sábado, 28 de abril de 2012

EPD. CIVIL E CONSUMIDOR. QUESTÕES DE SEMINÁRIO DO DIA 07.05


ESCOLA PAULISTA DE DIREITO.
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR.
QUESTÕES DO SEMINÁRIO DE AVALIAÇÃO.
DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO, TEORIA DAS NULIDADES, PRESCRIÇÃO, DECADÊNCIA, ATO ILÍCITO E ABUSO DE DIREITO.
PROFESSOR CARLOS OTÁVIO LIMONGI FRANÇA.
Observação 1. Não montar os grupos até a chegada do professor. 
Observação 2. Imprimir os julgados na íntegra para um melhor aproveitamento.
1)     Comente a Súmula nº 375 do STJ, em relação às diferenças existentes entre os intitutos da fraude contra credores e da fraude à execução.
2)     O grupo deve analisar criticamente o seguinte acórdão:
“APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO ANULATÓRIA, REINTEGRATÓRIA E DE COBRANÇA. Três feitos distintos, mesma causa de pedir. Conexão. Julgamentos conjuntos. Empréstimo de mútuo usurário. Agiotagem. Prova que se satisfaz com indícios de ocorrência. Contrato de compra e venda de máquina e posterior locação do mesmo bem, por quantia vultosa. Simulação negocial e estado de lesão. Nulidade. Dano material. Ocorrência. Lucro cessante em razão da interrupção da atividade produtiva. Dano moral. Verificação. Constrangimento objetivo perante clientes e terceiros. Quantum indenizatório. Caráter pedagógico. Desprovimento dos apelos. A prova da prática de agiotagem, embora a cargo de quem a alegar, deve contentar-se com um quadro indiciário, capaz de justificar um juízo de verossimilhança. Por envolver atividade ilícita, encontra-se dissimulada em outro negócio jurídico, não deixando rastros documentais que a atestem. ‘Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta’. Se a empresa é privada do seu meio de subsistência, em razão de prática ilegal, tendo, em um primeiro momento, que alugar outro equipamento, descumprindo obrigação assumida perante terceiros, é esta privação, os lucros que deixaram de ser auferidos, que o apelante deve ressarcir. Súmula nº 227 do STJ: ‘a pessoa jurídica pode sofrer dano moral’. O dano moral indenizável, no caso das pessoas jurídicas, notadamente as empresárias, é aquele que decorre do abalo de sua honra objetiva, isto é, aquilo que as pessoas de uma forma geral dela pensam com relação à credibilidade, confiabilidade e expectativa de eficiência no produto / serviço prestado etc. A composição do dano moral pretium doloris é a retribuição do mal causado pela ofensa com o mal da pena, não devendo, portanto, ser inexpressivo; porém não se presta a enriquecimento injustificado da vítima”. (TJPB; AC 200.2003.018.070-3/002 200.1998.000.837-5/001; Rel. Juiz Conv. Carlos Martins Beltrão Filho; DJPB 14/10/2010; Pág. 5)
 3)     Um determinado sujeito compra um carro usado de um particular. Após aperfeiçoado o negócio, ingressa com ação anulatória, alegando vício redibitório do veículo, dolo por parte do vendedor e erro de sua parte. Funda-se no fato de, somente depois de utilizar o carro, ter reparado em marcas de arrombamento nas portas, na falta dos manuais e do estepe e em falhas no computador de bordo. Além disso, descobriu que o veículo havia sido comprado em leilão, como recuperação de furto, o que o impediria de ter efetuado a compra. Nenhuma dessas informações teria sido indicada pelo vendedor. Pergunta-se: como o grupo julgaria procedente o pedido? Fundamente.
 4)     O grupo deve analisar criticamente o seguinte julgado, do Tribunal de São Paulo:
“COBRANÇA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS PELO HOSPITAL DEMANDANTE. RÉU QUE ASSUMIU A RESPONSABILIDADE PELAS DESPESAS ADVINDAS DE INTERNAÇÃO DE EMERGÊNCIA DE TERCEIRO NÃO FAMILIAR DO DEMANDADO. IMPOSSIBILIDADE DE SE RECONHECER ESTADO DE PERIGO (ART. 156 DO CC/02). AUSÊNCIA DE QUALQUER PROVA DA CONDIÇÃO DO RÉU DE FUNCIONÁRIO DO HOTEL EM QUE ESTAVA HOSPEDADO O PACIENTE. Devolução do cheque caução, ademais, motivada por comunicado do plano de saúde do paciente que não implicou em extinção ou alteração da relação jurídica original. Sentença de procedência mantida. Recurso improvido”. (TJSP; APL-Rev 671.590.4/5; Ac. 4101399; São Paulo; Sexta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Vito Guglielmi; Julg. 01/10/2009; DJESP 06/11/2009)
5)     Considerando o caso narrado pelo acórdão abaixo, em que se identificou um negócio jurídico simulado que não prejudica terceiros, deve-se considerar a nulidade absoluta ou a nulidade relativa do ato? Se acaso o frigorífico quitasse a quantia prometida, o negócio poderia ser convalidado de alguma forma?
“APELAÇÃO CÍVEL. COMPRA E VENDA. PRETENSÃO DE OUTORGA DE ESCRITURA DEFINITIVA E/OU RESCISÃO DO CONTRATO. DEVOLUÇÃO DO VALOR DO PREÇO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. SIMULAÇÃO. CONFIGURADA. NULIDADE DO NEGÓCIO. ART. 167, § 1º, II, DO CC. PEDIDO DE AJG. DEFERIDO. 1. No caso, as circunstâncias fáticas declinadas no feito demonstram que não se trata de mero instrumento particular de compra e venda de imóvel e, sim, forma simulada para encobrir relação de crédito-dívida, o que torna nula a negociação. Situação que não se coaduna com a tese declinada na inicial. Aplicação dos arts. 167 a 169 do CC. 2. Elementos de prova constantes nos autos que autorizam a concessão do benefício. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA”. (TJRS; AC 70031697022; Porto Alegre; Vigésima Câmara Cível; Rel. Des. Glênio José Wasserstein Hekman; Julg. 06/10/2010; DJERS 19/10/2010)
6)     Com base no seguinte acórdão, discorra sobre as diferenças entre prescrição e decadência.
“CONSUMIDOR. OBRIGAÇÃO DE FAZER. TELEFONIA FIXA. DECADÊNCIA AFASTADA. alegada FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PEDIDO DE DISPONIBILIZAÇÃO DO SERVIÇO OFERTADO ‘siga-me’. INFORMAÇÃO DE AUSÊNCIA atual DE COMERCIALIZAÇÃO. REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA. 1. Tratando-se de danos decorrentes da falha na prestação dos serviços, não se fala em decadência, mas em prescrição da pretensão da parte autora, cujo prazo não se implementou, de acordo com a regra do artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Em que pese a possibilidade de inversão do ônus da prova, por se tratar de relação de consumo, é de se ter por verídica a afirmativa da ré, em audiência de instrução, de que a sucessora da Brasil Telecom cessou a comercialização do serviço, uma vez que aufere lucro com a atividade, inexistindo plausibilidade na negativa imotivada. Ademais, incumbia ao autor a comprovação, ainda que mínima, dos fatos constitutivos de seu direito, conforme preceitua o artigo 333, I do Código de Processo Civil, o que não ocorreu no caso em tela, tendo em vista que o autor não demonstrou ter contratado a ré em razão do referido serviço, motivo pelo qual não se mostra cabível a determinação para que esta o disponibilize.  RECURSO PROVIDO”. (TJRS; RCiv 71002752236; Alegrete; Segunda Turma Recursal Cível; Relª Desª Fernanda Carravetta Vilande; Julg. 13/10/2010; DJERS 20/10/2010).
7)     O que vem a ser a teoria actio nata? Apontar três exemplos concretos de sua aplicação para a prescrição. Dê preferência para julgados.
8)     O grupo deve analisar criticamente o seguinte julgado, a cerca do abuso de direito na relação de consumo.
“Seguro de vida em grupo - Invalidez total e permanente por doença - Pedido, entretanto, de indenização de 70% do valor do seguro, percentual à época da redução da capacidade - Reconhecimento, em outra causa, do direito à percepção da integralidade da indenização securitária, diante do agravamento superveniente da incapacidade - Acórdão que decotou o excesso - Seguradora que havia depositado a integralidade da condenação e postula, executivamente, a devolução dos 30% pagos a mais e levantado pelo segurado - Ação declaratória proposta pelo segurado objetivando o reconhecimento de seu direito a receber os 30% complementares, dada a incapacidade total e permanente - Pedido cumulado com indenização por dano moral decorrente de abuso de direito da seguradora em promover-lhe execução - Sentença que reconheceu o direito ao pagamento do valor correspondente aos 30% complementares, com conseqüente inexigibilidade do montante cobrado na execução - Indenização por dano moral rejeitada - Exercício do direito de cobrança do montante pago a mais que, à época, se justificava e tinha lastro no acórdão referido, embora em desconformidade com o direito material - Sentença de procedência parcial que bem solveu a lide - Recursos ordinário da ré e adesivo do autor não providos. 1. Ar. sentença de fls. 378/383 julgou parcialmente procedente pedido contido em ação declaratória cumulada com indenização por danos morais e condenou a ré a pagar ao autor o valor correspondente a 30% da indenização contratada entre as partes para a cobertura de invalidez total e permanente por doença, com o decorrente reconhecimento do direito do autor de reter consigo o valor já anteriormente pago pelo réu a este título, resultando quitada tal verba. Converteu-se em definitiva a tutela antecipada, inexigível a restituição pretendida em execução perante o mesmo Juízo. O pedido de indenização por dano moral foi rejeitado ao fundamento de que a cobrança executiva constitui-se exercício regular de direito. Diante da sucumbência recíproca, mas em maior proporção da ré, determinou-se a repartição das custas na proporção de 70% para a ré e 30% para o autor, observada a Lei n° 1.060/50, e condenou a ré ao pagamento dos honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor da causa (R$ 211.439,38) corrigido desde o ajuizamento, já promovida a compensação. Apelam ambas as partes, o autor por recurso adesivo. A ré sustenta, em suma: a) o próprio segurado desde o início admitiu que sua invalidez decorre diretamente de uma doença rara (‘coroidopatia serpiginosa’), que está abrangida na exclusão contratual' e a cláusula da invalidez não se amolda ao conceito contratual de acidente; b) forçosa a conclusão de que se trata de incapacidade provocada por doença, incidindo exclusão contratual expressa, de fácil compreensão, redigida de forma clara e em destaque (artigo 54, §§ 3o e 4o, do Código de Defesa do Consumidor); c) assim, o pedido do segurado jamais poderia ter sido feito com fundamento na Cláusula de Invalidez por Acidente; d) o autor não poderia fundamentar seu pedido na Cláusula de Invalidez Total por Doença porque, de fato, não estava totalmente cego na época; c) não pode a Seguradora ser obrigada a pagar qualquer indenização decorrente de risco não previsto ou expressamente excluído do contrato (artigos 1.432 e 1.460 do Código Civil/1916, vigente à época do sinistro). No recurso adesivo, o autor objetiva a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes de abuso de direito. Segundo o autor, o abuso ficou configurado no ajuizamento de execução para devolução do percentual pago supostamente a mais, mesmo sabendo que o autor está totalmente inválido, o que lhe causou situação de instabilidade emocional e angústia, verdadeiro pânico pela possibilidade de ficar sem 30% do valor recebido e que o auxilia na sua subsistência, em razão de estar totalmente cego e depender de auxílio diário de terceira pessoa. Recurso da ré preparado, isento o adesivo do autor, processados e com contrarrazões apenas do autor”. (TJSP; APL 992.09.070215-7; Ac. 4706391; Piracicaba; Vigésima Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Reinaldo Caldas; Julg. 15/09/2010; DJESP 29/09/2010)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

RESUMO DO INFORMATIVO 495 DO STJ.

COMPETÊNCIA. CONTRATO. CONCESSÃO. SUCESSÃO TRABALHISTA.
Trata-se de caso em que uma empresa concessionária de transporte ferroviário (suscitante) apontou a existência de conflito positivo de competência entre a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, que reconheceu a existência de sucessão trabalhista entre a concessionária e as empresas públicas vinculadas à Secretaria de Estado dos Transportes que, antes da concessão à suscitante, exploravam o transporte urbano de passageiros. Porém, o contrato de concessão celebrado entre o Estado-membro e a suscitante contém cláusula que limita a responsabilidade da concessionária aos eventos ocorridos após a posse da atividade concedida. No entanto, na hipótese, ao passo que tramita no Juízo estadual ação declaratória proposta pela suscitante em desfavor das empresas públicas, visando à declaração de inexistência de responsabilidade da concessionária em relação a terceiros titulares de direitos trabalhistas anteriores à concessão, tramitam também reclamatórias trabalhistas contra as empresas mencionadas, com a inclusão da concessionária apenas na fase executória. Portanto, a responsabilidade da suscitante pelo pagamento da condenação trabalhista imposta em sentenças condenatórias às empresas públicas em benefício dos reclamantes/litisconsortes passivos está sendo objeto de conhecimento da Justiça do Trabalho e da Justiça estadual. A Min. Relatora salientou que a interpretação e a legalidade da cláusula do contrato administrativo que limitou a responsabilidade da concessionária aos eventos posteriores à posse da atividade concedida é matéria a ser dirimida à luz das regras de direito público, com interferência direta no equilíbrio econômico-financeiro da concessão. In casu, a validade da cláusula contratual que vedou a transferência da responsabilidade pelo passivo trabalhista deve ser analisada pela Justiça estadual na qual tramita a ação declaratória em que se postula a declaração de inexistência de responsabilidade da concessionária em relação a terceiros titulares de direitos trabalhistas anteriores à concessão. Integram o polo passivo da referida ação como litisconsortes passivos necessários os autores das reclamações objeto deste conflito. Diante disso, a Turma declarou a competência do Juízo de Direito da 8ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro para definir a existência de sucessão empresarial no tocante às obrigações trabalhistas das empresas públicas e tornou sem efeito os atos constritivos até então praticados pela Justiça do Trabalho. Precedentes citados: CC 101.671-RJ, ; CC 90.009-RJ, DJe 7/12/2009; REsp 1.095.447-RJ, DJe 21/2/2011; REsp 1.187.108-RJ, DJe 10/2/2011; REsp 1.172.283-RJ, DJe 15/2/2011, e REsp 738.026-RJ, DJ 22/8/2007. CC 101.809-RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 11/4/2012.

RECLAMAÇÃO. COMPETÊNCIA. ACIDENTE DE TRABALHO. EC N. 45/2004. SÚMULA VINCULANTE N. 22/STF.
Trata-se de reclamação em desfavor do Tribunal de Justiça estadual (reclamado) que descumpriu decisão monocrática transitada em julgado a qual conheceu do conflito de competência e declarou competente o juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Andradina-SP em detrimento do juízo trabalhista (reclamante), para o julgamento da ação de indenização por danos morais e materiais ajuizada pela autora (empregada) contra a empresa ré (empregadora), decorrentes de acidente de trabalho por culpa da empregadora. Na espécie, o juízo estadual julgou parcialmente procedente o pedido, sentença contra a qual as partes interpuseram apelações. Por sua vez, o tribunal a quo declinou da competência para o julgamento dos apelos, declarando a nulidade de todos os atos decisórios proferidos nos autos e determinando sua remessa à Justiça do Trabalho de primeiro grau. No entanto, a determinação da competência estadual em prol da Justiça do Trabalho – na sua relevante atribuição constitucional de julgar as ações oriundas da relação de trabalho (CF, art.114, I, com redação da EC n. 45/2004) dá-se, indubitavelmente, na hipótese, diante da Súmula vinculante n. 22/STF (DJe 11/12/2009). Essa súmula dispõe que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho propostas por empregado contra empregador, inclusive aquelas que ainda não possuíam sentença de mérito em primeiro grau quando da promulgação da EC n. 45/2004. In casu, no dia da promulgação da EC n. 45/2004 (8/12/2004), a ação ajuízada pela autora ainda não possuía sentença de mérito em primeiro grau, visto que a sentença do Juízo estadual somente foi proferida em 17/4/2006, em obediência à decisão monocrática (30/6/2005) proferida neste Superior Tribunal. Dessarte, em razão da EC n. 45/2004, a competência que até então era da Justiça comum passou a ser da Justiça do Trabalho (especializada para a matéria). Assim, ressaltou-se que a interpretação constitucional constante da referida súmula sobrepaira sobre decisões com ela incompatíveis proferidas no âmbito infraconstitucional. De modo que o argumento fundado na preclusão do julgamento deste Superior Tribunal consubstanciado na aludida decisão monocrática não resiste à sobrepujável interpretação constitucional do STF. Assim, na hipótese, não pode a decisão monocrática prevalecer sobre a Súmula vinculante n. 22/STF. Com esses e outros fundamentos, a Seção julgou improcedente a reclamação, mantendo a anulação da sentença do juízo da 2ª Vara Cível de Andradina-SP, bem como a determinação de remessa dos autos ao juízo da Vara do Trabalho local. Rcl 7.122-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgada em 11/4/2012. 


CONVENÇÃO DA HAIA. PROVA PERICIAL. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DO MENOR.
Discute-se a aplicação da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção da Haia), promulgada no Brasil mediante o Dec. n. 3.413/2000. Trata-se, na origem, de ação de busca, apreensão e restituição ajuizada pela União contra a segunda recorrente, cidadã brasileira, com o propósito de compelir a entregar seu filho, primeiro recorrente, menor, nascido no estrangeiro e filho do ora assistente, cidadão estrangeiro, à autoridade central brasileira e, ato contínuo, à autoridade central estrangeira, para restituição. Postulam os recorrentes a anulação de todos os atos processuais praticados desde o julgamento antecipado da lide, a fim de que os autos retornem à primeira instância para a produção das provas, em especial a perícia psicológica. O Min. Relator observou que a Convenção da Haia, contundente na reprimenda ao sequestro e na determinação de retorno imediato do menor ilicitamente transferido, revela, de forma equilibrada, grande preocupação com o bem-estar deste, assegurando-lhe, sobretudo, o equilíbrio emocional e a integridade física. Consta dos autos uma única avaliação psicológica do menor, efetuada há mais de três anos, a partir de um único encontro entre a perita do juízo e a criança. A conclusão dessa avaliação não conduz à certeza de ausência de grave dano no retorno da criança ao estado estrangeiro. Assim, asseverou o Min. Relator, é imprescindível a realização da perícia psicológica requerida, pois o interesse do menor sobreleva qualquer outro. Diante dessa e de outras considerações, a Turma deu parcial provimento para anular os provimentos ordinários e determinar a realização apenas da perícia psicológica. REsp 1.239.777- PE, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 12/4/2012. 


DEFEITO DE FABRICAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO. ÔNUS DA PROVA.
No caso, houve um acidente de trânsito causado pela quebra do banco do motorista, que reclinou, determinando a perda do controle do automóvel e a colisão com uma árvore. A fabricante alegou cerceamento de defesa, pois não foi possível uma perícia direta no automóvel para verificar o defeito de fabricação, em face da perda total do veículo e venda do casco pela seguradora. Para a Turma, o fato narrado amolda-se à regra do art. 12 do CDC, que contempla a responsabilidade pelo fato do produto. Assim, considerou-se correta a inversão do ônus da prova, atribuído pelo próprio legislador ao fabricante. Para afastar sua responsabilidade, a montadora deveria ter tentado, por outros meios, demonstrar a inexistência do defeito ou a culpa exclusiva do consumidor, já que outras provas confirmaram o defeito do banco do veículo e sua relação de causalidade com o evento danoso. Além disso, houve divulgação de recall pela empresa meses após o acidente, chamado que englobou, inclusive, o automóvel sinistrado, para a verificação de possível defeito na peça dos bancos dianteiros. Diante de todas as peculiaridades, o colegiado não reconheceu cerceamento de defesa pela impossibilidade de perícia direta no veículo sinistrado. Precedente citado: REsp 1.036.485-SC, DJe 5/3/2009. REsp 1.168.775-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/4/2012.

MANDATO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. MORTE DO MANDANTE.
O direito de exigir a prestação de contas do mandatário transmite-se aos herdeiros do mandante, pois o dever de prestar decorre da lei e não está vinculado à vigência do contrato. Na hipótese, o contrato foi firmado para alienação de imóvel, portanto o prazo prescricional da ação de prestação de contas inicia-se após a realização de seu objeto. Assim, a obrigação do mandatário de prestar contas subsiste a extinção do mandato. De fato, a morte do mandante cessa o contrato; porém, por força do art. 1.784 do CC, uma vez aberta a sucessão, os herdeiros ficam automaticamente investidos na titularidade de todo o acervo patrimonial do de cujus, formando-se o vínculo jurídico com o mandatário. Precedente citado: REsp 474.983-RJ, DJ 4/8/2003. REsp 1.122.589-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 10/4/2012.

CEF. LEGITIMIDADE. FGTS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS.
A CEF, na qualidade de agente operador do FGTS, reveste-se de legitimidade como terceiro prejudicado para impetrar mandado de segurança contra decisão que determina o levantamento de valores mantidos em conta vinculada do fundo para saldar dívida de alimentos. Isso porque ela é a responsável por centralizar os recursos do FGTS, manter e controlar as contas vinculadas, liberando os valores, de acordo com a lei. Porém, não fere direito líquido e certo a penhora de quantias ligadas ao FGTS para pagamento de débito alimentar em execução de alimentos, visto que o art. 20 da Lei n. 8.036/1990, que elenca as hipóteses autorizadoras do saque, não é um rol taxativo, pois se deve ter em vista o fim social da norma e as exigências do bem comum que permitem, em casos excepcionais, o levantamento de valores oriundos do aludido fundo. Precedentes citados: REsp 1.083.061-RS, DJe 7/4/2010; RMS 26.540-SP, DJe 5/9/2008; REsp 719.735-CE, DJ de 2/8/2007, e REsp 698.894-AL, DJ 18/9/2006. RMS 35.826-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/4/2012.



MULTA DO ART. 461, § 4º, DO CPC. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DESCASO DO DEVEDOR. VALOR TOTAL ATINGIDO.
A discussão diz respeito ao valor atingido pela astreinte e busca definir se a multa cominatória fixada para o caso de descumprimento da obrigação de fazer seria exagerada a ponto de autorizar sua redução nesta Corte. In casu sub examen, o condomínio recorrido ajuizou reintegração na posse em que o recorrente proprietário de unidade autônoma construiu irregularmente um deque em área comum do edifício – a qual fora cedida sob a condição de que não fosse realizada qualquer obra. O pedido foi julgado procedente, e o recorrente foi condenado à devolução da área, livre de qualquer construção, no prazo de noventa dias, sob pena da incidência de multa diária no valor de R$ 1 mil. O tribunal a quo manteve a sentença proferida e o valor atingido pela multa por descumprimento de decisão judicial (R$ 383 mil). O recorrente sustenta que deve ser reconhecido o cumprimento parcial da obrigação, sendo possível a revisão do valor da astreinte quando atingido valor excessivo, de forma que deve ser reduzido aos limites da obrigação principal, qual seja, R$ 5 mil. A Min. Relatora observou que a multa cominatória, prevista no art. 461 do CPC, representa um dos instrumentos de que o direito processual civil pode valer-se na busca por uma maior efetividade do cumprimento das decisões judiciais. A multa diária por descumprimento de decisão judicial foi inicialmente fixada em patamar adequado à sua finalidade coercitiva e não poderia ser considerada exorbitante ou capaz de resultar no enriquecimento sem causa da parte adversa. Ademais, o prazo estabelecido para o desfazimento das obras se mostrava bastante razoável. Entretanto, o recorrente, mesmo instado a desfazer as obras sob pena de multa diária fixada na sentença, furtou-se de fazê-lo e, em momento algum, suscitou a existência de impedimentos excepcionais ao cumprimento da obrigação. Assim, sendo a falta de atenção do recorrente o único obstáculo ao cumprimento da determinação judicial justifica-se a manutenção do valor atingido pelas astreintes. REsp 1.229.335-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17/4/2012.



RESPONSABILIDADE CIVIL. SITE DE RELACIONAMENTO. MENSAGENS OFENSIVAS.
A responsabilidade objetiva, prevista no art. 927, parágrafo único, do CC, não se aplica a empresa hospedeira de site de relacionamento no caso de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas por usuários. O entendimento pacificado da Turma é que o dano decorrente dessas mensagens não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo. A fiscalização prévia do teor das informações postadas pelo usuário não é atividade do administrador de rede social, portanto seu dever é retirar do ar, logo que for comunicado, o texto ou a imagem que possuem conteúdo ilícito, apenas podendo responder por sua omissão. Precedentes citados: REsp 1.186.616-MG, DJe 31/8/2011, e REsp 1.175.675-RS, DJe 20/9/2011. REsp 1.306.066-MT, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 17/4/2012.



SEGURO DE VIDA. PAGAMENTO A MENOR. PRESCRIÇÃO. TERMO A QUO.
A Turma reafirmou o entendimento de que o prazo prescricional ânuo (art. 178, § 6º, do CC 1916) para o ajuizamento da ação de cobrança de diferença de indenização securitária tem início na data da ciência inequívoca do pagamento incompleto ou a menor. Na espécie, o falecimento do segurado ocorreu em 1964, ano em que teve início o processo de inventário. Apesar de determinado pelo juízo inventariante, em 24/11/1964, o depósito da importância devida pela empresa seguradora aos sucessores do de cujus, referente à indenização pelo seu seguro de vida, a ordem judicial somente foi cumprida em 22/11/2001. Constatada a insuficiência do pagamento, os herdeiros, em 9/7/2002, ajuizaram ação de cobrança para o recebimento da diferença do prêmio. Sob tal contexto, considerou o Min. Relator que, mesmo depois de decorrido longo período da ocorrência do sinistro, o depósito da importância do valor relativo à indenização securitária configura reconhecimento da existência da dívida por parte da seguradora. Assim, não estaria prescrito o direito dos herdeiros de pleitearem a complementação do seguro, pois a ação de cobrança foi proposta dentro do prazo de um ano, contado da data do pagamento a menor. Precedentes citados: REsp 882.588-SC, DJe 4/5/2011, e AgRg no Ag 1.277.705-GO, DJe 3/11/2010. REsp 831.543-RJ, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 10/4/2012.

PENHORA. NUA PROPRIEDADE. IMÓVEL UTILIZADO COMO RESIDÊNCIA DA GENITORA DO DEVEDOR. BEM DE FAMÍLIA.
A Turma firmou o entendimento de que a nua propriedade é suscetível de constrição judicial, salvo se o imóvel do executado for considerado bem de família. Na hipótese dos autos, a proteção conferida pela Lei n. 8.009/1990 foi estendida ao imóvel do nu-proprietário (executado), onde reside sua genitora na condição de usufrutuária vitalícia. Segundo se asseverou, a Constituição Federal alçou o direito à moradia à condição de desdobramento da própria dignidade humana. Em especial atenção ao idoso conferiu-lhe expectativa de moradia digna no seio da família natural, situando-o, por conseguinte, como parte integrante desse núcleo familiar. Assim, quer por considerar a genitora do nu-proprietário como membro dessa entidade familiar, quer por vislumbrar o devido amparo à mãe idosa – pois o nu-proprietário habita com sua família direta outro imóvel alugado – reputou-se devidamente justificada a proteção legal ao imóvel em questão. REsp 950.663-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/4/2012.

DANOS MATERIAIS. PROMOÇÃO PUBLICITÁRIA DE SUPERMERCADO. SORTEIO DE CASA. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE.
A Turma, ao acolher os embargos de declaração com efeitos modificativos, deu provimento ao agravo e, de logo, julgou parcialmente provido o recurso especial para condenar o recorrido (supermercado) ao pagamento de danos materiais à recorrente (consumidora), em razão da perda de uma chance, uma vez que não lhe foi oportunizada a participação em um segundo sorteio de uma promoção publicitária veiculada pelo estabelecimento comercial no qual concorreria ao recebimento de uma casa. Na espécie, a promoção publicitária do supermercado oferecia aos concorrentes novecentos vales-compras de R$ 100,00 e trinta casas. A recorrente foi sorteada e, ao buscar seu prêmio – o vale-compra –, teve conhecimento de que, segundo o regulamento, as casas seriam sorteadas àqueles que tivessem sido premiados com os novecentos vales-compras. Ocorre que o segundo sorteio já tinha sido realizado sem a sua participação, tendo sido as trinta casas sorteadas entre os demais participantes. De início, afastou a Min. Relatora a reparação por dano moral sob o entendimento de que não houve publicidade enganosa. Segundo afirmou, estava claro no bilhete do sorteio que seriam sorteados 930 ganhadores – novecentos receberiam vales-compra no valor de R$ 100,00 e outros trinta, casas na importância de R$ 40.000,00, a ser depositado em caderneta de poupança. Por sua vez, reputou devido o ressarcimento pelo dano material, caracterizado pela perda da chance da recorrente de concorrer entre os novecentos participantes a uma das trinta casas em disputa. O acórdão reconheceu o fato incontroverso de que a recorrente não foi comunicada pelos promotores do evento e sequer recebeu o bilhete para participar do segundo sorteio, portanto ficou impedida de concorrer, efetivamente, a uma das trinta casas. Conclui-se, assim, que a reparação deste dano material deve corresponder ao pagamento do valor de 1/30 do prêmio, ou seja, 1/30 de R$ 40.000,00, corrigidos à época do segundo sorteio. EDcl no AgRg no Ag 1.196.957-DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgados em 10/4/2012.


DANOS MORAIS. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. NOIVO. MORTE DA NUBENTE.
A Turma, ao prosseguir o julgamento, após voto-vista que acompanhou o relator, deu provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença que extinguiu o processo sem julgamento do mérito, por considerar que o noivo não possui legitimidade ativa ad causam para pleitear indenização por danos morais em razão do falecimento de sua nubente. Inicialmente, destacou o Min. Relator que a controvérsia em exame – legitimidade para propor ação de reparação por danos extrapatrimoniais em decorrência da morte de ente querido – apesar de antiga, não está resolvida no âmbito jurisprudencial. Entretanto, alguns pontos vêm se firmando em recentes decisões judiciais. De fato, não há dúvida quanto à legitimidade ativa do cônjuge, do companheiro e dos parentes de primeiro grau do falecido. Da mesma forma, é uníssono que, em hipóteses excepcionais, o direito à indenização pode ser estendido às pessoas estranhas ao núcleo familiar, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada caso justificam o alargamento a outros sujeitos que nele se inserem. Nesse sentido, inclusive, a Turma já conferiu legitimidade ao sobrinho do falecido que integrava o núcleo familiar, bem como à sogra que fazia as vezes da mãe. Observou o Min. Relator que, diante da ausência de regra legal específica acerca do tema, caberia ao juiz a integração hermenêutica. Após um breve panorama acerca das origens do direito de herança e da ordem de vocação hereditária, e à vista de uma leitura sistemática de diversos dispositivos de lei que se assemelham com a questão em debate (art. 76 do CC/1916; arts. 12, 948, I, 1.829, todos do CC/2002 e art. 63 do CPP), sustentou-se que o espírito do ordenamento jurídico brasileiro afasta a legitimação daqueles que não fazem parte do núcleo familiar direto da vítima. Dessarte, concluiu-se que a legitimação para a propositura da ação por danos morais deve alinhar-se à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações, porquanto o que se busca é a compensação exatamente de um interesse extrapatrimonial. Vale dizer, se é verdade que tanto na ordem de vocação hereditária quanto na indenização por dano moral em razão da morte, o fundamento axiológico são as legítimas afeições nutridas entre quem se foi e quem ficou, para proceder à indispensável limitação da cadeia de legitimados para a indenização, nada mais correto que conferir aos mesmos sujeitos o direito de herança e o direito de pleitear a compensação moral. Porém, a indenização deve ser considerada de modo global para o núcleo familiar, e não a cada um de seus membros, evitando-se a pulverização de ações de indenização. Segundo se afirmou, conferir a possibilidade de indenização a sujeitos não inseridos no núcleo familiar acarretaria a diluição indevida dos valores em prejuízo dos que efetivamente fazem jus à reparação. Acrescentou-se, ainda, o fato de ter havido a mitigação do princípio da reparação integral do dano, com o advento da norma prevista no art. 944, parágrafo único, do novo CC. O sistema de responsabilidade civil atual rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente dela esperados. Assim, conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Portanto, além de uma limitação quantitativa da condenação, é necessária a limitação subjetiva dos beneficiários nos termos do artigo supracitado. No voto-vista, registrou a Min. Maria Isabel Gallotti não considerar ser aplicável a ordem de vocação hereditária para o efeito de excluir o direito de indenização dos ascendentes quando também postulado por cônjuge e filhos, pois é sabido que não há dor maior do que a perda de um filho, uma vez que foge à ordem natural das coisas. Reservou-se, também, para apreciar quando se puser concretamente a questão referente à legitimidade de parentes colaterais para postular a indenização por dano moral em concorrência com cônjuge, ascendentes e descendentes. Precedentes citados: REsp 239.009-RJ, DJ 4/9/2000, e REsp 865.363-RJ, DJe 11/11/2010. REsp 1.076.160-AM, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/4/2012.




SUCESSÃO. CÕNJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO.
Em sucessões abertas na vigência do CC/1916, a viúva que fora casada no regime de separação de bens com o de cujus tem direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados, em havendo filhos (art. 1.611, § 1º, do CC/1916). O direito real de habitação conferido pelo novo diploma civil à viúva sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens do casamento (art. 1.831 do CC/2002), não alcança as sucessões abertas na vigência da legislação revogada (art. 2.041 do CC/2002). In casu, não sendo extensível à viúva o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do novo diploma civil, os aluguéis fixados pela sentença até 10 de janeiro de 2003 – data em que entrou em vigor o novo estatuto civil – devem ser ampliados a período posterior. REsp 1.204.347-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 12/4/2012.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

SENTENÇA DA COMARCA DE RIBEIRÃO PRETO CONVERTE UNIÃO HOMOAFETIVA EM CASAMENTO.



Fonte: Migalhas.

Casal de Ribeirão Preto tem união estável homoafetiva convertida em casamento

A 7ª vara Cível de Ribeirão Preto/SP converteu em casamento união estável homoafetiva de casal do sexo masculino. Os requerentes instruíram o pedido com atestado de duas testemunhas e anexo de declaração por escritura pública de união estável.
De acordo com o juiz Thomaz Carvalhaes Ferreira, com base em decisão do STF, o reconhecimento da união estável homoafetiva deve seguir o mesmo regramento e as consequências dos casos heteroafetivos. Para ele, "aos órgãos judicantes hierarquicamente inferiores descabe desviar da interpretação máxima consolidada pelo E. STF, com força vinculante".
Ferreira afirma que, "enquanto o Poder Legislativo não cumpre a obrigação de regulamentar o reconhecimento da união estável homoafetiva para casais do mesmo sexo, cabe ao Judiciário preencher a lacuna com a aplicação da força vinculante da decisão do STF na ADIn 4.277 e o emprego dos princípios constitucionais de proteção aos interessados, facilitando a conversão em casamento".
O casal foi representado pela advogada Luciane Borsato Miguel, do escritório Miguel Advogados.
O MP/SP deu parecer favorável ao pedido. O promotor Ronaldo Batista Pinto destacou a decisão do Supremo acerca do tema e acrescentou que "Não se ignore, por derradeiro, da tutela ao principio da igualdade e sobretudo do principio da não discriminação (...)".
Leia a íntegra da decisão.
__________
VISTOS.
I - RELATÓRIO.
A.A.S.F. e W.G.A., qualificados no memorial inicial (fIs. 02), requereram autorização de habilitação para conversão de união estável em casamento, pelos trâmites legais, apresentando a documentação exigida perante o Oficial de Registro Civil competente.
Publicados os proclamas, decorrido o prazo para impugnações e obtido parecer favorável do Ministério Público, considerando a inexistência de legislação específica amparando a pretensão dos requerentes, bem como a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIn nº 4.277, o pedido veio submetido à apreciação judicial.
II- FUNDAMENTAÇÃO.
Os requerentes são do sexo masculino e instruíram o pedido com atestado de duas testemunhas afirmando que mantêm entre si união estável sem impedimento ao casamento (fIs. 08).
Foi anexada declaração por escritura pública de união estável com o objetivo de constituir família, por convivência pública, contínua e duradoura (fIs. 09).
A Constituição Federal estabelece o seguinte:
Art. 226 - A familia, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
Parágrafo terceiro - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária realizada em 05/0512011, por unanimidade, ao conhecer da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132) como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.277), julgando-a procedente, com efeitos contra todos vinculantes, deu interpretação conforme a Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, excluindo de tal dispositivo qualquer significado impeditivo ao reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, considerada sinônimo perfeito de família.
Segundo a decisão histórica do E. STF o reconhecimento, doravante, deve seguir o mesmo regramento e as consequências da união estável heteroafetiva.
Assim, em tese desapareceram as diferenças entre uniões estáveis de homossexuais e heterossexuais para fins de constituição de entidade familiar.
A competência originária da Corte Suprema para a aludida interpretação advém da Constituição Federal:
Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e Julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; (Alínea com redação dada pela Emenda Constitucional n° 3, de 17.03.1993);
(...)
Parágrafo segundo - As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e Indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Parágrafo com redação dada pela Emenda Constitucional no 45, de 08.12.2004 - DOU 31.12.2004).
Aos órgãos judicantes hierarquicamente inferiores descabe desviar da interpretação máxima consolidada pelo E. STF, com força vinculante.
O Código Civil, no dispositivo legal sob exame, passa a ter nova leitura, suprimindo-se a restrição de reconhecimento de união estável somente entre pessoas de sexos distintos:
Art. 1723 - É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Resta definir agora sobre a Possibilidade jurídica de conversão da união estável entre pessoas de mesmo sexo em casamento, o que não foi expressamente decidido pelo E. STF e vem gerando interpretações divergentes.
O pedido não possui previsão legal específica.
Nem por isso o juiz pode deixar de decidir acerca do requerjmen0 de conversão alegando lacuna legislativa.
Colhe-se da Lei de Introdução ao Código Civil:
Art. 4 - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os Costumes e os princípios gerais de direito.
E do Código de Processo Civil:
Art. 126 - 0 juiz não se exime de sentenciar OU despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.
O Código Civil permite a conversão da união estável em casamento (art. 1.726).
Considerando-se que o E. STF excluiu a restrição sexual como obstáculo ao reconhecimento da união estável com a finalidade de formação de entidade familiar equiparável à familia, base da sociedade, que guarda especial proteção do Estado, cuja lei, por sua vez omissa, tem o dever de facilitar aquela conversão em casamento, cabe ao Judiciário suprir a lacuna legal mediante a aplicação dos princípios que norteiam o instituto civil sob análise.
A doutrina de Maria Berenice Dias e relevante sobre a questão controvertida: “se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e pelo respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei’ (União Homossexual - 0 Preconceito, & a Justiça. Ed. Livraria do Advogado, 2000, pág. 77) — fonte Jurid PREMIUM — destaquei.
A Constituição Federal resguarda a todos, sem distinção de qualquer espécie, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1°, Inciso Ill), ao lado do qual está previsto outro, de não menos relevância, que é o da isonomia entre homens e mulheres, sem  diferenciação por motivo de opção sexual (art. 5°, I).
Essa orientação, inclusive, foi reforçada no Voto proferido pelo eminente Ministro Luiz Fux, quando do julgamento da mencionada ADI, cujo trecho de sua ementa veio assim redigido: “... 4. A união homoafetiva se enquadra no conceito constitucionalmente adequado de família. 5. O art. 226, §3°, da Constituição, deve ser interpretado em conjunto com os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana - em sua vertente da proteção da autonomia individual — e da segurança jurídica, de modo a conferir guarida às uniões homoafetivas nos mesmos termos que a confere às uniões estáveis heterossexuais”.
Em conclusão, enquanto o Poder Legislativo não cumpre a obrigação de regulamentar o reconhecimento da união estável homoafetiva para casais do mesmo sexo, cabe ao Judiciário preencher a lacuna com a aplicação da força vinculante da decisão do E. STF na ADI 4.277 e o emprego dos princípios constitucionais de proteção aos interessados, facilitando a conversão em casamento.
III - DECISÃO.
Ante o exposto, HOMOLOGO a habilitação dos requerentes para conversão da união estável em casamento, mantendo-se inalterados os nomes.
O regime adotado escolhido é o da comunhão universal de bens (art. 1.725, CC) (fIs. 12/13).
Registre-se.
Após o trânsito em julgado, arquive-se.
Ciência ao MP.
P.R.I.C.
Ribeirão Preto, 16 de março de 2012.
THOMAZ CARVALHAES FERREIRA
Juiz de Direito



DOAÇÃO COM ENCARGO. USP É CONDENADA A DEVOLVER R$1.000.000,00 A FAMÍLIA DE PEDRO CONDE.


Fonte: Migalhas.

Arcadas
USP terá que devolver doação de R$ 1 mi feita pela família de Pedro Conde.

O juízo da 13ª vara de Fazenda Pública de SP condenou a USP a devolver R$ 1 mi que a família do banqueiro Pedro Conde doou à Faculdade de Direito do Largo S. Francisco. O pedido de devolução foi feito pela família do banqueiro, após a Faculdade barrar as homenagens que seriam feitas em troca da doação.

Em 2009, um contrato firmado por João Grandino Rodas, quando era diretor da Faculdade de Direito do Largo S. Francisco, vinculava a doação de verba para a construção de um auditório para 90 pessoas no prédio principal ao batismo da sala com o nome de Conde. Pela tradição, as salas da São Francisco recebem nomes de professores e ex-professores da casa. Após protestos de alunos, a Faculdade retirou o nome dado a duas salas em homenagem ao banqueiro.

O juiz de Direito Jayme Martins de Oliveira Neto considerou que a situação revelou o descumprimento do compromisso firmado no contrato. Situação que, para ele, autoriza revogação da doação.

A família também pediu indenização por danos morais, mas o magistrado rejeitou o pedido. "Não verifico que o descumprimento do contrato, ainda que com encargo sentimental, traga aos autores sofrimento particular que mereça indenização especial", afirmou.

Processo: 0011162-47.2011.8.26.0053

Veja abaixo a íntegra da decisão.

_______

    VISTOS.

    Cuida-se de Procedimento Ordinário movido por Pedro Conde Filho em face de Universidade de São Paulo - USP alegando que teria doado um auditório e um conjunto de sanitários a serem construídos na Faculdade de Direito da USP, sendo que os únicos encargos da donatária seria o de nomear o auditório como "Sala Pedro Conde" e o de manter, em suas dependências, um quadro a óleo retratando o seu pai.

    Afirma que houve descumprimento do contrato de doação firmado quando foi revogada a homenagem. Pede indenização por danos morais e o ressarcimento do valor despendido. Citada, Universidade de São Paulo - USP contestou o feito, alegando, preliminarmente, a necessidade da citação da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito para integrar o pólo passivo, tendo em vista sua participação na iniciativa de modernização da Faculdade e em parte do valor doado.

    No mérito, sustenta que, de acordo com o contrato firmado, primeiro a obra seria executada e só depois seria submetida aos órgãos colegiados a decisão sobre a atribuição do nome da sala, sem obrigação de resultado assumida. Aduz que não se trata de bem restituível, e que o encargo foi cumprido, ao ser encaminhada a questão para apreciação da Congregação. Oportunizou-se réplica. Foi requerida, pela Universidade de São Paulo a produção de prova testemunhal. Relatados.

    FUNDAMENTO e DECIDO.

    Afasto a preliminar que requeria a intervenção de terceira, ainda que anuente ao contrato de doação, porque sua participação se resume a colaborar anualmente com a manutenção do auditório e conjunto sanitários, independente do nome a que dado ao local. Nessa senda, sua participação dentro do objeto dos autos é absolutamente estranha à discussão do encargo de doação. Trata-se de ação que visa a revogação de doação por descumprimento de encargo.

    Situo o tema.

    A doação com encargo é um contrato em que há convergência de vontades para a concessão de um bem mediante execução de um ônus pelo beneficiário. Nas doações mediante encargo, se faz necessário que haja o adimplemento do encargo para o completo aperfeiçoamento do contrato. Do contrário, como se observa no art. 555 do Código Civil vigente, a revogação da doação poderá ocorrer em razão de ingratidão do donatário ou por inexecução do encargo.

    No presente caso, observa-se que a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo firmou contrato de doação com o autor o qual dispunha expressamente sobre a intenção de homenagear seu pai. Aí moram o encargo e a discussão sobre a exigibilidade. Dentro do que narra a defesa, a cláusula 2.2, analisada isoladamente supõe que a doação irá posteriormente submeter o encargo à aprovação pela Congregação da Universidade, o que revelaria ou limitaria o alcance da interpretação do encargo, tanto quanto, sinalizaria que se trata de obrigação de meio.

    Entretanto, não se interpreta o contrato pela dicção de uma cláusulas, mas as cláusulas pelo teor do contrato. Essa é a disposição que se orienta a partir do art. 112 do Código Civil, de forma que a conclusão evidente dentro do que contratado pelas partes não supõe a impossibilidade do cumprimento do encargo, ou quiçá a ressalva de responsabilidade da donatária, cingindo-se o contratado apenas ao encaminhamento da doação à Congregação da faculdade. O que se extrai efetivamente, permeável do início ao pé do contrato, é a exigibilidade do encargo, razão fundamental da doação, decorrente da honra e dos laços que cercam os doadores.

    Assim sendo, considerando que nomear auditório com o nome de pessoa ligada aos doadores constitui inegável honra concedida, de rigor lembrar que o Código Civil é direto em prever que "O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador (...)", a teor do art. 553. Logo, pela vontade do contrato e pela Lei, há aqui indiscutível encargo exigível, quase obrigação principal.

    Registre-se, de resultado.

    Dentro dessa perspectiva, sobretudo pela redação dada às cláusulas, e mesmo na ótica da cláusula específica 2.2 do contrato de doação com encargo, no sentir do Juízo, não há como presumir a limitação de responsabilidade como mero esforço de nomeação do auditório.

    Ainda que tal obstáculo administrativo exista por óbvia organização interna da Universidade, ou mesmo que se discuta a irresponsabilidade da ré em contratar obrigação de ato de terceiro - leia-se Congregação da Universidade - sugerindo-se que essas premissas constituem indiscutível ilegitimidade direta a ato próprio da donatária, caracterizando ato alheio e empecilho ao encargo, tal é tema que se manteve apenas no íntimo da Faculdade, não sendo em qualquer momento do contrato de doação esclarecida aos doadores.

    A justificativa de que o ato de nomeação dependeria de aval da Congregação da Universidade jamais se apresentou na superfície do contrato, permitindo-se inferir aos doadores que se tratava de hipótese aparentemente formal, sem maior profundidade.

    Ocorre que como se verificou, era questão de absoluta suma importância, dada a perspectiva e autonomia da Congregação, que na hipótese exerceu sua independência, e em recurso administrativo, não confirmou a nomeação pretendida pelos contratantes. Em face disso, no sentir do Juízo, a reserva mental levada a efeito, independente se ao tempo da doação houvesse diálogo entre a Faculdade e a Congregação, tanto quanto alheio às conveniências da Universidade, configura hipótese prevista no art. 110 do Código Civil atual, pelo qual, o que deve prevalecer é a manifestação da vontade das partes contratantes, exceção feita tão somente se o doador possuir conhecimento sobre a reserva mental. Não o caso. Logo, a vontade é de doar mediante encargo. Preserve-se, aqui, a vontade.

    Portanto, toda essa dinâmica revela indisfarçável descumprimento do encargo. Situação direta que autoriza revogação da doação. Percebido o inadimplemento do encargo pela donatária, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, acolho as razões do autor para que haja a revogação da doação onerosa.

    Contudo, tão somente dos danos materiais, referentes aos valores dispendidos com a realização das obras e investimento em móveis, equipamentos, honorários profissionais, ressalvado do advogado que patrocina o feito, conforme peça inicial e documentos, que não mereceram da contestação, resistência puntual e específica. No que tocam os danos morais, este Juízo não tem admitido o dano moral contratual, conforme farta jurisprudência em mesmo sentido.

    De outro lado, ainda que fosse possível, não verifico que o descumprimento do contrato, ainda que com encargo sentimental, traga aos autores sofrimento particular que mereça indenização especial. Para não passar à margem, especificamente em relação aos honorários do advogado que patrocina o feito, tratam-se de evidente despesa do autor para recompor seu patrimônio jurídico que supõe violado, de maneira que configura parte do dano emergente indenizável. Contudo, não há procedência integral, porque não admitido o dano moral pretendido.

    Nessa senda, a responsabilidade pelos custos de advogado são concorrentes, na medida em que o autor contratou profissional para pedir mais do que tinha realmente direito. Assim por equidade, fixo o valor, à luz do que vencido, em R$ 40.000,00.

    Ante o exposto, julgo PROCEDENTE EM PARTE a ação, com supedâneo no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil para condenar a Ré: 1) à restituição de 1.073.012,70, corrigidos e com juros desde a citação, observada a redação em cada bloco de tempo da Lei Federal 9.494/97; 2) ao pagamento da importância de R$ 40.000,00, contratados como pró-labore ao procurador do autor, para a propositura da demanda, corrigidos e com juros desde a citação, observada a redação em cada bloco de tempo da Lei Federal 9.494/97.

    Custas e despesas ex lege. Por força do princípio da causalidade, cada parte arcará com os honorários a que deram causa.

    P.R.I.C.

    Em caso de eventual recurso, haverá custas de preparo no valor de R$ 24142,52.

    Porte de remessa e retorno no valor de R$ 25,00 por volume (os autos encontram-se com 2 volumes)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

DECISÃO DO TJRJ. CONVERSÃO DE UNIÃO HOMOAFETIVA EM CASMENTO.

Decisão
União estável homoafetiva é convertida em casamento no RJ

Fonte: Migalhas. 20/4/2012

A 8ª câmara Cível do TJ/RJ decidiu, por unanimidade, converter em casamento a união estável homoafetiva de um casal que vive junto há oito anos. O pedido de conversão, feito em outubro de 2011, foi indeferido pelo juízo de Direito da vara de Registros Públicos da capital.

O relator do processo, desembargador Luiz Felipe Francisco, afirmou que o ordenamento jurídico não veda expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo e que, "portanto, ao se enxergar uma vedação implícita ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, estar-se-ia afrontando princípios consagrados na Constituição da República, quais sejam, os da igualdade, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo".

O desembargador acrescentou que, se a Constituição Federal determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, e se o STF determinou que não fosse feita qualquer distinção entre uniões hétero e homoafetivas, "não há que se negar aos requerentes a conversão da união estável em casamento, máxime porque consta dos autos a prova de convivência contínua, estável e duradoura".

"Ressalte-se, por oportuno, que o Direito não é estático, devendo caminhar com a evolução dos tempos, adaptando-se a uma nova realidade que permita uma maior abrangência de conceitos, de forma a permitir às gerações que nos sucederão conquistas dos mais puros e lídimos ideais", concluiu Francisco.

Processo: 0007252-35.2012.8.19.0000

JULGAMENTO DO STF. ABORTO ANENCÉFALO. PUBLICAÇÃO NO INFORMATIVO 661

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 1

O Plenário, por maioria, julgou procedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP. Prevaleceu o voto do Min. Marco Aurélio, relator. De início, reputou imprescindível delimitar o objeto sob exame. Realçou que o pleito da requerente seria o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se a antecipação terapêutica de parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Destacou a alusão realizada pela própria arguente ao fato de não se postular a proclamação de inconstitucionalidade abstrata dos tipos penais em comento, o que os retiraria do sistema jurídico. Assim, o pleito colimaria tão somente que os referidos enunciados fossem interpretados conforme a Constituição. Dessa maneira, exprimiu que se mostraria despropositado veicular que o Supremo examinaria a descriminalização do aborto, especialmente porque existiria distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto. Nesse contexto, afastou as expressões “aborto eugênico”, “eugenésico” ou “antecipação eugênica da gestação”, em razão do indiscutível viés ideológico e político impregnado na palavra eugenia. Na espécie, aduziu inescapável o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os de parte da sociedade que desejasse proteger todos os que a integrariam, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. Sublinhou que o tema envolveria a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No ponto, relembrou que não haveria colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente. Versou que o Supremo fora instado a se manifestar sobre o tema no HC 84025/RJ (DJU de 25.6.2004), entretanto, a Corte decidira pela prejudicialidade do writ em virtude de o parto e o falecimento do anencéfalo terem ocorrido antes do julgamento. Ressurtiu que a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo não se coadunaria com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantiriam o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012.(ADPF-54)
1ª parte Audio
2ª parte Audio
3ª parte Audio
ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 2

Ao frisar que laicidade não se confundiria com laicismo, rememorou orientação da Corte, proferida na ADI 2076/AC (DJU de 8.8.2003), no sentido de que a locução “sob a proteção de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição, não seria norma jurídica. Logo, enfatizou que o Estado seria simplesmente neutro — não seria religioso, tampouco ateu. Ademais, a laicidade estatal revelar-se-ia princípio que atuaria de modo dúplice: a um só tempo, salvaguardaria as diversas confissões religiosas do risco de intervenção abusiva estatal nas respectivas questões internas e protegeria o Estado de influências indevidas provenientes de dogmas, de modo a afastar a prejudicial confusão entre o poder secular e democrático e qualquer doutrina de fé, inclusive majoritária. Ressaltou que as garantias do Estado secular e da liberdade de culto representariam que as religiões não guiariam o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, tais como os direitos à autodeterminação, à saúde física e mental, à privacidade, à liberdade de expressão, à liberdade de orientação sexual e à liberdade no campo da reprodução. Nesse tocante, dessumiu que a questão debatida não poderia ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas, apesar de a oitiva de entidades ligadas a profissão de fé não ter sido em vão. Isso porque, em uma democracia, não seria legítimo excluir qualquer ator do âmbito de definição do sentido da Constituição. Entendeu que, todavia, para se tornarem aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos deveriam ser devidamente “traduzidos” em termos de razões públicas, ou seja, expostos de forma que a adesão a eles independesse de qualquer crença. A respeito, sobrelevou que crença não poderia conduzir à incriminação de suposta conduta de mulheres que optassem por não levar a gravidez a termo, visto que ações de cunho meramente imoral não mereceriam glosa do direito penal.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 3

No que tange à anencefalia, explicou que as informações e os dados revelados na audiência pública em muito teriam contribuído para esclarecer seu conceito, que consistiria na malformação do tubo neural, a caracterizar-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário. Explanou que, para o diagnóstico dessa anomalia, seria necessária a ausência dos hemisférios cerebrais, do cerebelo e de um tronco cerebral rudimentar ou a inexistência parcial ou total do crânio. Nestes termos, aludiu que o anencéfalo, assim como o morto cerebral, não deteria atividade cortical, de modo que se mostraria deficiente de forma grave no plano neurológico, dado que lhe faltariam não somente os fenômenos da vida psíquica, mas também a sensibilidade, a mobilidade, a integração de quase todas as funções corpóreas. Portanto, o feto anencefálico não desfrutaria de nenhuma função superior do sistema nervoso central “responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade”. Ressaiu, pois, que essa má-formação seria doença congênita letal, pois não haveria possibilidade de desenvolvimento de massa encefálica em momento posterior, pelo que inexistiria, diante desse diagnóstico, presunção de vida extrauterina, até porque seria consenso na medicina que o falecimento diagnosticar-se-ia pela morte cerebral. Anotou que, em termos médicos, haveria dois processos que evidenciariam o momento morte: o cerebral e o clínico. O primeiro consistiria na parada total e irreversível das funções encefálicas, em consequência de causa conhecida, ainda que o tronco cerebral estivesse temporariamente em atividade. O segundo seria a parada irreversível das funções cardiorrespiratórias, com a finalização das atividades cardíaca e cerebral pela ausência de irrigação sanguínea, de maneira a resultar em posterior necrose celular.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 4

Afirmou que, conforme a Resolução 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina - CFM, os exames complementares a serem observados para a constatação de morte encefálica deveriam demonstrar, de modo inequívoco, a ausência de atividade elétrica cerebral ou metabólica deste órgão ou, ainda, inexistência de perfusão sanguínea nele. Elucidou que, por essa razão, o CFM, mediante a Resolução 1.752/2004, consignara serem os anencéfalos natimortos cerebrais. Desse modo, eles jamais se tornariam pessoa. Nessa senda, sintetizou que não se cuidaria de vida em potencial, porém, seguramente, de morte. Acentuou que a respiração e o batimento cardíaco não excluiriam o diagnóstico de morte cerebral e que no conhecido caso da suposta portadora de anencefalia, que teria sobrevivido por um ano, oito meses e doze dias, o diagnóstico estaria equivocado, consoante teriam informado renomados especialistas. Articulou que não se trataria de anencefalia no sentido corriqueiramente utilizado pela literatura médica, e sim de meroencefalia, porquanto o feto possuiria partes do cérebro — cerebelo e pedaço do lóbulo temporal — que viabilizariam, embora precariamente, a vida extrauterina. Assim, apontou não se poder qualificá-lo, em sentido técnico, como anencéfalo, o qual jamais seria dotado dessas estruturas. Rechaçou, igualmente, a assertiva de que a interrupção da gestação de feto anencéfalo consubstanciaria aborto eugênico, compreendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas. Neste contexto, descreveu que anencéfalo não teria vida em potencial, de sorte que não se poderia cogitar de aborto eugênico, o qual pressuporia a vida extrauterina de seres que discrepassem de padrões imoralmente eleitos. Discorreu que não se trataria de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se cuidaria de feto com deficiência grave que permitisse sobrevida fora do útero, mas tão somente de anencefalia. Exprimiu, pois, que a anencefalia mostrar-se-ia incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência, não.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 5

Afastou a aplicação, na espécie, dos preceitos da Convenção sobre Direitos da Criança das Nações Unidas, especialmente, os artigos 6º e 23 (“Art. 6º. 1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida. 2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança. ... Art. 23. 1. Os Estados Partes reconhecem que a criança portadora de deficiências físicas ou mentais deverá desfrutar de uma vida plena e decente em condições que garantam sua dignidade, favoreçam sua autonomia e facilitem sua participação ativa na comunidade. 2. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança deficiente de receber cuidados especiais e, de acordo com os recursos disponíveis e sempre que a criança ou seus responsáveis reúnam as condições requeridas, estimularão e assegurarão a prestação da assistência solicitada, que seja adequada ao estado da criança e as circunstâncias de seus pais ou das pessoas encarregadas de seus cuidados”). Do mesmo modo, repeliu a aplicação da Constituição no que determinaria a proteção à criança e ao adolescente, de sorte que a eles fosse viabilizado o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, ficando a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Isso porque seria inimaginável falar-se desses objetivos no caso de feto anencéfalo, em virtude da impossibilidade de, ao ocorrer o parto, vir-se a cogitar de criança e, posteriormente, de adolescente. Ainda sobre os contornos da anomalia, registrou que a anencefalia diagnosticar-se-ia na 12ª semana de gestação, por meio de ultrassonografia, bem assim que a rede pública de saúde estaria capacitada para fazê-lo. Repisou que os médicos prefeririam repetir o exame em uma ou duas semanas para haver o diagnóstico de certeza e que seria medida salutar que órgãos e entidades competentes estabelecessem protocolos e cuidados a serem tomados para torná-lo ainda mais seguro.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 6

No tocante ao argumento de possibilidade de doação de órgão dos anencéfalos, asseverou que não seria dado invocá-lo em prol da proteção destes, por ser vedado obrigar a manutenção de gravidez apenas para viabilizar a doação de órgãos, sob pena de se coisificar a mulher e ferir a sua dignidade, bem como por se revelar praticamente impossível o aproveitamento dos órgãos dos fetos em questão. Expôs que a mulher, portanto, deveria ser tratada como fim em si mesma, e não sob perspectiva utilitarista, como instrumento para geração de órgãos e posterior doação. Recordou haver autorização pelo CFM quanto ao transplante de órgãos de anencéfalos (Resolução 1.752/2009), porém, o Parecer 24/2003, do qual teria decorrido a resolução, a indicar a inutilidade desses órgãos, em razão de hipoxemia. Nesse aspecto, mencionou que a solidariedade não poderia ser utilizada para fundamentar a manutenção compulsória da gravidez de feto anencefálico e que a doação seria ato intrinsecamente voluntário, jamais imposto, pelo que qualquer restrição aos direitos da gestante sobre o próprio corpo retiraria toda a magnitude do ato de doar órgãos, espontâneo em sua essência.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 7

Observou que seria improcedente a alegação de direito à vida dos anencéfalos, haja vista que estes seriam termos antitéticos. Explicou que, por ser o anencéfalo absolutamente inviável, não seria titular do direito à vida, motivo pelo qual o conflito entre direitos fundamentais seria apenas aparente, dado que, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontraria o direito à vida ou à dignidade humana de quem estivesse por vir. Assentou que o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, seria juridicamente morto, de maneira que não deteria proteção jurídica, principalmente a jurídico-penal. Corroborou esse entendimento ao inferir o conceito jurídico de morte cerebral da Lei 9.434/97, de modo que seria impróprio falar em direito à vida intra ou extrauterina do anencéfalo, natimorto cerebral. Destarte, a interrupção de gestação de feto anencefálico não configuraria crime contra a vida, porquanto se revelaria conduta atípica. Advertiu que, nas décadas de 30 e 40, a medicina não possuiria recursos técnicos necessários para identificar previamente a anomalia fetal, por isso, a literalidade do Código Penal de 1940 certamente estaria em harmonia com o nível de diagnósticos médicos existentes à época, o que explicaria a ausência de dispositivo que previsse expressamente a atipicidade da interrupção da gravidez de feto anencefálico. Nesse aspecto, relembrou que se trataria do mesmo legislador que, para proteger a honra e a saúde mental ou psíquica da mulher, considerara impunível o aborto provocado em gestação oriunda de estupro em hipótese de feto plenamente viável. Assim, entreviu ser lógico que, apesar da falta de previsão expressa no Código Penal de 1940, o feto sem potencialidade de vida não pudesse ser tutelado pelo tipo incriminador em comento. Pronunciou que, no julgamento da ADI 3510/DF (DJe de 28.5.2010), esta Corte cuidara, quanto ao direito à vida, de diversos enfoques, dentre os quais o da concepção, o da ligação do feto à parede do útero (nidação), o da formação das características individuais do feto, o da percepção pela mãe dos primeiros movimentos, o da viabilidade em termos de persistência da gravidez e o do nascimento. Aludiu que, sob o ângulo biológico, o início da vida pressuporia não só a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, como também a viabilidade, elemento inexistente ao feto anencéfalo, assim compreendido majoritariamente pela medicina. Aclarou que, quando a Constituição reportara-se a “direitos da pessoa humana” e a “direitos e garantias individuais” como cláusulas pétreas, teria tratado de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, destinatário dos “direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Ponderou, entretanto, que jamais haveria indivíduo-pessoa no caso do anencéfalo, razão pela qual não se justificaria sua tutela jurídico-penal, principalmente na hipótese em que esbarraria em direitos fundamentais da mulher.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 8

Reputou inquestionável o caráter não absoluto do direito à vida ante o texto constitucional, cujo art. 5º, XLVII, admitiria a pena de morte no caso de guerra declarada na forma do seu artigo 84, XIX. No mesmo sentido, citou previsão de aborto ético ou humanitário como causa excludente de ilicitude ou antijuridicidade no Código Penal, situação em que o legislador teria priorizado os direitos da mulher em detrimento dos do feto. Recordou que a proteção ao direito à vida comportaria diferentes gradações, consoante o que estabelecido na ADI 3510/DF. Reforçou esse ponto ao deduzir que a pena cominada ao crime de homicídio seria superior àquela de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, a revelar que o direito à vida ganharia contornos mais amplos, de forma a atrair proteção estatal mais intensa à medida que ocorresse seu desenvolvimento. Consignou que impenderia distinguir-se ser humano de pessoa humana: o embrião obviamente seria humano, ser vivo, todavia, não configuraria, ainda, pessoa, ou seja, sujeito de direitos e deveres, a caracterizar o estatuto constitucional da pessoa humana. Por fim, salientou que, mesmo que se concebesse a existência de direito à vida de fetos anencefálicos, — premissa da qual discordaria —, dever-se-ia admitir ser a tutela conferida nesse caso menos intensa do que a deferida às pessoas e aos fetos em geral, simplesmente porque aqueles não se igualariam a estes. Outrossim, sopesou que, se a proteção ao feto saudável fosse passível de ponderação com direitos da mulher, com maior razão o seria em relação àquela eventualmente atribuída ao anencéfalo.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 9

No que pertine aos direitos da mulher em contraposição aos do feto anencéfalo, aduziu, de início, que toda gravidez acarretaria riscos à mãe. No entanto, constatou que estes seriam maiores à gestante portadora de feto anencéfalo do que os verificados em gravidez comum. Além disso, reputou incontroverso que impor a continuidade da gravidez de feto anencéfalo poderia conduzir a gestante a quadro psíquico devastador, haja vista que predominariam, na maioria das vezes, sentimentos mórbidos de dor, angústia, impotência, luto e desespero, tendo em conta a certeza do óbito. Descreveu o sofrimento dessas mulheres, de forma que se poderia classificar como tortura o ato estatal de compeli-las a prosseguir na gestação de feto portador da anomalia, porquanto a colocaria em espécie de cárcere privado de seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade. Ressaltou que, quando inexistiam recursos aptos a identificar a anencefalia durante a gestação, o choque com a notícia projetava-se para o momento do parto, porém, atualmente, avanços tecnológicos serviriam não para a inserção de sentimentos de angústia, mas, justamente, para fazê-los cessar. Assim, evidenciou que caberia à mulher, e não ao Estado, contrastar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, a fim de deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez. Chamou atenção para o fato de que, se ocorresse o nascimento do anencéfalo, este não receberia manobra médica de reanimação, tampouco procedimento de suporte vital, em razão da inocuidade de qualquer medida, já que nada justificaria o emprego de recursos tecnológicos para tornar viável o que não disporia congenitamente de viabilidade. Logo, não se poderia exigir da mulher aquilo que o Estado não forneceria, por meio de procedimentos médicos utilizados na gravidez comum.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 10

Definiu como violência todo ato ou conduta baseada no gênero que causasse morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na esfera privada (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher). Nestes termos, não se coadunaria com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, de modo a privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não deteria sequer expectativa de vida fora do útero e aniquilar-se, em contrapartida, os direitos da mulher ao lhe impingir sacrifício desarrazoado. Sublinhou que a imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final seria irremediavelmente a morte do feto iria de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Esclareceu que a integridade que se colimaria alcançar com a antecipação terapêutica de uma gestação fadada ao fracasso seria plena e que eventual direito à vida do feto anencéfalo, acaso existisse, cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde (CF, artigos 1º, III, 5º, caput e II, III e X, e 6º, caput). Por derradeiro, versou que atuar com sapiência e justiça, calcados na Constituição e desprovidos de qualquer dogma ou paradigma moral e religioso, determinaria garantir o direito da mulher de manifestar-se livremente, sem o temor de tornar-se ré em possível ação por crime de aborto.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 11

A Min Rosa Weber acrescentou que, conquanto os favoráveis à permissão da antecipação terapêutica do parto dissessem que a anencefalia seria fatal na totalidade dos casos e que no brevíssimo período de vida existissem apenas reações automáticas do organismo, haveria relatos de fetos anencéfalos com sobrevida por meses e até mesmo mais de ano, a indicar imprecisão terminológica ou erro de diagnóstico na designação do fenômeno. Expôs que seria possível discutir a questão com fulcro nos seguintes argumentos: a) tipicidade da antecipação terapêutica do parto como crime de aborto; b) vontade do legislador no que toca a retirada da anencefalia do rol das excludentes de ilicitude; c) ponderação de valores entre liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencefálico; e d) violação de direito fundamental reprodutivo da mulher, ante a criminalização da interrupção da gravidez de feto sem viabilidade de vida extrauterina. Indicou que o debate teria se estruturado em torno de falácia naturalista, porquanto a discussão sobre a existência, ou não, de vida do feto anencéfalo configuraria equívoco, visto que não se poderia derivar um dever ser de um ser. Após realizar digressão sobre epistemologia a respeito de verificacionismo, falsificacionismo e empirismo, sumarizou que o conhecimento jurídico seria independente em relação às demais ciências. Assim, clarificou que impenderia discutir o conceito de vida de acordo com significação própria no âmbito da dogmática do direito, da legislação e da jurisprudência. Com isso, discorreu que, da circunstância de a medicina descrever determinado fenômeno como fato, não decorreria o dever jurídico de protegê-lo ou ignorá-lo. Asseverou que a ciência não poderia determinar dever de cuidado a partir de fato que considerasse verdadeiro ou falso, dado que não possuiria total controle dos seus próprios conceitos, nem lhe seria dada a pretensão de estabelecer verdades que vinculassem outras áreas do conhecimento. Demonstrou que, dos conceitos em ciência, como o de vida, não decorreriam definições lógicas, empiricamente precisas ou inquestionáveis, mas que estas seriam fruto das necessidades procedimentais e descritivas de acordo com o padrão de conhecimento de determinado momento.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 12

Reportou que o critério utilitário de morte encefálica permitiria o reconhecimento da irreversibilidade do estado de morte ao mesmo tempo em que reconheceria o funcionamento de outras partes do organismo humano que, em breve, sucumbiriam. Reiterou não haver definição jurídica sobre o que poderia ser considerado como conteúdo da expressão vida. Retomou dispositivos que indicariam interesse na proteção do feto ao reconhecer-lhe direitos (CC, artigos 2º; 542; 1.609, parágrafo único; 1.779; 1.798; Lei 11.804/2008). No entanto, articulou que o exercício de direitos do nascituro estaria condicionado a seu nascimento com vida, quando adquiriria personalidade civil. Extraiu, do art. 3º da Lei 9.434/97, que a morte encefálica ocorreria quando não houvesse mais atividade cerebral no indivíduo, a não importar ao direito o simples funcionamento orgânico, mas a possibilidade de atividades psíquicas, as quais demonstrassem que o indivíduo pudesse minimamente ser parte do convívio social. Não objetou haver proteção ao organismo em funcionamento, fosse para fim utilitário — transplante de órgãos —, fosse como respeito à família e à sociedade — no sentido de preservação dos sentimentos sobre a memória e a integridade do corpo do ente querido. Todavia, essa proteção não seria absoluta, dado que a família poderia, por exemplo, doar o corpo para laboratório de anatomia. Assim, explanou que, se o interesse jurídico protegesse as capacidades de convivência, emoção, interrelação, cognição e consciência, à medicina cumpriria esclarecer em quais circunstâncias essas capacidades estariam presentes, como elas se perderiam e como funcionariam, de forma que o direito assumiria estes dados de acordo com o conhecimento atual da técnica. A respeito, os critérios para o diagnóstico e declaração de morte cerebral perfariam certeza de que indivíduo, que já possuíra suas capacidades cerebrais, não mais apresentaria chance alguma de tê-las no estágio hodierno da medicina. Salientou que, diante dessas características, o direito positivo teria entendido que a declaração de morte encefálica seria suficiente para o indivíduo ser considerado morto, não sendo mais necessário aguardar a falência cardiorrespiratória. Nesse contexto, o conceito de morte cerebral utilizar-se-ia para definição de vida e morte tanto no direito civil, como no penal e no biodireito.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 13

Lembrou posicionamento da Corte — o qual deveria permear a compreensão de vida como direito, e não como fato em todos os demais microssistemas do ordenamento jurídico — no sentido de que embrião fecundado in vitro não conformaria ser vivo no sentido do disposto no art. 5º, caput, da CF, haja vista que, para ser vida cuja proteção interessasse ao direito, necessária a possibilidade de desenvolvimento de indivíduo com capacidades mínimas intrínsecas ao ser humano, não apenas possíveis condições biológicas. Acenou que a tendência do uso semântico do conceito de vida no direito relacionar-se-ia com as ideias de dignidade, viabilidade de desenvolvimento e presença de características mentais de percepção, interação, emoção, relacionamento, consciência e intersubjetividade, e não apenas atos reflexos e atividade referente ao desenvolvimento unicamente biológico. Nestes termos, concordou com o argumento de que o crime de aborto diria respeito à interrupção de vida em desenvolvimento e que a anencefalia não se compatibilizaria com as características que consubstanciariam a noção de vida para o direito. Igualmente, a proibição da antecipação do parto feriria a liberdade de escolha da gestante.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 14

Expressou que a tese da ausência de vontade do legislador para previsão da anencefalia como causa excludente da ilicitude não seria bom parâmetro hermenêutico para o caso. Evidenciou que, no direito contemporâneo, o processo legislativo seria muito complexo, a dificultar a aferição da vontade real do Legislativo e que seus documentos preparatórios nem sempre se mostrariam fontes seguras. Além disso, registrou que não seria rara a criação da lei de maneira ambígua e atécnica de forma proposital, a fim de que sua aprovação fosse politicamente viável, deixando-se a resolução das dúvidas futuras ao Judiciário. Também considerou que a Constituição determinaria os limites dessa vontade, de modo que a do legislador não poderia lhe ser contrária. Afastou a aplicação do precedente proferido no julgamento do RE 121336/CE (DJU de 26.6.92) à espécie, tendo em conta que não se trataria de vontade inconstitucional com atribuição de conteúdo para salvar o texto, mas de interpretação conforme a Constituição para mantê-lo e impedir que ele se estendesse a outra hipótese, que seria a anencefalia. No que diz respeito ao método da ponderação valorativa, recorreu à proporcionalidade em sentido estrito, pois as ações que preservariam os valores em concorrência para a situação concreta seriam necessárias e adequadas. Segundo esse princípio, que levaria à técnica da ponderação, impenderia estabelecer as razões argumentativas, que justificariam a restrição de abrangência de um princípio sobre outro, sempre com relação ao caso sob análise. Outrossim, referiu que não se avaliariam propriamente os valores em jogo, mas os argumentos esgrimidos.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 15

Comentou que haveria dúvida sobre aplicação da proteção à vida do feto anencéfalo, ao passo que inexistiria hesitação sobre os direitos fundamentais da gestante. Também não haveria certeza sobre a sustentabilidade da vontade do legislador sobre a inclusão da interrupção da gestação nessas circunstâncias como crime, porquanto: a) identificar essa faculdade empírica seria dificílimo; e b) não se trataria de interpretação do art. 128 do CP (que de finiria as excludentes de ilicitude), mas dos artigos 124 e 126, no tocante ao fato de a anencefalia estar ou não incluída no conteúdo do tipo aborto. Assim, a discussão fundar-se-ia a respeito do conteúdo do tipo, e não sobre eventual existência de excludente. Por outro lado, reputou certo que a vontade do legislador sempre levaria em conta, nos casos de gestação, a vontade e a situação da mulher, o que se inferiria na diferenciação do grau de reprovabilidade das condutas que se relacionariam ao direito à vida. Ao sobrelevar a dificuldade de justificar a proteção do feto anencefálico por meio da criminalização da conduta da gestante, concluiu que a ponderação dos argumentos valorativos direcionaria a decisão em favor da mulher. Finalizou que o direito penal moderno apresentar-se-ia como ultima ratio, de forma que deveria ser mínima a sua intervenção nas relações sociais, consoante seus preceitos de: a) idoneidade, a criminalização como meio útil para resolver o problema social; b) subsidiariedade, demonstração de inexistência de alternativas para a regulação da conduta indesejada; e c) racionalidade, comparação dos benefícios e dos custos sociais decorrentes da criminalização.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 16

O Min. Luiz Fux reforçou que o bem jurídico em eminência seria exatamente a saúde física e mental da mulher, confrontada em face da desproporcionalidade da criminalização do aborto levado a efeito por gestante de feto anencefálico. Asseverou que essa ponderação de preceitos denominar-se-ia “estado de necessidade justificante”, consectariamente, o art. 128 do CP deveria receber releitura moral. Ademais, a lacuna normativa atual não deveria conduzir à incriminação da conduta, por configurar caso de recurso à equidade integrativa, a fim permitir o preenchimento da omissão legislativa com aquilo que teria dito o legislador se tivesse conhecido os dados aterrorizantes da gestação de feto anencefálico. A Min. Cármen Lúcia ressaltou que a questão discutida seria o direito à vida e à liberdade, considerada a possibilidade jurídica de grávida de feto anencéfalo escolher qual seria o melhor caminho a ser seguido, quer continuando, quer interrompendo a gravidez. Enfatizou o princípio constitucional da dignidade da vida e reportou-se ao direito à saúde. Aquilatou que a dignidade do ser humano iria além da dignidade da pessoa. Esclareceu que o luto pelo qual a mãe passaria, na hipótese de optar pela antecipação do parto, seria luto e libertação. Aduziu que os direitos ora tratados deveriam ser avaliados sob o prisma de toda a família: feto, mãe, pai e irmãos. Arrematou que a interrupção da gravidez não seria criminalizável.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 17

O Min. Ayres Britto frisou que a gestação de anencéfalo seria arremedo de gravidez, pela antecipada certeza de frustração do processo em que consistiria. Entendeu haver três acepções semânticas acerca dos dispositivos penais em comento: na primeira delas, a antecipação terapêutica do feto anencéfalo seria crime. Assim, para que a regra legal da apenação passasse a incidir, seria suficiente a conduta dolosa com o intuito de impedir que o feto concluísse o ciclo de sua formação. No ponto, destacou ser estranho criminalizar a interrupção da gravidez sem a definição de início da vida, de que careceriam tanto a Constituição quanto o Código Penal. Por sua vez, na segunda intelecção, inexistiria o crime de aborto, visto que seu objeto seria natimorto cerebral, ser padecente de inviabilidade vital. Assim, “aborto” de anencéfalo seria coloquialismo, e não uso correto da linguagem jurídica, considerada a atipicidade da conduta. Por fim, a terceira interpretação exprimir-se-ia no juízo de que a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo seria fato típico, mas não configuraria prática de delito. Ocorre que o abalo psíquico e a dor moral da gestante seriam bens jurídicos a tutelar, para além da potencialidade de vida do feto. Ademais, sua gestação dificultaria sobremodo a gravidez. Assim, levar às últimas consequências esse martírio, contra a vontade da mulher, corresponderia a tortura. Concluiu, a partir da base plural de significados exposta, que o fato seria atípico.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 18

O Min. Gilmar Mendes realçou a importância da ADPF, como processo de índole objetiva, na instrumentalidade da proteção dos direitos fundamentais. Evidenciou a relevância do amicus curiae como fonte de informação para a Corte, além de cumprir função integradora importante no Estado de Direito, tendo em conta o caráter pluralista e aberto de sua admissão, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais. Nesse sentido, reputou não razoável a ausência, nesse julgamento, de algumas entidades que tentaram se habilitar como amici curiae. Teceu, ainda, comentários sobre o tratamento do aborto no direito comparado, e demonstrou que praticamente metade dos países membros da ONU reconheceriam a possibilidade de interrupção da gravidez no caso de anencefalia do feto. Sublinhou que, nessa listagem, encontrar-se-iam Estados com população de forte base religiosa. No tocante ao pedido ora formulado, afirmou que o aborto seria típico, visto que o feto anencéfalo poderia nascer com vida, ainda que breve. Ademais, entendeu inadequado tratar o fato como atípico, porquanto parte da sociedade defenderia a vida e a dignidade desses fetos. Rememorou que o princípio da dignidade da pessoa humana também tutelaria o nascituro, pois o desenvolvimento da vida passaria pelo estágio fetal. Assim, atetou a possibilidade de interpretar o aborto de anencéfalo a partir das opções legislativas já existentes acerca da isenção de punibilidade para o aborto em geral, previstas no CP, que transitariam entre o estado de necessidade e a inexigibilidade de conduta diversa. A respeito, consignou que a gestação de feto anencefálico representaria maior risco para a saúde da mãe do que uma gravidez comum, do ponto de vista físico, embora não atingida a gravidade requerida no art. 128, I, do CP. Por sua vez, a saúde psíquica da genitora também seria vulnerada, dado o sofrimento decorrente do diagnóstico da condição do feto. Nesse ponto, a proteção à incolumidade da gestante assemelhar-se-ia, em sua estrutura lógico-funcional, ao aborto de feto resultante de estupro, em que a intenção da norma seria proteger a integridade psicológica da mãe. Avaliou que seria plausível vislumbrar hipótese de causa supralegal de exclusão de ilicitude e/ou culpabilidade. Constatou que o aborto de anencéfalo estaria compreendido entre as duas causas excludentes de ilicitude previstas no CP, mas seria inimaginável para o legislador de 1940, pelas limitações tecnológicas existentes, incluir a hipótese no texto legal. Assim, esse fato poderia ser considerado omissão legislativa não condizente com o espírito do CP e incompatível com a Constituição.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 19

O Min. Celso de Mello repisou que não se trataria de disputa entre Estado e Igreja, considerada a laicidade daquele. Assim, o direito não se submeteria à religião, embora a respeitasse. De igual modo, as autoridades incumbidas de aplicá-lo deveriam evitar a repercussão, sobre o processo de poder, de suas próprias convicções religiosas. Acentuou a indefinição de vida e de morte no texto constitucional, bem como nos diversos campos do saber humano. Verificou, entretanto, que a morte, para a legislação brasileira, no sentido jurídico, seria a cerebral. Discorreu sobre os avanços dos direitos das mulheres, como parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. Em relação ao aborto de anencéfalos, reputou atípica a conduta, visto que, se nascessem, seriam natimortos cerebrais, ou seja, não haveria vida a ser tutelada pela norma penal. Por fim, os Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello ficaram vencidos na medida em que acrescentavam, ao dispositivo da decisão prolatada pelo Colegiado, as seguintes condições de diagnóstico da anencefalia e de realização do procedimento cirúrgico de interrupção da gravidez: a) atestado subscrito por, no mínimo, dois médicos especialistas; b) cirurgia realizada, sempre que possível, por médico distinto daqueles que produziram o diagnóstico; c) observância de período de três dias entre a data do diagnóstico da anencefalia e a da intervenção cirúrgica; e d) disponibilização, por parte do Poder Público, em favor de gestantes de menor poder aquisitivo, de acompanhamento psicológico, tanto antes quanto depois do procedimento cirúrgico.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 20

Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, Presidente, que julgavam o pedido improcedente. O Min. Ricardo Lewandowski sublinhava que o legislador infraconstitucional isentara de pena, excepcionalmente, o aborto, desde que praticado por médico, em duas hipóteses taxativamente definidas: no chamado “aborto necessário” e no denominado “aborto sentimental” (CP, art. 128, I e II). Reconhecia que, na hipótese de aborto necessário ou terapêutico, não seria legítimo o aborto eugenésico, ainda que provável ou até mesmo certo que a criança nascesse com deformidade ou enfermidade incurável. Assim, seria penalmente imputável o abortamento induzido de feto mal formado. Além disso, afastava o argumento de que, à época da promulgação do Código Penal ou de sua reforma não existiriam métodos científicos para detectar eventual degeneração fetal. Frisava que, caso desejasse, o Congresso Nacional, intérprete último da vontade soberana do povo, poderia ter alterado a legislação para incluir o aborto de fetos anencéfalos dentre as hipóteses de interrupção da gravidez isentas de pena. No tocante à interpretação da lei conforme a Constituição, nos termos em que requerido, rememorava o princípio básico da conservação das normas — derivado da presunção de constitucionalidade destas —, segundo o qual seria desejável conferir às leis interpretação conforme a Constituição, sem declará-las inconstitucionais, considerada a vontade soberana do legislador. Asseverava, ademais, que quando a lei fosse clara não haveria espaço para interpretação, de modo que não seria dado ao intérprete afrontar sua expressão literal, a pretexto de extrair dela conteúdo em conformidade com o texto constitucional. Reputava caber ao STF apenas o papel de legislador negativo, para extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição. Consignava que o Poder Legislativo, por sua vez, estaria dividido em relação ao tema — dada a existência de projetos de lei a seu respeito —, sem consenso até o momento.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 21

Registrava que a Organização Mundial de Saúde arrolaria diversas patologias fetais em que as chances de sobrevivência dos recém-nascidos seriam nulas ou muito pequenas. Ademais, anotava que anencefalia não corresponderia à ausência total do encéfalo, mas de parte dele, de forma que o nome mais correto para a doença seria meroencefalia. Assim, a isenção de pena relacionada ao aborto nesses casos seria discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico, diante dos distintos aspectos que a deficiência poderia apresentar. Por outro lado, abriria as portas para a interrupção da gestação em inúmeros outros casos. Relembrava a existência de vários dispositivos infraconstitucionais em vigor a resguardar a vida intrauterina, de forma que a procedência do pedido aduzido nesta ADPF implicaria a inconstitucionalidade deles, a evitar lacunas no ordenamento. Trazia a lume a preocupação das autoridades médicas com o sofrimento dos fetos anencéfalos, os quais, não obstante dotados de sistema nervoso incompleto, sentiriam dor e reagiriam a estímulos externos. Aduzia que o Ministério da Saúde, ao discutir anencefalia e doação de órgãos, teria afirmado que toda a pessoa humana, indistintamente, deveria ser tratada como fim em si mesma (CF, art. 3º, III), e que a retirada de tecidos do neonato anencéfalo para esse propósito deveria ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível, sob pena de enquadramento nas cominações previstas na lei dos transplantes de órgãos.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 22

O Presidente considerava, primeiramente, que o caso seria distinto do referente às células-tronco embrionárias, em que se tratara do embrião excedente, que sequer fora implantado no útero e jamais viria a sê-lo. A ideia de vida humana estaria afastada daquela questão, pois ausente o fenômeno do processo vital que a caracterizaria. Destacava que todos os fetos anencéfalos, a menos que já estivessem mortos, seriam dotados de capacidade de movimento autógeno, vinculada ao processo contínuo da vida e regida pela lei natural que lhe seria imanente. Sintetizava que, se o anencéfalo morresse, ele só poderia fazê-lo por estar vivo. Enfatizava haver nítida diferença entre o aproveitamento científico-terapêutico de material genético congelado e qualquer hipótese de aborto. Esclarecia que a morte encefálica seria situação de prognóstico, de irreversibilidade em que não haveria sequer respiração espontânea, o que não seria a situação do anencéfalo. Lembrava que a audiência pública, realizada na Corte acerca do tema, produzira resultados contraditórios e, portanto, inaproveitáveis quanto à questão da existência de atividade e ondas cerebrais no anencéfalo. Consignava que a morte encefálica seria distinta da anencefalia, a qual integraria, ainda que brevemente, processo contínuo e progressivo da vida. Assim, sua evolução natural não poderia ser abreviada em nome de razões autorizadoras da extração de órgãos no caso de morte encefálica.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 23

Afastava a invocação dos princípios da autonomia da vontade, da liberdade pessoal e da legalidade como fatores de legitimação do aborto doloso de anencéfalo. Registrava que a conduta seria claramente banida pelo direito penal pátrio, e que bastaria, para a configuração do crime, a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina. Não se poderia cogitar, sem contraste ostensivo com o ordenamento jurídico, de resguardo à autonomia da vontade, quando preordenada ao indisfarçável cometimento de delito. Frisava que a imposição de pena capital ao feto anencefálico atentaria contra a própria ideia de um mundo diverso e plural, defendida pelos partidários da arguente. Retirar-se-lhe-ia, também, a dignidade advinda de sua incontestável ascendência e natureza humanas. Considerava que essa discriminação não seria diferente do racismo, do sexismo e do especismo. Asseverava que o simples fato de o anencéfalo ter vida e pertencer à espécie humana garantir-lhe-ia, apesar da deficiência, proteção jurídica e constitucional. Reputava imprópria a remissão à liberdade de crença, bem como ao caráter laico do Estado, pois a hipótese seria de crime típico. Ressurtia que esse argumento, levado às últimas consequências, poderia repelir a tipicidade penal de sacrifícios humanos em cultos satânicos, por exemplo.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 24

Acrescentava que a argumentação da autora poderia ser empregada para a defesa de assassinato de bebês anencéfalos recém-nascidos, já que apenas o momento da execução do ato seria distinto. Rememorava que tanto a vida intrauterina quanto extrauterina guardariam idêntico nível de dignidade constitucional. Destacava que, embora ainda sem personalidade civil, o nascituro seria investido pelo ordenamento, portanto sujeito de direito, não coisa ou objeto de direito alheio. Discorria sobre a punibilidade da eutanásia e afirmava que vislumbrar na ínfima possibilidade de sobrevida, na sua baixa qualidade ou na efêmera duração pressuposta, argumento racional para ceifá-la seria insustentável à luz da ordem constitucional. Esta asseguraria valor supremo à vida humana, a qual não poderia ser relativizada segundo critérios sempre arbitrários. Avaliava que falar-se em morte inevitável e certa seria pleonástico, dada sua certeza e inevitabilidade para todos. Desse modo, a duração da vida não poderia estar sujeita ao poder de disposição das demais pessoas. Articulava que seria evidente a vida do anencéfalo após o nascimento, inclusive, visto que, se vítima de alguma agressão, estaria configurado o crime correspondente, fosse homicídio, infanticídio, estupro, lesão corporal, dentre outros. Não haveria como legitimar, portanto, a prática de condutas semelhantes antes do parto.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 25

Explanava a dificuldade técnico-científica de se detectar, com precisão absoluta, quais as hipóteses de anencefalia, de modo a diferenciá-los de outras afecções da mesma classe nosológica, das quais se distinguiria apenas por questão de grau. Nesse sentido, explicitava a impossibilidade de se apurar, com a segurança necessária, se dado caso seria de anencefalia, o que refletiria no prognóstico da viabilidade do feto fora do útero. Mencionava haver, portanto, dissensos irreconciliáveis no mundo científico, de maneira que seria imperioso proibir o aborto ainda naquelas situações. Versava que o sofrimento ao qual a gestante — de feto cuja possibilidade de sobrevida seria incerta — submeter-se-ia não seria equiparável à tortura. Isto porque de tortura só se poderia cogitar com seriedade quando sofrimento injusto e intencional pudesse ser esquivado de maneira compatível com o ordenamento jurídico. No caso de aborto como método para evitar ou encurtar o sofrimento, haveria crime sem previsão de excludente, além de violação ao direito à vida e à dignidade humana. Ademais, inexistiria inflicção proposital de sofrimento, este resultante de mero acaso biológico, que não seria justo nem injusto, portanto. A vida não poderia, assim, ser destruída para satisfazer sentimento de frustração e insuportabilidade personalíssima de uma dor, ainda que legítima, mas apenas humana. Expunha que no aborto justificado por estupro, por outro lado, a mulher engravidaria em decorrência de ação violenta e ilícita, imputável exclusivamente a outrem. Por conseguinte, se a ação criadora do feto anencefálico fosse espontânea e consentida, sua consequência não poderia ser interrompida sem expressa previsão legal.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)

ADPF e interrupção de gravidez de feto anencéfalo - 26

Negava que o argumento de perigo, para a gestante, na gravidez de feto anencefálico, fosse aplicável à espécie, porque todas as hipóteses de risco de vida à genitora já estariam sob o pálio do aborto terapêutico (CP, art. 128, I), o qual não abarcaria mero evento psíquico do sofrimento da mãe ou vaga possibilidade de complicações na gestação. Acrescia que toda gravidez implicaria risco teórico à saúde da mulher, e que eventual concretização desse perigo não legitimaria a realização de aborto. Julgava impertinente a ideia de que a prática do referido crime teria relação com o planejamento familiar e com os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a quem, supostamente, dever-se-ia reconhecer autonomia para se livrar de gravidez incômoda ou dolorosa. Concluía não se poder invocar esses direitos para, egoisticamente, eliminar a vida de outrem.
ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012. (ADPF-54)