quinta-feira, 16 de maio de 2019

COMENTÁRIOS BREVES ÀS ALTERAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL PROMOVIDAS PELA MP 881/2019 (PARTE 1.). ARTIGO DO PROFESSOR MAURÍCIO BUNAZAR.

COMENTÁRIOS BREVES ÀS ALTERAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL PROMOVIDAS PELA MEDIDA PROVISÓRIA 881/2019 (Parte 1.)
“E a primeira de todas as ciências, a ciência da jurisprudência, orgulho do intelecto humano que, com todos os seus defeitos, redundâncias e erros, é a razão acumulada dos séculos, combinando os princípios da justiça original com a infinita variedade das preocupações humanas (...)”. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução na França.
Maurício Bunazar[1]
A medida provisória 881/2019 (que passou a ser conhecida como MP da Liberdade Econômica) alterou sensivelmente o direito positivo brasileiro, com a finalidade declarada – e louvável – de proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividades econômicas (artigo 1º da MP).
A MP da Liberdade Econômica positiva regras que inequivocamente são importantes para a proteção e concretização da garantia constitucional de livre iniciativa. Cito, por todas, a contida no artigo 5º, a qual impõe a realização de análise prévia de impacto regulatório sempre que houver propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal.
A análise prévia de impacto regulatório tenderá a proteger o empresário e, consequentemente, o consumidor contra atos normativos regulatórios que, na melhor das hipóteses, muitas vezes são meramente simbólicos, mas que, não raramente, visam a atender interesses pouco republicanos.
No entanto, embora julgue que a MP tenha muitas mais qualidades do que defeitos, algumas das alterações que ela promoveu no Código Civil merecem críticas, seja porque não foram propriamente técnicas, seja porque podem causar grave insegurança no mercado, algo que é de todo inconveniente para a livre iniciativa e para o livre exercício da atividade econômica.
Neste primeiro texto, passo a uma análise muitíssimo breve das alterações promovidas pela MP no regime jurídico da desconsideração da personalidade jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica consiste na imposição de ineficácia, temporária e relativa, da personalidade jurídica da pessoa jurídica de modo a possibilitar que o patrimônio de sócios e/ou administradores da pessoa jurídica responda por obrigações que ordinariamente seriam dela ou que ela venha a responder por obrigações que seriam de seus sócios e/ou administradores.
A desconsideração da personalidade jurídica, que sempre deve ser excepcional, tem por requisito necessário a caracterização do abuso da personalidade jurídica. Antes mesmo de o direito positivo disciplinar a desconsideração da personalidade jurídica, a doutrina apontava não só a excepcionalidade da medida, mas a necessidade de vir fundamentada na deturpação da personalidade jurídica[2].
Por deturpação, pode-se, com Lamartine Corrêa de Oliveira, entender a instrumentalização da personalidade jurídica para que atenda a propósitos que não os próprios. O autor ensina que “os problemas ditos de ‘desconsideração’ envolvem frequentemente um problema de imputação. O que importa basicamente é a verificação da resposta adequada à seguinte pergunta: no caso em exame, foi realmente a pessoa jurídica que agiu, ou foi ela mero instrumento nas mãos de outras pessoas, físicas ou jurídicas?”[3].
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o sistema jurídico brasileiro passou a contar com uma disciplina geral da desconsideração da personalidade jurídica, aplicável a todo direito privado de forma direta ou subsidiária.
O Código Civil disciplina a desconsideração da personalidade civil em seu artigo 50, cuja redação original era a seguinte:
"Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".
A MP alterou o texto do artigo 50 e também incluiu nele parágrafos e incisos. A alteração do caput do artigo 50 consistiu na imposição de limite subjetivo ao alcance da desconsideração da personalidade jurídica. A partir da entrada em vigor da MP, somente podem ser patrimonialmente responsabilizadas as pessoas que, direta ou indiretamente, beneficiaram-se do abuso da personalidade jurídica.
Embora reconheça que a limitação subjetiva imposta pela MP implique maior dificuldade para a aplicação da norma – afinal o requerente terá de demonstrar em maior ou menor medida quem foi beneficiado pelo abuso –, entendo que a alteração traz, sim, incremento de segurança no exercício da atividade empresária ao imunizar contra os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica aqueles sócios que, por qualquer razão, não tenham meios de influenciar a administração da pessoa jurídica e tampouco hajam obtido qualquer benefício com a prática abusiva[4].
Os parágrafos acrescentados ao artigo 50 podem ser agrupados da seguinte forma: os parágrafos 1º, 2º e 5º buscam delimitar o sentido das expressões desvio de finalidade e confusão patrimonial; os parágrafos 3º e 4º, especificar o alcance da desconsideração, respectivamente, para reafirmar a possibilidade da chamada desconsideração inversa e para evitar que o reconhecimento da existência de grupo econômico implique, por si só, a desconsideração da personalidade jurídica. Ressalva feita ao estilo da redação, os parágrafos 3º e 4º não me parecem merecedores de críticas, razão pela qual passo à análise dos parágrafos 1º, 2º e 5º.
As pessoas jurídicas têm em seu substrato um aspecto teleológico (consistente em seu propósito ou finalidade)[5] que serve de norte para as suas atividades e, consequentemente, de parâmetro para a identificação de comportamentos desviantes.
São os comportamentos desviantes qualificados normativamente como caracterizadores de abuso da personalidade jurídica que justificam sua desconsideração. Na redação original do Código Civil, o codificador se valeu de conceito jurídico indeterminado para descrever o suporte fático da desconsideração (abuso da personalidade jurídica) e, por isso, optou por delimitar sua caracterização, ainda que por meio de outros dois conceitos jurídicos indeterminados (desvio de finalidade e confusão patrimonial).
A doutrina e a jurisprudência, em verdadeira retroalimentação[6], cuidaram de delimitar com precisão satisfatória o que se entendia por desvio de finalidade e por confusão patrimonial, de modo que a indeterminação dos conceitos utilizados pelo legislador não pode, com honestidade científica, ser apontada como fonte de decisões judiciais contraditórias e, por isso, de insegurança jurídica.
A MP, ao menos com relação ao conceito de desvio de finalidade, não procurou diminuir a indeterminação de seu significado, mas sim alterá-lo. A caracterização do desvio de finalidade que, até então era objetiva, passou a depender da demonstração do dolo de lesar credores e de praticar atos ilícitos. Embora não concorde com a afirmação de que a prova do dolo seja quase impossível[7] – a prova será feita por meio da análise das circunstâncias do caso e por meio das máximas de experiência, como em regra é feita nos casos em que a norma tem o dolo em seu suporte fático –, entendo que a exigência é desarrazoada seja porque a intenção de fraudar e de praticar atos ilícitos é acidental ao desvio de finalidade, seja porque, de fato, torna a sua caracterização injustificadamente mais difícil, prestigiando não o livre mercado, mas o empresário imprudente e descompromissado com as práticas da gestão responsável. O § 5º, que por razões sistemáticas deveria estar junto ao § 1º, dispõe que não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica, em outras palavras, dispõe que o desvio de finalidade não constitui desvio de finalidade. De todas as alterações do Código Civil promovidas pela MP, talvez essa tenha sido a mais desastrada (ou desastrosa).
É uma alteração ruim não só porque nega a própria ideia de desvio de finalidade, mas principalmente porque legitima a prática desleal e irresponsável de exercer atividades estranhas ao objeto social, violando o dever de informação que é corolário elementar da boa-fé objetiva. Qual segurança se terá em investir em uma sociedade empresária se nunca se saberá com segurança qual o seu efetivo objeto social? Como aferir os riscos de determinado empreendimento se, a qualquer momento, um controlador aventureiro poderá alterar radicalmente o campo de atuação da sociedade?
Se é lugar comum afirmar que a segurança jurídica é pressuposto para um mercado saudável em que se prestigia a livre iniciativa, receio que logo passe a ser lugar comum afirmar a inconveniência do § 5º do artigo 50.
Quanto ao § 2º do artigo 50, a MP optou por descrever fatos caracterizadores da confusão patrimonial, deixando, contudo, uma cláusula aberta em seu inciso III.
Os comportamentos descritos nos incisos do § 2º, realmente, são os que a doutrina em geral e a jurisprudência em especial comumente apontam como aptos a demonstrar a ausência de separação de fato entre os patrimônios das pessoas jurídicas e físicas e/ou jurídicas. Sendo assim, o que justificaria a existência do § 2º do artigo 50?
O objetivo da MP parece ter sido o de qualificar os comportamentos potencialmente caracterizadores de confusão patrimonial de modo a dificultar o reconhecimento da violação do princípio da autonomia patrimonial. Com efeito, para que se caracterize confusão patrimonial, não bastará que a pessoa jurídica cumpra obrigações do sócio ou administrador (ou vice-versa), será necessário que isso ocorra repetidamente; não bastará que haja transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, será necessário que os valores transferidos sejam proporcionalmente significativos. Não penso que a condescendência com a violação da autonomia patrimonial seja bom caminho para a livre iniciativa e a liberdade econômica.
Como conclusão, reitero que, em minha opinião, a MP é positiva para o atingimento dos objetivos a que se propõe, merecendo, mesmo no que toca às alterações que promoveu no Código Civil, mais elogios do que críticas. Como o propósito deste texto é o de colaborar com o debate em torno da MP, para que, quando de sua eventual conversão em lei, tenhamos uma norma ainda melhor, permito-me apresentar como sugestão ao legislador a supressão dos parágrafos 1º e 5º do artigo 50 e a supressão das expressões repetidamente e exceto o de valor proporcionalmente insignificante, respectivamente dos incisos I e II do § 2º do artigo 50.

[1] Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP. Professor do Damásio Educacional. Professor do IBMEC-SP. Advogado.
[2] Por exemplo, Fábio Konder Comparato. Direito Empresarial, Saraiva, 1990, p. 63.
[3] A dupla crise da pessoa jurídica, Saraiva, 1979, p. 613.
[4] No mesmo sentido, Rodrigo Xavier Leonardo e Otavio Luiz Rodrigues, A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 1), Conjur, 6/05/2019.
[5] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial. Volume II. Almedina, 2019, 6a edição, Coimbra, p. 159.
[6] Antonio Junqueira de Azevedo, Estudos e Pareceres de Direito Privado, Saraiva, 2004, p. 26 e seguintes.
[7] Rodrigo Xavier Leonardo e Otavio Luiz Rodrigues, A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 1), Conjur, 6/05/2019.

sábado, 11 de maio de 2019

RESUMO. INFORMATIVO 646 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO 646 DO STJ.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.784.032-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, julgado em 02/04/2019, DJe 04/04/2019
RAMO DO DIREITO
TEMA
Sociedade limitada. Distrato da pessoa jurídica. Extinção da sociedade. Equiparação à morte da pessoa natural. Sucessão dos sócios. Apuração. Procedimento de habilitação previsto nos arts. 1.055 e seguintes do CPC/1973 (arts. 687 e 692 do CPC/2015). Desconsideração da personalidade jurídica. Inadequação.
DESTAQUE
A sucessão civil e processual dos sócios de sociedade limitada, extinta por meio do distrato, poderá ser efetivada por meio do procedimento de habilitação, mas não pela via da desconsideração da personalidade jurídica.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A Terceira Turma reconheceu a possibilidade de sucessão da empresa limitada extinta por seus sócios. Na ocasião, assentou-se a premissa jurídica de que a extinção da pessoa jurídica por meio do distrato se assemelhava à morte da pessoa natural, o que justificaria a sucessão civil e processual dos sócios para dar seguimento à demanda em que a pessoa extinta era credora e ocupava o polo ativo da demanda. Ademais, a extinção da sociedade empresária ou civil deve ser precedida da liquidação de seu patrimônio, com apuração de ativo e quitação do passivo, apurando-se o saldo que eventualmente será distribuído entre os sócios. Apenas na hipótese em que a sociedade liquidada tenha resultado em patrimônio líquido positivo, com sua liquidação e efetiva distribuição entre os sócios, seria possível a sucessão da empresa, pois tratando-se a pessoa jurídica dissolvida de devedora da obrigação de direito material, a aplicação do regramento próprio da extinção da pessoa natural, resultaria na possibilidade de sucessão e responsabilização dos sucessores tão somente no limite das forças do patrimônio transferido. Isso porque a sucessão de obrigações causa mortis somente se dá nos limites da força da herança, conforme disposições dos arts. 943 e 1.792 do Código Civil. De fato, ao serem desvinculadas da pessoa, as obrigações têm sua garantia geral de adimplemento no patrimônio pessoal do devedor, de forma que o patrimônio de terceiros somente poderá ser alcançado em casos legal ou contratualmente previstos. Portanto, mesmo no caso de extinção da pessoa, seja ela natural ou jurídica, é o patrimônio remanescente que deverá suportar o cumprimento das obrigações existentes à data da abertura da sucessão. Não se pode olvidar que a sociedade, empresarial ou civil, não é dotada de uma autonomia patrimonial absoluta. A separação entre patrimônio e interesses dos sócios e da sociedade comporta uma gradação, de modo que não se pode simplificar o tratamento das obrigações societárias à mera analogia com a pessoa natural. Assim, diferentemente do que acontece com a morte da pessoa natural, que sujeita tão somente o acervo hereditário ao cumprimento das obrigações patrimoniais do de cujus, a extinção da pessoa jurídica pode sujeitar também o patrimônio pessoal dos sócios, de alguns ou de todos eles, ao cumprimento das obrigações remanescentes. A sucessão processual de empresa dissolvida somente será cabível contra os sócios ilimitadamente responsáveis ou, quando não houver, contra os demais sócios, porém, limitadamente ao ativo por eles partilhados em razão da liquidação societária. Essa apuração deverá ser efetivada por meio do procedimento de habilitação previsto nos arts. 1.055 do CPC/1973 (arts. 687 a 692 do CPC/2015), no qual se exige a citação dos requeridos e a oportunidade de dilação probatória antes da decisão de deferimento da sucessão. Por fim, é preciso deixar bem claro que a sucessão da empresa extinta não tem nenhuma afinidade com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que ela não é via cabível para promover a inclusão dos sócios em demanda judicial, da qual a sociedade era parte legítima, sendo medida excepcional para os casos em que verificada a utilização abusiva da pessoa jurídica.

PROCESSO
REsp 1.631.278-PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, por unanimidade, julgado em 19/03/2019, DJe 29/03/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Imóvel doado aos filhos. Cláusula de inalienabilidade. Morte dos doadores. Ausência de justa causa para a manutenção da restrição ao direito de propriedade. Cancelamento da cláusula. Possibilidade.
DESTAQUE
É possível o cancelamento da cláusula de inalienabilidade de imóvel após a morte dos doadores se não houver justa causa para a manutenção da restrição ao direito de propriedade.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O Superior Tribunal de Justiça, ainda sob a vigência do CC/1916, teve a oportunidade de interpretar o art. 1.676 do referido Código com ressalvas, admitindo-se o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representava lesão aos seus legítimos interesses. Nesse sentido, a imobilização do bem nas mãos dos donatários poderá não lhes garantir a subsistência, seja porque a própria função social do imóvel objeto do negócio a título gratuito resta por todo combalida, assumindo-se uma posição "antieconômica", com a sua retirada do mercado por dilargadas décadas, cristalizando-o no patrimônio de quem dele não mais deseja ser o seu proprietário. Assim, o atual Código Civil, no art. 1.848, passou a exigir que o instituidor da inalienabilidade, nos casos de testamento, indique expressamente uma justa causa para a restrição imposta, operando verdadeira inversão na lógica existente sob a égide do CC de 1916. Há de se exigir que o doador manifeste razoável justificativa para a imobilização de determinado bem em determinado patrimônio, sob pena de privilegiarem-se excessos de proteção ou caprichos desarrazoados. Segundo a doutrina, "o que determina a validade da cláusula não é mais a vontade indiscriminada do testador, mas a existência de justa causa para a restrição imposta voluntariamente pelo testador. Pode ser considerada justa causa a prodigalidade, ou a incapacidade por doença mental, que diminuindo o discernimento do herdeiro, torna provável que esse dilapide a herança". Nesse contexto, o ato intervivos de transferência de bem do patrimônio dos pais aos filhos configura adiantamento de legítima e, com a morte dos doadores, passa a ser legítima propriamente dita. Não havendo justo motivo para que se mantenha congelado o bem sob a propriedade dos donatários, todos maiores, que manifestam não possuir interesse em manter sob o seu domínio o imóvel, há de se cancelar as cláusulas que o restrigem.

PROCESSO
REsp 1.797.196-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, por unanimidade, julgado em 09/04/2019, DJe 12/04/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Cessão fiduciária de direitos creditórios. Crédito suficientemente identificado. Negócio fiduciário. Perfectibilização. Título representativo do crédito. Desnecessidade.
DESTAQUE
Na cessão fiduciária de direitos creditórios, para a perfectibilização do negócio fiduciário, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, o crédito objeto de cessão e não os títulos representativos do crédito.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Dos termos dos arts. 18, IV, e 19, I, da Lei n. 9.514/1997, ressai que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal – o que, por si, obsta a adoção de uma interpretação judicial ampliativa – cede a uma questão de ordem prática incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato. Registre-se, inclusive, que a Lei n. 10.931/2004, que disciplina a cédula de crédito bancário, é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido).

PROCESSO
REsp 1.730.651-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 09/04/2019, DJe 12/04/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ação de cobrança de cotas condominiais. Alienação do imóvel a terceiro. Pagamento do débito condominial pelo terceiro interessado. Honorários de sucumbência. Natureza ambulatória (propter rem). Não enquadramento.
DESTAQUE
Honorários de sucumbência decorrentes de ação de cobrança de cotas condominiais não possuem natureza propter rem.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Registre-se, inicialmente, que as obrigações dos condôminos perante o condomínio são ordinariamente qualificadas como ambulatórias (propter rem), de modo que, decorrendo as respectivas prestações da mera titularidade do direito real sobre o imóvel, incidirão sobre a coisa e irão acompanhá-la em todas as suas mutações subjetivas. Essa, aliás, é a compreensão que se extrai da leitura do art. 1.345 do CC/2002: "o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios". Assim, a obrigação de pagar os débitos em relação ao condomínio se transmite automaticamente, isso é, ainda que não seja essa a intenção do alienante e mesmo que o adquirente não queira assumi-la. O sentido dessa norma é, por certo, fazer prevalecer o interesse da coletividade, permitindo que o condomínio receba, a despeito da transferência de titularidade do direito real sobre o imóvel, as despesas indispensáveis e inadiáveis à manutenção da coisa comum, impondo ao adquirente, para tanto, a responsabilidade, inclusive, pelas cotas condominiais vencidas em período anterior à aquisição. Daí se conclui que a obrigação de pagar as verbas de sucumbência, ainda que sejam elas decorrentes de sentença proferida em ação de cobrança de cotas condominiais, não pode ser qualificada como ambulatória (propter rem) e, portanto, não pode ser exigida do novo proprietário do imóvel sobre o qual recai o débito condominial. Em primeiro lugar, porque tal obrigação não está expressamente elencada no rol do art. 1.345 do CC/2002, até mesmo por não se prestar ao custeio de despesas indispensáveis e inadiáveis à manutenção da coisa comum. Em segundo lugar, porque, no que tange aos honorários de sucumbência, esta Corte, à luz do que dispõe o art. 23 do Estatuto da OAB, consolidou o entendimento de que constituem direito autônomo do advogado, de natureza remuneratória. Trata-se, portanto, de dívida da parte vencida frente ao advogado da parte vencedora, totalmente desvinculada da relação jurídica estabelecida entre as partes da demanda.

PROCESSO
REsp 1.773.244-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 02/04/2019, DJe 05/04/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO MARCÁRIO
TEMA
Secondary meaning, significação secundária ou distintividade adquirida. Direito de exclusividade. Mitigação.
DESTAQUE
A aquisição de distintividade de marca não gera como decorrência lógica, direta e automática a exclusividade de seu uso.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A teoria da distintividade adquirida (da significação secundária, ou secondary meaning), segundo doutrina, contempla que sinais a princípio desprovidos de distintividade suficiente para obterem proteção jurídica pelo registro podem adquirir tal propriedade a partir do momento em que seu uso ou divulgação ocorra com tal intensidade ou por tanto tempo que o público tenha se habituado a associar o signo a uma determinada origem de bens ou serviços, mesmo em condições que, em abstrato, vedariam seu registro por ausência de distinguibilidade. Em outros termos: significação secundária é o fenômeno que ocorre em relação a algum signo de caráter genérico ou comum, geralmente alguma expressão dicionarizada, que, dada a perspectiva criada no consumidor ao longo de um largo tempo de uso, passa a adquirir eficácia distintiva suficiente, a ponto de possibilitar seu registro como marca (com fundamento na parte final do inciso IV do art. 124 da Lei de Propriedade Industrial). Saliente-se que de acordo com o que se pode depreender do Acordo TRIPs (promulgado pelo Decreto n. 1.355/1994), o efeito derivado do reconhecimento de eventual caráter distintivo de algum sinal originariamente desprovido dessa característica, em decorrência do uso, relaciona-se unicamente com a possibilidade de registro. Assim, a exclusividade de uso não constitui decorrência lógica, direta e automática do reconhecimento da aquisição de distintividade pela marca. Inexiste disposição legal específica a esse respeito, tampouco entendimento jurisprudencial albergando a postulação deduzida, de modo que se impõe ter em consideração as circunstâncias usualmente analisadas para decidir sobre a possibilidade ou não de convivência entre marcas em aparente conflito.

PROCESSO
RHC 109.330-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 09/04/2019, DJe 12/04/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Habeas corpus. Matéria não criminal. Recurso ordinário constitucional. Prazo de 5 dias. Art. 30 da Lei n. 8.038/1990. Prazo específico. Lei especial. CPC/2015. Inaplicabilidade.
DESTAQUE
O prazo para interposição de recurso ordinário em habeas corpus, ainda que se trate de matéria não criminal, é de 5 dias.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O art. 1.003, § 5º, do CPC/2015, afirma que "excetuados os embargos de declaração, o prazo para interpor os recursos e para responder-lhes é de 15 (quinze) dias" e o art. 994, V, do CPC/2015, afirma ser o recurso ordinário uma modalidade recursal sujeita à disciplina pelo CPC/2015. Ocorre que é preciso também examinar o conteúdo do art. 1.027, II, "a" e "b", do CPC/2015, que delimita, especificamente, as hipóteses em que o recurso ordinário constitucional se submeterá, do ponto de vista procedimental, ao regime recursal instituído pelo CPC/2015. Percebe-se, pois, que o CPC/2015 excluiu de sua regência o recurso ordinário em habeas corpus, não tendo o legislador sequer realizado a ressalva de que o CPC/2015 se aplicaria, por exemplo, aos recursos ordinários em habeas corpus de matéria não criminal (prisões decorrentes de obrigações alimentares, acolhimentos institucionais, etc.), o que poderia demonstrar o eventual desejo consciente de tratar, de modo distinto, os recursos ordinários em habeas corpus cíveis e criminais. Ademais, como se percebe do art. 1.072, IV, do CPC/2015, foram textualmente revogados alguns artigos específicos da Lei n. 8.078/1990, não havendo, contudo, menção à revogação do art. 30 do mesmo diploma legal. Não se pode olvidar, que esta Corte tem precedente no sentido de que a Lei n. 8.038/1990 não foi integralmente revogada pelo CPC/2015, de modo que permanecem em vigor as regras não expressamente excluídas do ordenamento jurídico. Diante desse cenário, é preciso concluir que o prazo para interposição de recurso ordinário em habeas corpus, ainda que se trate de matéria não criminal, continua sendo de 5 dias, nos termos do vigente art. 30 da Lei n. 8.038/1990, lei especial que prevalece, no particular, sobre a lei geral.

QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.776.047-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, por unanimidade, julgado em 23/04/2019, DJe 25/04/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Plano de saúde. Contrato coletivo com menos de trinta usuários. Resilição unilateral. Necessidade de motivo idôneo. Agrupamento de contratos. Lei n. 9.656/1998. Resoluções ANS 195/2009 e 309/2012.
DESTAQUE
É vedada à operadora de plano de saúde a resilição unilateral imotivada dos contratos de planos coletivos empresariais com menos de trinta beneficiários.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A Lei n. 9.656/1998 distinguiu três espécies de regime ou tipo de contratação de plano ou seguro de assistência à saúde: individual ou familiar, coletivo empresarial e coletivo por adesão (art. 16, inc. VII, alíneas "a", "b" e "c", com a redação da Medida Provisória n. 2.177/41/2001). A distinção entre os planos individuais ou familiares e as contratações de natureza coletiva concebida pela Lei n. 9.566/1998 e RN - ANS 195/2009 teve por objetivo conferir maior proteção aos titulares de planos individuais, diante da posição de maior vulnerabilidade do consumidor singularmente considerado e, também, inserir mecanismo destinado a permitir que, nos contratos coletivos, a pessoa jurídica contratante exerça o seu poder de barganha na fase de formação do contrato, presumindo-se que o maior número de pessoas por ela representadas desperte maior interesse da operadora do plano de saúde. Ao interpretar as referidas normas , a jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que o artigo 13, parágrafo único, II, da Lei n. 9.656/1998, que veda a resilição unilateral dos contratos de plano de saúde, não se aplica às modalidades coletivas, desde que exista previsão contratual, tenha decorrido doze meses da vigência do contrato e a operadora notifique o usuário com no mínimo de 60 dias de antecedência. No caso em exame, todavia, a despeito de se tratar de plano de saúde coletivo empresarial, a estipulante é empresa de pequeno porte, encontrando-se filiadas ao contrato de plano de saúde apenas cinco pessoas. Nessa espécie de contrato, o reduzido número de filiados imporia que a eventual necessidade de tratamento dispendioso por parte de um ou de poucos deles seja dividida apenas entre eles, ensejando a incidência de elevados reajustes no valor das mensalidades e, em consequência, a excessiva onerosidade para o usuário suportar a manutenção do plano de saúde, inclusive em decorrência da reduzida a margem de negociação da empresa estipulante. Essas circunstâncias tornam as bases atuariais dos contratos de planos de saúde coletivos semelhantes às das modalidades individual ou familiar, sendo essa a razão pela qual a Diretoria Colegiada da ANS, atenta a essas particularidades, editou a Resolução 309, de 24.10.2012, estabelecendo regras de agrupamento de contratos com menos de trinta usuários, quantidade que instituiu como o vetor para apuração do reajuste das mensalidades de cada um dos planos agrupados. Assim, para os contratos de planos de saúde coletivos, com menos de 30 usuários, não se admite a simples rescisão unilateral pela operadora de plano de saúde por simples notificação destituída de qualquer fundamentação.

PROCESSO
REsp 1.769.201-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, por unanimidade, julgado em 12/03/2019, DJe 20/03/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Execução. Prescrição Intercorrente. Honorários em favor do executado. Descabimento. Causalidade. Ausência de sucumbência do exequente.
DESTAQUE
A prescrição intercorrente por ausência de localização de bens não retira o princípio da causalidade em desfavor do devedor, nem atrai a sucumbência para o exequente.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A questão envolve interpretação do art. 85 do CPC/2015 em processo que foi extinto por prescrição intercorrente. Na hipótese, houve apelação apenas dos advogados da devedora, em nome próprio, postulando a condenação do credor em honorários de sucumbência. No entanto, a consumação da prescrição intercorrente, segundo o entendimento hoje estabelecido na 2ª Seção do STJ, não mais depende da inércia do devedor em dar andamento à execução do processo, após para tanto intimado. A prescrição intercorrente decorre de fato objetivo, o mero decurso do tempo sem a localização de bens penhoráveis. Com efeito, o fato de o exequente não localizar bens do devedor não pode significar mais uma penalidade em desfavor daquele que, embora tenha decisão meritória favorável, não vem a obter êxito prático com o processo. Do contrário, o devedor que não apresentou bens suficientes ao cumprimento da obrigação ainda sairia vitorioso na lide, fazendo jus à verba honorária em prol de sua defesa, o que se revelaria teratológico, absurdo, aberrante. Ademais, tem-se que o sistema processual civil consagra os princípios da efetividade (art. 4º), da boa-fé processual (art. 5º) e da cooperação (art. 6º), tudo no intento de que a prestação jurisdicional seja não somente rápida e correta, mas também eficaz, efetiva. Assim, a responsabilidade pelo pagamento de honorários e custas deve ser fixada com base no princípio da causalidade, segundo o qual a parte que deu causa à instauração do processo deve suportar as despesas dele decorrentes.

INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA - AFETAÇÃO
PROCESSO
ProAfR no REsp 1.799.343-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Segunda Seção, por maioria, julgado em 09/04/2019, DJe 16/04/2019 (Tema 5)
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO TRABALHO
TEMA
A Segunda Seção admitiu o incidente de assunção de competência proposto no recurso especial, a fim de uniformizar o entendimento acerca da seguinte controvérsia: Justiça competente para julgamento de demandas relativas a contrato de plano de saúde assegurado em contrato de trabalho, acordo ou convenção coletiva.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DA MP 881/2019 SOBRE O DIREITO DE EMPRESA. ARTIGO DE MAURÍCIO ANDERE VON BRUCK LACERDA.

Primeiras reflexões sobre os impactos da MP 881/19 em relação às regras do “Livro II – Do Direito de Empresa” da Parte Especial do Código Civil
Maurício Andere Von Bruck Lacerda.
Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em ciências jurídico-empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal). Especialista em Direito dos Contratos (COGEAE-PUC/SP). Professor de direito civil e empresarial nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP) e em cursos de especialização e pós-graduação em Direito. Advogado.

O propósito do presente ensaio é provocar breves reflexões a respeito dos impactos da Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, em relação, especificamente, às alterações promovidas nos dispositivos legais do Livro II, da Parte Especial do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406), destinado a tratar do “Direito de Empresa”, nomeadamente no tocante à inclusão do §7º no artigo 980-A e à inclusão do parágrafo único no artigo 1.052 do referido diploma legal.
Em referido contexto, não serão analisados, neste momento, os dispositivos relacionados à “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e as demais alterações promovidas no Código Civil Brasileiro, ainda que concernentes às relações empresariais, tais como aquelas promovidas no artigo 50, que promoveu modificações importantes nos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica e aquelas atinentes à disciplina geral dos contratos, que procuraram, entre outros aspectos, flexibilizar o princípio da função social do contrato em prol dos princípios da “livre iniciativa” e do “livre exercício da atividade econômica”.
Registra-se, inicialmente, breve crítica a respeito da adoção do mecanismo jurídico da medida provisória (Art. 62 CF) para promover alterações em diploma legal tão relevante, social e economicamente, como o Código Civil Brasileiro. Não obstante se reconheça a importância de se promover ajustes que proporcionem melhorias no ambiente de negócios, conferindo maior segurança e estabilidade ao desenvolvimento das atividades econômicas em geral e às relações empresariais em especial, o emprego de tal mecanismo constitucional impede – ou ao menos restringe excessivamente – os necessários debates e a maturação de ideias em torno de temas jurídicos tão essenciais às relações jurídico-privadas, como aqueles objeto da MP 881/19.
1. A “sociedade limitada unipessoal” e a EIRELI
No que diz respeito às alterações promovidas no Livro de “Direito de Empresa”, destaca-se, a princípio, a inclusão do parágrafo único no artigo 1.052 do Código Civil Brasileiro, por meio do qual se pretende inserir na realidade jurídica brasileira a figura da “sociedade limitada unipessoal”, estabelecendo que: “A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”
Há algum tempo a sociedade brasileira – e em especial o universo empresarial[1] – clamava pela criação de instituto jurídico capaz de permitir o exercício da atividade empresária, com limitação da responsabilidade, por sujeito único, pois a mera inscrição da pessoa natural como empresário individual, perante o órgão de registro do comércio, acarreta a assunção, pelo empresário, dos riscos empresariais em seu próprio nome, sujeitando o patrimônio pessoal deste à ação de seus credores, sem qualquer tipo de limitação de responsabilidade.
O propósito da figura, em primeiro lugar, seria viabilizar o exercício da atividade empresária por sujeito único e com limitação de responsabilidade, em alternativa à figura do “empresário individual”, afastando, também, a necessidade de constituição de sociedades empresárias limitadas pro forma.
Tais sociedades pro forma, cumpre lembrar, se caracterizam por aquelas nas quais um dos sócios normalmente detém a quase totalidade das quotas representativas do capital social (normalmente com o equivalente a 99%) e o outro sócio – que normalmente é pessoa do ciclo familiar, de amizades ou até mesmo subordinado economicamente ao primeiro, mas, em regra, alheio ao desenvolvimento e ao próprio cotidiano da sociedade empresária – figura como sócio titular de parcela diminuta do capital social (em regra 1%), correndo, porém, todos os riscos fiscais, trabalhistas, cíveis, ambientais, dentre outros, inerentes ao desenvolvimento da empresa, os quais são comumente imputados aos sócios. A existência do sócio pro forma contribui, também, para a burocratização da realização dos atos sociais, incluindo-se alterações contratuais, aumento do capital, entre outras medidas necessárias à administração social e ao desenvolvimento da atividade econômica.
Além disso, o advento de referida figura criaria melhores condições jurídicas para atrair para a formalidade grande número de trabalhadores, que desenvolvem atividades econômicas de maneira informal, em razão das dificuldades e entraves burocráticos, jurídicos e econômicos.
Tais propósitos foram, em grande medida, alcançados pelo advento da lei 12.441, de 11 de julho de 2011, que inseriu a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI” na realidade jurídica brasileira, por meio da inclusão do inciso VI ao artigo 44 CC e da introdução, no livro II da parte especial, dedicado ao tratamento do Direito de Empresa, do artigo 980-A e seus cinco parágrafos[2].
Apesar do tratamento jurídico insuficiente e inadequado da figura[3] – com destaque para a exigência de integralização de um capital mínimo correspondente a 100 (cem) salários mínimos e da possível quebra de isonomia em relação às sociedades; bem como em relação às dúvidas acerca da possibilidade de constituição de EIRELI por pessoa jurídica e para fins não empresariais – a EIRELI conquistou espaço significativo no cenário econômico e empresarial brasileiro, não obstante os obstáculos jurídicos tenham impedido um maior florescimento da figura como alternativa mais efetiva ao desenvolvimento de atividades econômicas por sujeito único e com responsabilidade limitada[4].
Sob tais aspectos, embora se verifique a presença de entraves jurídicos e econômicos, acompanhados por divergências doutrinárias a respeito, por exemplo, da EIRELI tratar-se[5], ou não[6], de sociedade unipessoal, é inequívoco que a figura caracterizou um avanço, justamente por desempenhar as funções exercidas pelas sociedades unipessoais em realidade jurídicas estrangeiras.
Nesse sentido, em processo de amadurecimento jurídico natural, ao invés de se introduzir a nova figura jurídica das “sociedades limitadas unipessoais”, defende-se que bastariam ajustes pontuais no tratamento jurídico da EIRELI, a qual ostenta aptidão para desempenhar papel análogo àquele normalmente desempenhado pelas sociedades unipessoais em outros sistemas jurídicos. Tais modificações pontuais ora propostas, em relação à disciplina jurídica da EIRELI, baseiam-se nas principais discussões doutrinárias em torno do tema e consistiriam, essencialmente, em:
i) alterar a redação do caput do art. 980-A para acabar com a exigência do “capital mínimo” de 100 (cem) salários mínimos.
Justificativa: A fixação de capital mínimo, sobretudo em valor tão elevado para os padrões brasileiros (atualmente R$ 99.800,00), representa considerável desestímulo à constituição da EIRELI, especialmente quando se constata a ausência de regra similar imposta às sociedades limitadas e às demais pessoas jurídicas de direito privado. Tratando-se de pessoa jurídica de direito privado que, na essência, estabelecerá relações jurídicas com outros particulares, referida imposição parece caracterizar zelo excessivo por parte do legislador, na medida em que, em regra, o mercado se mostra apto a acomodar os interesses dos agentes econômicos, por intermédio dos inúmeros instrumentos de proteção e de garantia disponíveis para as relações privadas, tal como ocorre em relação às sociedades limitadas, sendo interesse do próprio instituidor – a depender da natureza da atividade e dos riscos envolvidos[7] – promover, a qualquer tempo, o aumento do capital integralizado, de forma a transmitir maior segurança e credibilidade às relações por ele estabelecidas. Em síntese, considera-se que eventuais benefícios e garantias fornecidos aos credores da EIRELI, como resultado de referida imposição legal, são menores do que os potenciais ganhos sociais e econômicos oriundos da ausência de fixação de um capital mínimo para constituição da referida modalidade de pessoa jurídica.
ii) alterar a redação do caput do art. 980-A, para autorizar expressamente a constituição de EIRELI por pessoa jurídica.
Justificativa: Não obstante a redação atual não proíba a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, desde o advento da figura, o Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) e, posteriormente, o Departamento de Registro de Empresas e Integração (DREI), editaram regras que ora proibiram, ora autorizaram a constituição de EIRELI por pessoa jurídica[8], sendo certo que desde março de 2017 a constituição é permitida. Apesar do tema ser controvertido na doutrina[9], a segurança jurídica e o desenvolvimento das atividades econômicas necessita de regra perene, apta a encerrar referida celeuma e, finalmente, conferir estabilidade às EIRELIs constituídas por pessoas jurídicas desde o ano de 2017.
iii) alterar a redação do §5º do art. 980-A, para autorizar expressamente a constituição de EIRELI não-empresária.
Justificativa: Apesar de parecer, em certa medida, contraditório admitir-se que uma pessoa jurídica cuja denominação ostenta o vocábulo “Empresa” possa exercer atividade de natureza não empresária, não parece que a presença de elementos de empresa seja indispensável à caracterização da figura, que poderá ser constituída para o exercício de atividade não empresária. Não se verifica, portanto, óbices à possibilidade de que seja constituída a “EIRELI-Simples”, especialmente por se tratar de figura do universo do direito privado e por apresentar-se como mais uma alternativa para o exercício das atividades econômicas em geral, sem prejuízo, inclusive, de que, tratando-se de nova modalidade de pessoa jurídica, esteja sujeita às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do que estabelecem, entre outros, os artigos 50 do CC e 28 do CDC.
Em síntese, apesar das reconhecidas divergências jurídicas que envolvem a EIRELI, nos parece que tais ajustes pontuais contribuiriam para reduzir os entraves atualmente existentes e, dessa forma, impulsionar a utilização da figura na realidade jurídico-econômica brasileira, assumindo, com protagonismo, as funções desempenhadas pelas “sociedades unipessoais” presentes em realidades estrangeiras.
Tais medidas, por sua vez, dispensariam alterações mais profundas no ordenamento jurídico pátrio, tal como aquela relacionada ao encetado § único do art. 1.052CC, que além de necessitar de ajustes e complementos, dependeria de natural maturação e acomodação de suas características dentro do sistema, tal como se pretende demonstrar a seguir.
Caso, contudo, prospere a opção de introduzir a “sociedade unipessoal” no sistema jurídico pátrio, nos moldes assumidos pela figura em outras realidades jurídicas – nos quais se destina a viabilizar o desenvolvimento de atividade econômica por sujeito único e com responsabilidade limitada – considera-se insuficiente e inadequada a mera inclusão do parágrafo único no encetado art. 1.052 CC, tal como estabelecido pela MP 881/19, pois vejamos.
A escolha por incrementar a regra do artigo 1.052CC, que trata especificamente das sociedades limitadas, nos parece, com a devida vênia, tecnicamente incorreta. Isso porque mantém intacta a regra do artigo 981 do CC, a qual continua a estatuir que: “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.”
Sugere-se, portanto, que – no curso do processo legislativo que se destina a convolar em lei a MP 881/19, caso não prospere a opção por simplesmente alterar pontualmente dispositivos da EIRELI – a inserção da “sociedade unipessoal” na realidade brasileira seja promovida por intermédio de alteração da redação do caput do artigo 981CC ou mediante a inclusão de parágrafo próprio em tal dispositivo, admitindo, dessa forma, que a sociedade passe, também, a ser efeito de negócio jurídico unilateral e decorra, portanto, da manifestação de vontade de sujeito único, afastando, da sua essência, o requisito da pluralidade de sócios.
Entende-se que o tratamento da figura da “sociedade unipessoal” no âmbito do artigo 981 do CC contribui para harmonizar o sistema em torno da nova figura, evitando, dessa forma, situação de antinomia entre as regras do artigo 981CC – que regula as sociedades em geral – e do artigo 1.052 do CC, que inaugura a disciplina das “sociedade limitadas”, em especial.
Tal realocação da regra contribui, inclusive, para afastar as dúvidas relativas à abrangência concreta da figura em relação aos demais tipos societários e, também, às sociedades não empresárias, nos seguintes termos.
2. A infundada restrição da “sociedade unipessoal” ao universo das “sociedades limitadas”
Além da proposição relacionada ao locus adequado do tratamento da “sociedade unipessoal” no sistema, faz-se necessário avaliar em que medida se justifica limitar a figura das “sociedades unipessoais” ao universo das “sociedades limitadas”, tal como consta do texto da MP 881/19.
Diferentemente da opção adotada pela MP 881/19, nos parece não haver justificativa jurídico-econômica plausível para limitar a constituição das “sociedades unipessoais” ao universo das “sociedades limitadas”, embora este deva ser o tipo societário mais propício para o maior desenvolvimento da figura, já que os tipos societários menores (sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações) são tradicionalmente pouco utilizados, em razão da atribuição de responsabilidade ilimitada a, ao menos, uma categoria de sócios.
Importante ressalva merece ser feita em relação às sociedades anônimas, as quais além de ostentarem estrutura organizacional mais complexa e burocrática do que as sociedades reguladas pelo Código Civil, gozam de disciplina jurídica própria (Lei 6404/76), a qual já regula a possibilidade excepcional de constituição da “subsidiária integral”, nos termos do artigo 251 da referida lei especial, que merece ser preservada, mediante ressalva expressa no texto legal a ser reformulado.
3. A possibilidade de constituição de “sociedades unipessoais” simples e empresárias
Outro aspecto relacionado às escolhas adotadas no texto da referida MP 881/19, e que reforça a necessidade de se abordar a questão no âmbito do art. 981 do CC, cinge-se às eventuais dúvidas acerca da nova figura restringir-se, ou não, ao universo das “sociedades empresárias”.
Não obstante a regra do artigo 983 do CC admita expressamente que “a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um dos tipos” societários regulados nos artigos 1.039 ao 1.092 do CC, entre os quais se incluem as “sociedades limitadas”, o advento da “sociedade unipessoal” apenas no âmbito das “sociedade limitadas” restringe, por exemplo, a constituição de sociedades simples puras unipessoais. Também sob tais aspectos, considera-se não haver fundamentos para tal restrição.
Importante lembrar que a Lei nº 13.247, de 12 de janeiro de 2016, promoveu alterações no “Estatuto da Advocacia” (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), em especial no artigo 15 e outros[10], para admitir a possibilidade de que os advogados constituam “sociedade unipessoal de advocacia”, a qual adquire personalidade jurídica com o registro aprovado dos seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial tiver sede, salientando no parágrafo § 4º, do art. 15, que “Nenhum advogado pode integrar mais de uma sociedade de advogados, constituir mais de uma sociedade unipessoal de advocacia, ou integrar, simultaneamente, uma sociedade de advogados e uma sociedade unipessoal de advocacia, com sede ou filial na mesma área territorial do respectivo Conselho Seccional.”
A nova redação do art. 17, contudo, ressalva que Além da sociedade, o sócio e o titular da sociedade individual de advocacia respondem subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que possam incorrer.”
A propósito, diante da existência de regra especial que autoriza os membros de determinada categoria profissional a se valerem da figura da “sociedade unipessoal”, no âmbito das sociedades simples, não se vislumbra obstáculos para que – em reforço ao princípio da isonomia – tal possibilidade seja contemplada pela lei geral, conferindo-se o mesmo direito a outras categorias profissionais, inclusive de caráter não empresário, tais como contabilistas, médicos, engenheiros, arquitetos, entre outras.
Considera-se pertinente, contudo, o estabelecimento de regras específicas regulando minimamente a figura, tais como aquelas inseridas no “Estatuto da Advocacia”, as quais também se encontram previstas em sistemas jurídicos estrangeiros, que acolheram, em sentido amplo, a possibilidade de constituição de sociedades unipessoais.
Nesse sentido, em reforço às referidas conclusões, destaca-se o tratamento conferido à figura na realidade portuguesa, onde a “sociedade unipessoal” foi instituída por influência da 12ª Diretiva da União Europeia, que impulsionou a promulgação do Decreto-Lei nº 257/96 de 31 de dezembro[11]. Registra-se que ainda na década de 1980 foi criada, na realidade portuguesa, a figura do denominado “estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada (e.i.r.l.)”, destinado ao exercício da empresa, aproximando-se da EIRELI do sistema brasileiro, em razão da fixação de um capital mínimo (5.000 euros), embora juridicamente o “e.i.r.l.” se caracterize como um patrimônio separado não personificado e não como um reflexo da subjetivação da atividade, conforme se verifica na realidade brasileira.
Atualmente, a figura das “sociedades unipessoais” está plenamente consolidada e encontra ampla aplicação na realidade portuguesa, com fundamento nos artigos 7º[12] e 270-A a G[13] do Código das Sociedades Comerciais Português, bem como na Lei n.º 53/2015, de 11 de junho, que regula o “Regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais.”[14]
Com base em tais fundamentos jurídicos, legais e doutrinários, da realidade brasileira e estrangeira, considera-se que o locus adequado para inserção da sociedade unipessoal na realidade jurídica brasileira é o artigo 981 CC, capaz de abranger tanto as sociedades empresárias, como as não empresárias, sem restrições quanto aos tipos societários, com exceção das sociedades anônimas, que ostentam disciplina jurídica própria (Lei 6.404), que merece ser objeto de ressalva expressa.
Considera-se, prudente, ainda, que a figura das sociedades unipessoais seja minimamente regulada, mediante a previsão legal de regras destinadas a conferir maior segurança e a evitar abusos por intermédio da figura, tal como ocorre, por exemplo, na realidade portuguesa, por influência europeia, nos moldes dos artigos 270-A a 270-G do Código das Sociedades Comerciais Português.
4. A inclusão do §7º no artigo 980-A:  A desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI
A outra alteração promovida pela MP 881/19 na parte de “Direito de Empresa” do Código Civil Brasileiro, encontra-se intimamente relacionada com os acima expostos, pois relaciona-se à desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI.
Foi inserido mais um parágrafo (§7º) ao artigo 980-A, para estabelecer que: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”
Em linhas gerais, o referido dispositivo fez ressurgir a regra do § 4º, que constava originariamente do artigo 980-A, e fora objeto de veto presidencial, cujo teor era o seguinte: “§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente.”
Por coerência lógica do sistema e em prol da segurança jurídica a inserção de referida regra não deve prosperar. A crítica se justifica, pois a regra do referido § 7º cria situação de antinomia em relação ao disposto no § 6º do próprio art. 980-A[15] e também em relação às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no artigo 50 CC.
Note-se que o §7º inserido pela MP 881/19 cria regra de exceção aplicável apenas às EIRELIs, afastando, ao que parece, a incidência dos requisitos gerais da desconsideração da personalidade jurídica previstos no artigo 50, para restringir as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI “aos casos de fraude”. Não nos parece, contudo, ser a solução jurídica mais adequada, pois confere tratamento jurídico excepcional à referida espécie de pessoa jurídica, que não encontra qualquer amparo ou justificativa plausível no sistema ou em relação aos valores que nortearam a criação da figura.
Em reforço aos referidos argumentos é oportuno relembrar os fundamentos constantes da justificativa de veto ao encetado §4º do texto originário. Asseverou-se que: “Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio.”
Do ponto de vista prático e dos riscos efetivos envolvendo a nova regra do §7º, destaca-se ementa de acórdão proferido nos autos do recurso de agravo de instrumento n. 2008101-36.2016.8.26.0000, julgado pela 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, Des. Rel. Cerqueira Leite, em 11.5.16, no qual foi determinada a desconsideração da personalidade jurídica de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, nos seguintes termos:
“Ementa: Pessoa jurídica - Desconsideração da personalidade - Execução por quantia certa de título extrajudicial. Fraude Confusão patrimonial entre pessoas jurídicas e pessoas naturais. Pessoas naturais com vínculos familiares que são titulares de microempresas que atuam no mesmo ramo de confecção de peças de vestuário para venda em eventos esportivos - Autonomia patrimonial abrandada pela teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Desnecessidade da prova da ilicitude ou da fraude, bastando o uso inadequado do direito. Recurso provido, para a inclusão no polo passivo da microempresa DS Sports Confecções e Comércio de Roupas Eireli, ressalvado o seu direito à ampla defesa.”
Por tais razões, conclui-se pela inadequação da regra criada pela MP 881/19, que inseriu, de forma injustificada e confusa, hipótese excepcional de desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI, contrariando, inclusive, as próprias alterações promovidas pela mesma MP 881/19 no artigo 50 CC.
Por fim, cumpre salientar, sob uma perspectiva prática, que caso prospere a inclusão da “sociedade unipessoal” na realidade brasileira, a EIRELI tende a ter sua relevância e abrangência bastante reduzidas[16], o que tornaria referida regra absolutamente inócua.
Em linhas conclusivas, embora se reconheça o mérito da iniciativa que, entre outros propósitos, busca fomentar o desenvolvimento da atividade econômica na realidade brasileira, considera-se que as alterações decorrentes da MP 881/19, no tocante à parte de “Direito de Empresa” do Código Civil Brasileiro, dependem de maiores reflexões, as quais envolvem o aprimoramento de instituto jurídico já existente (EIRELI) e que se mostra apto a atender os mesmos objetivos das sociedades unipessoais. Caso as medidas sejam convertidas em lei pelo Congresso Nacional, devem ser objeto de ajustes e complementos nos moldes propostos neste artigo, a fim de evitar o estabelecimento de situações contraditórias e lesivas aos legítimos interesses sociais e econômicos que gravitam no ambiente empresarial brasileiro.

[1] Conforme destacado, dentre outros, por FILHO, Calixto Salomão. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995.
[2] Já que o §4º fora vetado e continha a seguinte redação: "§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente."
[3] Que, entre outras peculiaridades, passou a “subjetivar” a noção de “empresa”, entendida como “atividade econômica organizada” e adotou, equivocadamente, as expressões próprias do direito societário, tais como “capital social”, “denominação social”, entre outras, o que foi, inclusive, objeto de enunciado aprovado na “V Jornada de Direito Civil”, com o seguinte teor: “Enunciado 472. É inadequada a utilização da expressão “social” para as empresas individuais de responsabilidade limitada.”
[4] Tal como tivemos a oportunidade de ilustrar, por meio da apresentação de dados estatísticos, em LACERDA, Maurício Andere Von Bruck. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada e sua natureza jurídica. In: Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); Diogo Leonardo de Machado. (Org.). PRODIREITO: Direito Civil: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 1. 1ed.Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2016, v. 3, p. 99-138.
[5] Nesse sentido COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - Sociedades. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 46/47, que defende tratar-se a EIRELI de “sociedade limitada unipessoal”, sob os argumentos principais de que “ao disciplinar o instituto, o legislador valeu-se exclusivamente de conceitos do direito societário, como ‘capital social’, ‘denominação social’ e ‘quotas’. Mais que isto, referiu-se à EIRELI como uma ‘modalidade societária’ e submeteu-a ao mesmo regime jurídico da sociedade limitada.”
[6] Tal como defende GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa (Comentários aos arts. 966 a 1.195 do CC). 4ª edição. São Paulo: RT, 2012.p. 123, que considera a EIRELI “nova figura jurídica”, asseverando que “o legislador brasileiro procurou uma terceira via: não atribuiu ao empresário individual responsabilidade limitada aos bens que afetar à sua empresa, na linha da mais recente orientação do direito francês; também não escolheu o caminho da sociedade unipessoal. Preferiu a fórmula não societária sob peculiar roupagem, regulando uma nova figura jurídica”. A propósito, acrescenta-se a tal posição os fatos de terem sido criados um novo inciso (VI) para o artigo 44 do Código Civil, do qual já constavam expressamente “as sociedades” (inciso II); e um título próprio dedicado à nova modalidade de pessoa jurídica, no art. 980-A, que se situa imediatamente antes do “Título II – Da Sociedade”, cujo conceito do art. 981CC, fora integralmente mantido. Esse foi o entendimento alcançado na “V Jornada de Direito Civil”, pelo “Enunciado 469. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado.” e consolidado na “I Jornada de Direito Comercial”, por intermédio do “Enunciado 3. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.”
[7] Tal como salienta PEDRO, Paulo Roberto Bastos. Curso de direito Empresarial. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 47, ao analisar a imposição do capital mínimo à figura, “o próprio empresário é que saberá o seu verdadeiro e mais adequado valor, não podendo o Estado determinar um valor para este capital.”
[8] Registra-se, a respeito do assunto, a existência da Instrução Normativa DNRC n. 117, de 22 de novembro de 2011; da Instrução Normativa DREI n. 10, de 5 de dezembro de 2013 e, mais recentemente, da Instrução Normativa DREI n. 38/2017, de 2 de março de 2017, que permitiu a constituição de EIRELI por pessoa jurídica.
[9] Tal como decidido na V Jornada de Direito Civil, enunciado 468 “A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural”. De um lado, juristas como Fábio Ulhôa Coelho e Márcio Tadeu Guimarães Nunes defendem que o intérprete não tem o poder de impor limitações que não constem, de forma expressa, do texto legal, em especial quando se trata de figura do universo do direito privado – e especialmente empresarial – no qual vigoram os princípios da livre iniciativa e da autonomia privada. No sentido contrário, Alfredo de Assis Gonçalves Neto e outros doutrinadores argumentam que a hermenêutica do referido instituto jurídico não deve se limitar a uma interpretação litero-gramatical do disposto no caputdo dispositivo legal em comento, reclamando uma interpretação sistemática e axiológica, de forma a proporcionar uma análise do disposto no caput e a sua harmonização com o conteúdo normativo dos parágrafos, que seja coerente com os valores e com os propósitos que influenciaram a construção da figura.
[10] “Art. 15 Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral.”
[11] A respeito da evolução da figura no direito português ver CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito das Sociedades – Das Sociedades em geral – I. 2ª edição. 2007. Coimbra: Almedina, p. 245/249.
[12] Sociedades: Artigo 7º: Formas e parte do Contrato: 1 - O contrato de sociedade deve ser reduzido a escrito e as assinaturas dos seus subscritores devem ser reconhecidas presencialmente, salvo se forma mais solene for exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade, devendo, neste caso, o contrato revestir essa forma, sem prejuízo do disposto em lei especial. 2 - O número mínimo de partes de um contrato de sociedade é de dois, excepto quando a lei exija número superior ou permita que a sociedade seja constituída por uma só pessoa. (...)
[13] Sociedades unipessoais por quotas: Artigo 270º - A – Constituição: 1 - A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social. 2 - A sociedade unipessoal por quotas pode resultar da concentração na titularidade de um único sócio das quotas de uma sociedade por quotas, independentemente da causa da concentração. 3 - A transformação prevista no número anterior efectua-se mediante declaração do sócio único na qual manifeste a sua vontade de transformar a sociedade em sociedade unipessoal por quotas, podendo essa declaração constar do próprio documento que titule a cessão de quotas. 4 - Por força da transformação prevista no n.º 3 deixam de ser aplicáveis todas as disposições do contrato de sociedade que pressuponham a pluralidade de sócios. 5 - O estabelecimento individual de responsabilidade limitada pode, a todo o tempo, transformar-se em sociedade unipessoal por quotas, mediante declaração escrita do interessado. (...)
[14] Art. 4º: Liberdade de forma e direito subsidiário 1 - As sociedades de profissionais podem ser sociedades civis ou assumir qualquer forma jurídica societária admissível segundo a lei comercial, salvo o disposto no número seguinte.
2 - As sociedades de profissionais não podem constituir-se enquanto sociedades anónimas europeias.
3 - No que a presente lei não dispuser, são aplicáveis às sociedades de profissionais as normas da lei civil ou da lei comercial, consoante se trate de uma sociedade de profissionais sob a forma civil ou de uma sociedade de profissionais sob a forma comercial, respetivamente.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são aplicáveis às sociedades de profissionais que se constituam enquanto sociedades unipessoais por quotas as disposições da presente lei compatíveis com a sua natureza.
[15] § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
[16] Tal como ocorreu na realidade portuguesa, em relação ao “estabelecimento individual de responsabilidade limitada”, após o advento da sociedade unipessoal, como referido por RAMOS, Maria Elisabete Gomes. Sociedade unipessoais – perspectivas da experiência portuguesa.Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil (Coord. Fábio Ulhôa Coelho e Maria de Fátima Ribeiro). Coimbra: Almedina, 2012, p. 376/377. o “e.i.r.l. não teve êxito no mundo empresarial português e, em particular, não pôs termos à prática das sociedades por quotas formalmente pluripessoais, mas de facto a funcionar como sociedades unipessoais”, concluindo que embora a figura ainda exista na realidade portuguesa encontra-se totalmente desprestigiada como alternativa para a limitação da responsabilidade do empresário individual, especialmente após o advento do Decreto Lei 33/2011, de 7 de março, o qual “introduziu na ordem jurídica portuguesa a vulgarmente designada ‘empresa de um euro’ ”, que se refere à sociedade por quotas “que, quando é unipessoal, pode ser constituída com capital social de um euro (art. 201º)”.