2002. “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2 o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”.

[2] CC/2002. “Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte”.

[3] CC/2002. “Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo”.

[4] CC/2002. “Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”. (Redação dada pela Lei nº 13.811, de 2019).

[5] Lei n. 6.015/1973. “Art. 94-A. Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência, e dele deverão constar”:

[6] Lei n. 8.935/1994. “Art. 8º É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio”.

[7] Lei n. 6.015/1973. “Art. 148. Os títulos, documentos e papéis escritos em língua estrangeira, uma vez adotados os caracteres comuns, poderão ser registrados no original, para o efeito da sua conservação ou perpetuidade. Para produzirem efeitos legais no País e para valerem contra terceiros, deverão, entretanto, ser vertidos em vernáculo e registrada a tradução, o que, também, se observará em relação às procurações lavradas em língua estrangeira.

Parágrafo único. Para o registro resumido, os títulos, documentos ou papéis em língua estrangeira, deverão ser sempre traduzidos”.

[8] Veja este excerto da tese de doutorado de um dos coautores (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese de doutorado apresentado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: https://independent.academia.edu/CarlosOliveira32/Papers. Ano: 2022, p. 266): “Quem fará a adaptação do direito real estrangeiro? Será o decisor nos termos da legislação local. No Brasil, por exemplo, pode ser um notário (ao lavrar uma escritura pública de inventário e partilha), um registrador de imóveis (ao qualificar um título) ou um juiz (ao ser chamado a julgar uma causa). Entendemos que não há necessidade de prévio pronunciamento judicial no Brasil por falta de exigência legal: não há reserva de jurisdição para “traduzir” direitos reais estrangeiros. No máximo, quando se tratar de adaptação stricto sensu, caso inexista consenso entre todos os interessados, pode-se exigir manifestação judicial. Isso, porque cabe ao Judiciário resolver litígios e porque a adaptação stricto sensu tende a alterar o conteúdo das regras internacionais envolvidas para eliminar contradições lógicas”.

[9] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese de doutorado apresentado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em: https://independent.academia.edu/CarlosOliveira32/Papers. Ano: 2022.

[10] Lei n. 6.015/1973. “Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular.Art. 32. Os assentos de nascimento, óbito e de casamento de brasileiros em país estrangeiro serão considerados autênticos, nos termos da lei do lugar em que forem feitos, legalizadas as certidões pelos cônsules ou quando por estes tomados, nos termos do regulamento consular.

§ 1º Os assentos de que trata este artigo serão, porém, transladados nos cartórios de 1º Ofício do domicílio do registrado ou no 1º Ofício do Distrito Federal, em falta de domicílio conhecido, quando tiverem de produzir efeito no País, ou, antes, por meio de segunda via que os cônsules serão obrigados a remeter por intermédio do Ministério das Relações Exteriores. § 2° O filho de brasileiro ou brasileira, nascido no estrangeiro, e cujos pais não estejam ali a serviço do Brasil, desde que registrado em consulado brasileiro ou não registrado, venha a residir no território nacional antes de atingir a maioridade, poderá requerer, no juízo de seu domicílio, se registre, no livro ‘E’ do 1º Ofício do Registro Civil, o termo de nascimento. § 3º Do termo e das respectivas certidões do nascimento registrado na forma do parágrafo antecedente constará que só valerão como prova de nacionalidade brasileira, até quatro (4) anos depois de atingida a maioridade. § 4º Dentro do prazo de quatro anos, depois de atingida a maioridade pelo interessado referido no § 2º deverá ele manifestar a sua opção pela nacionalidade brasileira perante o juízo federal. Deferido o pedido, proceder-se-á ao registro no livro ‘E’ do Cartório do 1º Ofício do domicílio do optante. § 5º Não se verificando a hipótese prevista no parágrafo anterior, o oficial cancelará, de ofício, o registro provisório efetuado na forma do § 2º”.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

RESUMO. INFORMATIVO 748 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 748 DO STJ.

TERCEIRA TURMA

Processo

REsp 1.888.863-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 10/05/2022, DJe 20/05/2022.

Tema

Condomínio. Uso exclusivo por um dos coproprietários. Inadimplência. Obrigação indenizatória. Pagamento de aluguel. Natureza propter rem da obrigação. Impenhorabilidade do bem de família. Afastamento.

DESTAQUE

A obrigação do coproprietário de pagar alugueres de imóvel que este utiliza com exclusividade, como moradia por sua família, em favor do outro configura-se como propter rem afastando, assim, a impenhorabilidade do bem de família.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O propósito recursal consiste em definir a possibilidade de penhora de imóvel, em regime de copropriedade, quando é utilizado com exclusividade, como moradia pela família de um dos coproprietários, o qual foi condenado a pagar alugueres devidos em favor do coproprietário que não usufrui do imóvel.

Anota-se, inicialmente, que a obrigação de pagar aluguel por uso exclusivo do bem cumpre o primeiro requisito das obrigações propter rem, pois funda-se em direito real, uma vez que esta Corte assentou como fundamento para a atribuição de responsabilidade pelo uso exclusivo de coisa comum a primazia da posse sobre a forma de exercício da copropriedade.

Como bem disciplinado pelo STJ, a obrigação de indenizar decorre do direito real do devedor, porquanto sem a copropriedade estabelecida na modalidade condominial, a coisa não seria comum. Via de consequência, descaberia falar na antijuridicidade de seu uso que gera o dever de indenização com causa real, a saber, o pagamento de aluguel aos demais condôminos. Assim, é o direito real da posse que fundamenta o dever de indenizar.

É importante deixar consignado que, constituem determinantes da obrigação de natureza propter rem: a vinculação da obrigação com determinado direito real; a situação jurídica do obrigado; e a tipicidade da conexão entre a obrigação e o direito real.

A exigência de tipicidade da obrigação propter rem ocorre para impedir terceiros de criarem novas obrigações e as oporem a titulares de direito real. Neste sentido, a obrigação de indenizar os demais condôminos pelos frutos que se percebe da coisa decorre de previsão legal, instituído no art. 1.319 do Código Civil, na subseção que versa sobre os direitos e deveres dos condôminos. Cumprindo, portanto, com o requisito da tipicidade.

Ademais, a obrigação que se imputa ao coproprietário para indenizar os demais que não dispõe da posse, independe de sua vontade, pois decorre tão somente de sua qualidade de titular de um direito real. Assim, a obrigação do coproprietário de indenizar os demais que não dispõe da posse, independe sua declaração de vontade, porque, decorre tão somente da cotitularidade da propriedade.

O aluguel por uso exclusivo do bem, portanto, configura-se como obrigação propter rem e, por esta razão, enquadra-se nas exceções previstas no art. 3º, IV, da Lei 8.009/90 para afastar a impenhorabilidade do bem de família.

Tal conclusão não decorre de aplicação do entendimento já consolidado neste Superior Tribunal de Justiça de ser a obrigação propter rem fundamento para penhorabilidade do bem de família, ao também já estabelecido dever de pagar aluguel pelo uso exclusivo do bem.

A proteção constitucional da impenhorabilidade do bem de família fundamenta-se na inteligência de proteger o direito do núcleo familiar, que é proprietário do bem e nele reside, contra terceiros credores. Não é esta a situação que se vislumbra na presente hipótese. É indevido, portanto, utilizar-se da Lei 8.009/1990 para prejudicar o direito de condôminos que compartilham dos mesmos direitos e deveres sobre o bem condominial.

Isto, pois, a obrigação de indenizar os demais condôminos por uso exclusivo do bem gera débito oriundo de direito real, configurando-se como uma obrigação propter rem. Nestes termos, admitida a penhorabilidade do bem de família, conforme previsto no art. 3º, IV, da Lei nº 8.009/1990.

Processo

Processo sob segredo de justiça, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 24/05/2022, DJe 31/05/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Regime da comunhão universal de bens. Divórcio. Imóvel doado com cláusula temporária de inalienabilidade. Bem incomunicável. Separação de fato. Termo do regime de bens.

DESTAQUE

Nas hipóteses em que encerrada a convivência more uxorio, mas ainda não decretado o divórcio, o bem gravado com cláusula de inalienabilidade temporária não integra o patrimônio partilhável.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A controvérsia está em definir se é possível a inclusão de imóvel gravado com cláusula de inalienabilidade temporária na partilha de bens no divórcio, em virtude do transcurso do prazo no momento da prolação da sentença.

O caso trata de uma ação de divórcio litigioso, sendo incontroverso que o casamento ocorreu em 20/5/2012, sob o regime de comunhão universal de bens, e que o casal está separado desde março de 2013, sem possibilidade de reconciliação.

Assim, não há dissenso entre as partes quanto à decretação do divórcio, ficando a controvérsia restrita à partilha do bem imóvel, o qual, segundo as premissas estabelecidas pelo Tribunal de origem, foi objeto de doação pelo poder público, com expressa determinação no termo de adesão de que é inadmissível a permuta, cessão, aluguel, venda ou qualquer outra forma de repasse do bem pelo prazo de 10 (dez) anos, a contar da assinatura do termo.

Anota-se que a separação judicial ou extrajudicial extingue a sociedade conjugal (e não o vínculo matrimonial, pois este persiste) em virtude do fim da comunhão de vidas, o que implica a manutenção do impedimento matrimonial, enquanto, de outro lado, faz cessar o regime de bens, o dever de fidelidade recíproca e o dever de coabitação.

Ademais, não se pode descurar da separação de fato, que é uma hipótese informal de dissolução da sociedade conjugal, pois do mesmo modo que o simples fato instaura relação jurídica entre casais, configurando união estável, provoca também a sua extinção.

Relembre-se que a separação de fato não pode ser confundida com uma simples interrupção da coabitação, pois esta pode decorrer, inclusive, de uma necessidade ou conveniência da própria família, como na ausência prolongada de um dos cônjuges em razão do trabalho.

Assim, demonstrada a real existência da separação de fato, imperiosa se torna a aplicação analógica da regra da separação judicial ou extrajudicial prevista no art. 1.576 do CC, motivo pelo qual um dos seus efeitos é exatamente o fim da eficácia do regime de bens. Em razão face disso, o raciocínio a ser empregado nas hipóteses em que encerrada a convivência more uxorio, mas ainda não decretado o divórcio, é o de que os bens adquiridos durante a separação de fato não são partilháveis com a decretação do divórcio.

Dessa forma, considerar como termo final do regime de bens a data da sentença de divórcio poderia gerar situações inusitadas e injustas, já que, durante o lapso temporal compreendido entre o fim da sociedade conjugal e a sentença de divórcio, um dos cônjuges poderia adquirir outros bens com recursos próprios ou até mesmo com o esforço comum de um novo companheiro, mas que seriam incluídos na partilha de bens do relacionamento extinto.

Deve-se ressaltar que o Código Civil elegeu como princípios basilares a socialidade, a operabilidade e a eticidade, abandonando a visão excessivamente patrimonialista e individualista da lei civil anterior, mas que não podem ser utilizados para fundamentar a derrotabilidade da norma e justificar situações contra legem.

Na hipótese dos autos, a separação de fato se deu em março de 2013, quando ainda vigorava a cláusula de inalienabilidade e, consequentemente, o imóvel doado não integrava o patrimônio do casal, de modo que a sua incomunicabilidade deve ser reconhecida, com a exclusão do bem da comunhão, conforme determina o art. 1.668, I, do CC.

Por fim, destaca-se que o fato de o imóvel ter sido doado em 2006 e o termo de adesão registrado em cartório apenas em 2009 não altera a conclusão acima, pois, independentemente da data que se adote como termo inicial para cômputo do lapso temporal da cláusula de inalienabilidade, o prazo decenal não teria se verificado ao tempo da separação de fato.

Processo

REsp 1.962.674-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 24/05/2022, DJe 31/05/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Retificação de registro civil. inclusão do patronímico para fazer homenagem à avó materna. Impossibilidade.

DESTAQUE

A simples pretensão de homenagear um ascendente não constitui fundamento bastante para configurar a excepcionalidade que propicia a modificação do registro.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O propósito recursal consiste em verificar a existência de reformatio in pejus em virtude da declaração da nulidade da integralidade da sentença, mesmo em relação às matérias que não foram devolvidas na apelação, e definir se é possível a retificação do registro público para inclusão do sobrenome da avó materna.

No tocante à retificação do registro público, importante destacar que o nome é um dos direitos expressamente previstos no Código Civil como um sinal exterior da personalidade (art. 16 do CC), sendo responsável por individualizar seu portador no âmbito das relações civis e, em razão disso, deve ser registrado civilmente como um modo de garantir a proteção estatal sobre ele.

Assim, o direito ao nome está ligado a seu aspecto público dado pelo registro de pessoas naturais, segundo o qual o Estado determina limites para os nomes e seus elementos constitutivos, tal como a obrigatoriedade de conter ao menos um prenome e um nome (sobrenome).

Por conseguinte, a legislação de regência consagra o princípio da imutabilidade do nome, de maneira que o prenome e nome são, em regra, imutáveis, a fim de garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas, pois, do contrário, a individualização e a certeza sobre quem se fala seriam temerárias.

Contudo, esta Corte vem evoluindo sua interpretação sobre o tema a fim de se adequar à nova realidade social e de tentar acompanhar a velocidade de transformação das relações jurídicas, passando a entender que o tema está inserido no âmbito da autonomia privada, apesar de não perder seu aspecto público, haja vista que somente será admissível a retificação quando não se verificar riscos a terceiros e à segurança jurídica.

Nessa toada, "conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem a atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros" (REsp 1.873.918/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/3/2021, DJe 4/3/2021).

Desse modo, destaca-se que o nome de família tem como escopo identificar a qual família pertence a pessoa, isto é, faz com que a pessoa sinta-se pertencente a determinada família, como membro integrante dela.

Contudo, não se pode descurar do fato de que o sobrenome não tem a função de estreitar vínculos afetivos com os membros da família, pois sua função primordial é revelar a estirpe familiar no meio social e reduzir as possibilidades de homonímia, haja vista que, nos termos do art. 54 da Lei de Registros Públicos, o registro de nascimento contém os nomes dos pais e dos avós. Esse entendimento foi adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.731.091/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/12/2021, DJe 17/02/2022.

Em face dessas considerações, nota-se que o recorrente não logrou êxito em comprovar a existência de justo motivo para se viabilizar a inclusão pretendida, sobretudo porque a simples homenagem à sua avó não constitui fundamento bastante para configurar a excepcionalidade que propicia a modificação do registro, já que não há na lei a previsão de que sentimentos íntimos sejam suficientes para alterar a qualidade imutável do nome, não sendo essa a função exercida pelo sobrenome.

Processo

REsp 1.962.674-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 24/05/2022, DJe 31/05/2022.

Ramo do Direito

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Tema

Retificação de registro civil. Homônimo que responde a processo criminal. Situação vexatória, humilhante e constrangedora. Advogado atuante na área criminal e professor universitário. Justo motivo configurado.

DESTAQUE

A existência de um homônimo que responde a processo criminal, ainda que em outro estado da federação, pode ensejar um constrangimento capaz de configurar o justo motivo para fundamentar a inclusão de patronímico.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Incialmente, cumpre acentuar que uma das reais funções do patronímico é diminuir a possibilidade de homônimos e evitar prejuízos à identificação do sujeito a ponto de lhe causar algum constrangimento.

A mera existência de homonímia não é argumento suficiente para determinar a retificação do registro civil, sendo imprescindível a demonstração de que o fato impõe ao sujeito situações vexatórias, humilhantes e constrangedoras, que possam atingir diretamente a sua personalidade e sua dignidade.

Na espécie, a Corte estadual consignou que há efetivamente um caso de homonímia, que é réu em um processo criminal.

Deve-se destacar que o recorrente é advogado atuante na área criminal e professor universitário de direito processual penal, de modo que a existência de um homônimo que responde a processo criminal, ainda que em outro estado da federação, pode ensejar um constrangimento capaz de configurar o justo motivo para fundamentar a inclusão do patronímico pretendido.

Vê-se que a possibilidade de um potencial cliente do advogado fazer uma consulta em sites de buscas na internet sobre profissional e encontrar o seu nome vinculado a processo criminal pode causar um embaraço que atinge diretamente sua imagem e sua reputação, configurando motivo bastante para justificar a retificação do registro.

Ademais, a própria Magistrada de primeiro grau, que possui uma maior proximidade com os fatos, reconheceu que a existência de homônimo estaria gerando constrangimentos ao autor.

Outrossim, importante relembrar que, por se tratar de um procedimento de jurisdição voluntária, o Juiz não é obrigado a observar o critério da legalidade estrita, conforme dispõe o art. 723, parágrafo único, do CPC/2015, podendo adotar no caso concreto a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, por meio de um juízo de equidade, o qual, na espécie, demanda reconhecer a possibilidade de retificação do registro.

Repise-se que, malgrado o caráter público que envolve a questão, o atual entendimento desta Corte vem se inclinando para entender que a retificação do nome está inserida no âmbito da autonomia privada, sendo que, na espécie, além de afastar o constrangimento suportado pelo requerente, não há nenhuma ofensa à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas, já que haverá tão somente a inclusão do sobrenome da avó materna do autor, sem exclusão de nenhum outro patronímico.

QUARTA TURMA

Processo

REsp 1.698.997-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/08/2022.

Ramo do Direito

DIREITO BANCÁRIO, DIREITO FALIMENTAR

Tema

Contrato garantido por hipoteca. Constrição do bem dado em garantia. Insuficiência. Pedido de falência. Cabimento.

DESTAQUE

Em contrato garantido por hipoteca, a efetivação de penhora sobre o bem dado em garantia, por si só, não impede que o credor requeira a falência do devedor com fundamento no art. 94, II, da Lei n. 11.101/2005.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A controvérsia cinge-se em determinar se, em contrato garantido por hipoteca, o credor pode requerer a falência do devedor caso reconhecida a insuficiência do bem dado em garantia.

O Tribunal de origem considerou que, em contrato garantido por hipoteca, não é possível ao credor requerer a falência do devedor, mas somente a constrição do imóvel hipotecado. Ponderou-se que, no presente caso, o bem hipotecado foi "tido por idôneo pelas instituições financeiras credoras, cujo zelo e rigor na avaliação da idoneidade de garantias contratuais dispensam comentários".

Não é essa, todavia, a melhor interpretação para o dispositivo.

O bem hipotecado é sujeito a vicissitudes que podem alterar de modo substancial o seu valor de mercado. Além disso, a evolução da dívida em face do prolongado inadimplemento do devedor, em cotejo com a inequivalente valorização do bem, são circunstâncias que devem ser consideradas. Note-se que o Código Civil prevê a possibilidade de vencimento antecipado da dívida à luz dessa realidade.

Sem qualquer descompasso com esse silogismo, o art. 655, § 3º, do CPC/1973 (com a redação da Lei n. 11.382/2006) não previu que a penhora deveria recair obrigatoriamente sobre o bem hipotecado. Apenas estabelecia que a constrição incidiria, "preferencialmente", sobre o bem dado em garantia.

A jurisprudência do STJ, seja interpretando a norma do art. 655, § 1º, do CPC/1973, seja interpretando o art. 835, § 3º, do CPC/2015 - que corresponde àquele -, em conformidade com o princípio da maior efetividade da execução, entende que a determinação legal de que a penhora incida sobre o bem hipotecado tem natureza "relativa, devendo ser afastada tal regra quando constatada situação excepcional, notadamente se o bem dado em garantia real se apresenta impróprio ou insuficiente para a satisfação do crédito da parte exequente" (AgInt no REsp n. 1.778.230/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 19/11/2019).

Em tal contexto jurídico, a efetivação de penhora sobre o bem hipotecado, por si, não impede que o credor hipotecário, exequente, requeira a falência do devedor com fundamento no art. 94, II, da Lei n. 11.101/2005. Isso porque, se o referido bem, atualmente, não for suficiente para quitar a dívida - inexistindo pagamento, depósito ou ainda a indicação de outros bens à penhora, pelo devedor -, estará caracterizada a execução frustrada disciplinada no referido dispositivo.

A inidoneidade do bem penhorado - ainda que objeto de garantia real - pode revelar-se em momento ulterior ao da constrição ou da hipoteca, o que deve ser aferido pelo juiz para avaliar a suficiência da garantia durante todo o trâmite processual, bem assim para fundamentar o decreto de falência do devedor com amparo no art. 94, II, da Lei n. 11.101/2005.

Sob esse enfoque, a legislação processual determina a penhora de tantos bens quantos bastem para o pagamento da dívida total - principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios (arts. 659, caput, do CPC/1973 e 831 do CPC/2015) -, e permite a substituição do bem penhorado quando infrutífera a alienação judicial (arts. 656, VI, do CPC/1973 e 848, VI, do CPC/2015), outrossim admitindo que a penhora seja ampliada ou transferida após a avaliação para bens mais valiosos quando o valor dos penhorados for inferior ao respectivo crédito (arts 685, II, do CPC/1973 e 874, II, do CPC/2015).

Processo

Processo em segredo judicial, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 23/08/2022, DJe 31/08/2022.

Ramo do Direito

DIREITO CIVIL

Tema

Responsabilidade civil. Ação de indenização por danos morais. Direito de informação, expressão e liberdade de imprensa. Ausência de configuração do dano moral. Exercício regular do direito de informação.

DESTAQUE

A utilização de fotografias que servirem tão somente para ilustrar matéria jornalística sobre fato ocorrido e narrado pelo ponto de vista do repórter não constitui, per se, violação ao direito de preservação de imagem ou de vida íntima e privada de outrem, não havendo que se falar em causa para indenização por danos morais.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A análise acerca da ocorrência de abuso no exercício da liberdade de expressão a ensejar reparação por dano moral deve ser feita no caso concreto, pois, em tese, sopesados os valores em conflito, é recomendável que se dê primazia à liberdade de informação e de crítica, como decorrência da vida em um Estado Democrático.

De acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, publicações que narrem fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, a princípio, não configuram ato ilícito.

A notícia veiculada na revista expressa o pensamento da repórter sobre fato ocorrido durante a cobertura de evento do qual participavam vários famosos, o que, a toda evidência, gera o interesse do público que consome esse tipo de notícia.

Nessa perspectiva, apesar da utilização de opiniões severas e irônicas, a publicação narrou fato ocorrido e que, inclusive, estava sendo apurado criminalmente pela autoridade policial, de modo que sua divulgação, ainda que somente sob o ponto de vista de uma das partes, não demonstra, inequivocamente, o intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa.

Isso porque "A liberdade de informação diz respeito a noticiar fatos, e o exercício desse direito apenas será digno de proteção quando presente o requisito interno da verdade, pela ciência da realidade, que não se exige seja absoluta, mas aquela que se extrai da diligência do informador, a quem incumbe apurar de forma séria os fatos que pretende tornar públicos" (REsp 1.897.338/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 05/02/2021).

Com base nessas considerações, conclui-se, portanto, que a utilização de fotografias serviu tão somente para ilustrar a matéria jornalística sobre fato ocorrido e narrado pelo ponto de vista da repórter, e de interesse do público-alvo do veículo de comunicação, tratando-se, na hipótese, de exercício regular do direito de informação, de modo que não constitui, per se, violação ao direito de preservação de sua imagem ou de sua vida íntima e privada, não havendo que se falar em causa para indenização por danos patrimoniais ou morais à imagem.

Processo

REsp 1.583.430-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 23/08/2022.

Ramo do Direito

DIREITO DO CONSUMIDOR, DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO BANCÁRIO

Tema

Ação Civil Pública. Abusividade contratual. Viabilidade. Demonstração dos fatos constitutivos mediante apresentação ou indicação de início de prova. Necessidade.

DESTAQUE

É inviável o ajuizamento de ação coletiva, que tenha como causa de pedir abusividade contratual, sem que seja colacionado aos autos uma única prova documental.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A controvérsia cinge-se a determinar se é viável o ajuizamento de ação civil pública apontando abusividade contratual, sem que seja colacionado aos autos um único contrato, extrato, recibo de pagamento ou documento equivalente que indique a cumulação da cobrança de comissão de permanência com outros encargos.

É bem de ver que o direito processual coletivo, com base constitucional e legal (Lei n. 8.078/1990, Código de Defesa do Consumidor; e Lei n. 7.347/85, Lei de Ação Civil Pública), possui inegável vertente instrumentalista, afirmada pela disponibilização de institutos eficazes de garantia da ordem jurídica justa. Dessa feição plural do direito, própria do processo coletivo, sobressai a ideia de solidariedade, que impõe a transformação do modelo clássico de legitimação processual ativa, inadequado à regulação dos conflitos de grupos e coletividades.

A tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, em que pese tratar-se de clássicos direitos subjetivos divisíveis e disponíveis, justifica-se em razão da prevalência das questões comuns (homogeneidade) e da superioridade em termos de eficácia e de justiça.

Segundo a doutrina, distinguem-se duas ordens de tutela coletiva: 1ª) a dos interesses e direitos essencialmente coletivos (que se enquadrariam nos difusos, segundo o critério do CDC) e dos coletivos "propriamente ditos" (os coletivos do CDC), e 2ª) a dos interesses ou direitos de natureza coletiva apenas na forma em que são tutelados (correspondendo aos direitos individuais homogêneos). Nessa categoria de direitos, embora direitos subjetivos tradicionais (divisíveis e patrimoniais), passíveis, portanto, de atenção individualizada, seu tratamento coletivo se justifica em razão da conveniência dos interesses da coletividade, dada a repercussão e a dimensão marcadamente sociais.

O modelo de tutela coletiva doméstico inspirou-se nas class actions for damage norte-americanas, cuja admissibilidade, na tutela dos direitos individuais homogêneos, requer o cumprimento obrigatório de dois pressupostos, a saber: 1) prevalência das questões comuns de fato e de direito, ou teríamos um direito heterogêneo; e 2) superioridade, em eficácia e justiça, da tutela coletiva.

Concomitantemente, o processo civil brasileiro é regido pela teoria da substanciação do pedido, de modo que a causa de pedir constitui-se não pela relação jurídica afirmada pelo autor, mas pelo fato ou complexo de fatos que fundamentam a pretensão que se entende por resistida.

O Juiz goza de liberdade, dentro dos limites fáticos aportados no processo, para a aplicação do direito, sob o enquadramento jurídico que entender pertinente. Ao qualificar os fatos trazidos ao seu conhecimento, o magistrado não fica adstrito aos fundamentos apresentados pelas partes, em observância ao brocardo da mihi factum dabo tibi ius.

Consoante leciona a doutrina especializada, há uma diferença tênue, de natureza quantitativa, na formulação da causa de pedir na demanda coletiva. Enquanto numa ação individual é factível que a substanciação desça a minúcias do fato, que não inerentes à própria relação jurídica de cunho material e individual, isto não se verifica com tamanho rigor na demanda coletiva, onde a substanciação acaba tornando-se mais tênue, recaindo apenas sobre aspectos mais genéricos da conduta impugnada na ação.

Mesmo nas ações em defesa de interesses individuais homogêneos: basta a descrição da conduta genericamente, o dano causado de forma inespecífica, e o nexo entre ambos, sendo impossível a especificação da narrativa com relação a cada um dos possíveis lesados. A descrição fática deve ser formulada no limite da suficiência para a demonstração da situação material mais ampla, decorrente da própria essência dos interesses metaindividuais.

O § 1º do art. 373 do CPC/2015 estabelece que, nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído, já o § 2º elucida que a decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. Nessa acepção, o art. 373 do CPC é um indicativo para o juiz livrar-se do estado de dúvida e decidir o mérito da questão. Tal dúvida deve ser suportada pela parte que tem o ônus da prova. Se a dúvida paira sobre a a alegação de fato constitutivo, essa deve ser paga pelo demandante tendo o juiz de julgar improcedente o seu pedido, ocorrendo o contrário em relação às demais alegações de fato.

É imperioso observar também que, a par dessas disposições legais mencionadas, não se pode descuidar de uma interpretação sistemática, pois o art. 370, caput, do CPC estabelece também que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.

Malgrado o art. 6º, VIII, do CDC preveja a inversão do ônus da prova para facilitação da defesa, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor não exime o autor do ônus de apresentar prova mínima dos fatos constitutivos de seu direito. Precedentes. (AgInt no AREsp n. 917.743/MG, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 8/5/2018, DJe de 18/5/2018).

Portanto, como regra de instrução, o ônus da prova destina-se a iluminar o juiz que chega ao final do procedimento sem se convencer sobre as alegações de fato da causa.

Admite-se a existência do aspecto relativo ao ônus subjetivo da prova, voltado à atividade das partes, orientando-as quanto à produção dos elementos de convicção necessários a seu êxito. Mas o ônus objetivo ganha em importância quanto á definição da demanda, sendo este seu significado mais evidente e importante, referindo-se ao magistrado.

No âmbito do processo coletivo, as situações jurídicas discutidas são complexas, envolvendo direitos essencialmente coletivos, no qual a titularidade pertence a uma coletividade, ou direitos individuais homogêneos, onde existe um grande número de lesados.

Assim, a produção da prova nestes casos se afigura dificultosa, uma vez que em muitas situações é impossível demonstrar a lesão aos sujeitos individuais, ou mesmo inviável diante do grande número de sujeitos eventualmente lesados, sendo recorrente e válida a utilização como meio de prova da amostragem (a partir da prova de um fato ou de alguns fatos selecionados de um conjunto comum, formula-se um raciocínio indutivo no qual se pressupõe que uma vez demonstrada determinada situação para os objetos selecionados, esta também se repetirá para os demais componentes do conjunto).